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sábado, 26 de março de 2016

Que mal ele fez?

ECCE HOMO
de Guido Reni
A hora fatal se aproximava. As potências das trevas estavam livres; e eis que todo um povo, tomado por um espírito de furor e de vertigem, se apodera do Justo. Seus próprios discípulos, educados em sua escola, alimentados com seu pão, cobertos por suas carícias; seus discípulos, que acabam de lhe jurar uma fidelidade a toda prova, o abandonam, o negam: um deles o traiu. Amarrado como um malfeitor, ele é levado de tribunal em tribunal, pelas ruas de uma grande cidade. Homens, mulheres, crianças, magistrados, anciões com cabelos brancos, todos acorreram e formaram um cortejo tumultuoso. Do seio desta multidão, hedionda como um homem embriagado, agitada como um mar em fúria, se elevam incessantemente gritos de morte. O ódio impaciente não pode esperar a sentença que deve lhe entregar o inocente. Escarram em seu rosto, o esbofeteiam, batem nele com varas, até colocar a nu as veias e os ossos: da cabeça aos pés, seu corpo forma apenas uma ferida.

À crueldade se junta a insultante zombaria. Como o tigre que brinca com sua presa antes de devorá-la, esse povo bárbaro ultraja sua vitima antes de beber seu sangue. Eles o revestiram com uma túnica de escárnio; em sua mão eles colocaram um caniço como um cetro, e sobre sua cabeça uma coroa de espinhos em sinal de diadema; depois, vendando-lhe os olhos, eles dobram os joelhos, o batem rudemente no rosto e lhe dizem: "Salve, Rei dos Judeus".


E este Justo era o benfeitor público da nação! Entre esse povo de carrascos, vocês não encontrariam um que não tivesse sentido em sua pessoa, ou na pessoa dos seus, os efeitos salutares de sua poderosa bondade. Ele purificou os leprosos, ele devolveu a visão aos cegos, a audição aos surdos; ele libertou os possessos, ressuscitou os mortos: a todos ele fez o bem, a ninguém ele fez mal. Enquanto que o pisoteiam como um verme, ele se mantém calmo e cheio de dignidade. Semelhante ao terno cordeiro que levam mudo ao matadouro, ele se deixa conduzir ao suplício sem abrir a boca. Em nome de Deus, o conjuram a falar: ele responde com doçura e verdade. De sua palavra lhe fazem um crime: uma bofetada a mais é o prêmio de sua obediência.

O Justo a recebe e se cala. Sua resignação exaspera seus perseguidores. As vociferações redobram. Como uma torrente, elas ressoam os ecos da cidade deicida: "Matem-no! matem-no! Que ele seja crucificado!", e eles o empurram brutalmente perante o juiz que pode lhes dar a sua cabeça. Esse juiz é um estrangeiro, é um ambicioso, é um medroso. Não obstante, a inocência do acusado o subjuga; ele a proclama: "Que mal ele fez? Se ele não fosse culpado, nós não o teríamos te entregado!... Que mal então ele fez? Ele pretende reinar, e nós não queremos que ele reine sobre nós[1]". O juiz hesita... eis o último esforço de sua coragem se expirando. "Não quero ser responsável pelo sangue do justo, disse ele lavando as mãos, isso é lá convosco. - Que ele morra! Que ele morra! E que seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos!" A sentença iníqua é obtida.

A vítima caminha ao suplício. Tanto ódio por tanto amor, tanta injustiça por tanta inocência, tanta ingratidão por tantos benefícios, fazem jorrar algumas lágrimas. Um pequeno número de mulheres escondidas na multidão demonstra uma dor sincera. O Justo as viu; ele se voltou, e, como despedida, ele fez ouvir essas palavras: "Filhas de Jerusalém, não choreis sobre mim, mas sobre vós e sobre vossos filhos". A via dolorosa é cruzada. Despojado de sua túnica ensanguentada, ele é pregado na cruz, condenado a morrer entre dois celerados! Enquanto os carrascos saciam sua sede com fel e vinagre, seus inimigos passam e repassam diante dele, acenando a cabeça, elevando os ombros e lançando contra ele os traços afiados de suas injúrias e de suas blasfêmias. Sua divindade, eles a negam; sua realeza, eles zombam dela; seu poder, eles o enfrentam; sua ira, eles a desafiam. Em seu silêncio sublime, o Justo cumpre sua missão e a ordem de seu Pai: Ele expira!

A natureza inteira estremece, o céu se cobre com um véu lúgubre, o terror está por toda parte. Logo um mensageiro de desgraças, profeta como nunca se viu, rodeia dia e noite em torno de Jerusalém, gritando sem nunca parar: "Voz do Oriente, voz do Ocidente, voz dos quatro ventos, voz contra Jerusalém e contra o templo, voz contra todo o povo. Aí de nós! Aí de nós[2]!"


GAUME, J., "Où allons-nous?". Paris, Gaume Frères, 1844.

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[1] Jo XIX, 12-15, Lc XIX, 14.
[2] Joseph. Bell. lib. VII, c. 12.
 


  
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