Edição de referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.
Sermão da Terceira Dominga da Quaresma
NA CAPELA REAL. ANO 1655
Cum ejecisset daemonium, locutus est mutus, et admiratae sunt turbae. [1]
VI
Quibus auxiliis? Com que meios? Três dedos e uma pena, o ofício mais arriscado do governo humano. A escrita fatal do festim de Baltasar. Os ministros da pena e as parteiras do Egito. O texto obscuro de Davi. Importância dos escribas. Comparação do profeta Malaquias. Etimologia de calamidade. As penas dos quatro evangelistas. Os massoretas e a pontuação das Escrituras Sagradas. As arrecadas da Esposa do Cântico dos Cânticos.
Quibus auxiliis? E com que meios se fazem e se conseguem todas estas coisas que temos dito? Com um papel e com muitos papéis: com certidões, com informações, com decretos, com consultas, com despachos, com portarias, com provisões. Não há coisa mais escrupulosa no mundo que papel e pena. Três dedos com uma pena na mão é o ofício mais arriscado que tem o governo humano. Aquela escritura fatal que apareceu a el-rei Baltasar na parede, diz o texto que a formaram uns dedos como de mão de homem: Apparuerunt digiti, quasi manus hominis (Dan. 5, 5). – E estes dedos, quem os movia? Dizem todos os intérpretes, com S. Jerônimo, que os movia um anjo. De maneira que quem escrevia era um anjo, e não tinha de homem mais que três dedos. Tão puro como isto há de ser quem escreve. Três dedos com uma pena podem ter muita mão, por isso não há de ser mais que dedos. Com estes dedos não há de haver mão, não há de haver braço, não há de haver ouvidos, não há de haver boca, não há de haver olhos, não há de haver coração, não há de haver homem: Quasi manus hominis. – Não há de haver mão para a dádiva, nem braço para o poder, nem ouvidos para a lisonja, nem olhos para o respeito, nem boca para a promessa, nem coração para o afeto, nem finalmente há de haver homem, porque não há de haver carne nem sangue. A razão disto é porque, se os dedos não forem muito seguros, com qualquer jeito da pena podem fazer grandes danos.
Quis Faraó destruir e acabar os filhos de Israel no Egito, e que meio tomou para isto? Mandou chamar as parteiras egípcias e encomendou-lhes que quando assistissem o parto das hebréias, se fosse homem o que nascesse, que lhe torcessem o pescoço e o matassem, sem que ninguém o entendesse. Eis aqui quão ocasionado ofício é o daqueles em cujas mãos nascem os negócios. O parto dos negócios são as resoluções, e aqueles em cujas mãos nascem estes partos, ou seja escrevendo ao tribunal, ou seja escrevendo ao príncipe, são os ministros da pena. E é tal o poder, a ocasião e a sutileza deste ofício, que com um jeito de mão e com um torcer de pena podem dar vida e tirar vida. Com um jeito podemos dar com que vivais, e com outro jeito podemos tirar o com que viveis. Vede se é necessário que tenham muito escrupulosas consciências estas egípcias quando tanto depende delas a buena dicha dos homens, e não pelas riscas da vossa mão, senão pelos riscos das suas, Si dormiatis inter medios cleros (hoc est inter medias sortes) pennae columbae deargentatae (Sl. 67, 14): Se estais duvidoso da vossa sorte, penas prateadas, diz Davi. O sentido deste texto ainda se não sabe ao certo, mas tomado pelo que soa, terrível coisa é que a boa ou má sorte de uns dependa das penas de outros! E muito mais terrível ainda se essas penas, por algum reflexo, se puderem pratear ou dourar: Pennae columbae deargentate, et posteriora dorsi ejus in pallore auri.[17] Estas penas são as que escrevem as sortes; estas as que as tiram e as que as dão, e talvez a boa aos maus e a má aos bons. Quantos delitos se enfeitam com uma penada! Quantos merecimentos se apagam com uma risca! Quantas famas se escurecem com um borrão! Para que vejam os que escrevem de quantos danos podem ser causa se a mão não for muito certa, se a pena não for muito aparada, se a tinta não for muito fina, se a regra não for muito direita, se o papel não for muito limpo!
Eu não sei como não treme a mão a todos os ministros de pena, e muito mais àqueles que sobre um joelho, aos pés do rei, recebem os seus oráculos, e os interpretam e estendem. Eles são os que, com um advérbio, podem limitar ou ampliar as fortunas; eles os que, com uma cifra podem adiantar direitos e atrasar preferências; eles os que, com uma palavra, podem dar ou tirar peso à balança da justiça; eles os que, com uma cláusula equívoca ou menos clara, podem deixar duvidoso e em questão o que havia de ser certo e efetivo; eles os que, com meter ou não meter um papel, podem chegar e introduzir a quem quiserem, e desviar e excluir a quem não quiserem; eles, finalmente, os que dão a última forma às resoluções soberanas, de que depende o ser, ou não ser de tudo. Todas as penas, como as ervas, têm a sua virtude; mas as que estão mais chegadas à fonte do poder são as que prevalecem sempre a todas as outras. São por oficio ou artifício, como as penas da águia, das quais dizem os naturais, que postas entre as penas das outras aves, a todas comem e desfazem. Ouçam estas penas pelo que têm de reais, o que delas diz o Espírito Santo: In manu Dei potestas terrae, et utilem rectorem suscitabit in tempus super illam. ln manu Dei prosperitas hominis, et super fatiem scribae ponet honorem suum.[18] Escriba, neste lugar, como notam os expositores, significa o ofício daqueles que junto à pessoa do rei escrevem e distribuem os seus decretos. Assim se chama na Escritura Saraias, escriba do rei Davi, e Sobna, escriba del el-rei Ezequias[19]. Diz pois o Espírito Santo: O poder e império dos reis está na mão de Deus, porém a honra de Deus pô-la o mesmo Deus na mão dos que escrevem aos reis: Et super fatiem scribae imponet honorem suam. Pode haver ofício mais para gloriar por uma parte, e mais para tremer por outra? Grande crédito e grande confiança argui, que nestas mãos e nestas penas ponham os reis a sua honra; mas muito maior crédito e muito maior confiança é que diga o mesmo Deus que põe nelas a sua. Quantas empresas de grande honra de Deus puderam estar muito adiantadas, se estas penas, sem as quais se não pode dar passo, as zelaram e assistiram como era justo! E quantas, pelo contrário, se perdem e se sepultam, ou porque falta o zelo e diligência, ou porque sobeja o esquecimento e o descuido, quando não seja talvez a oposição!
Do rei, que logo direi, falava o profeta Malaquias debaixo do nome de Sol de Justiça, quando disse que nas suas penas estava a saúde do mundo: Orietur vobis sol justitiae, et sanitas in pennis ejus.[20] Chama penas aos raios do sol, porque assim como o sol, por meio de seus raios alumia, aquenta e vivifica a todas as partes da terra, assim orei, que não pode sair do seu zodíaco, por meio das penas que tem junto a si, dá luz, dá calor, e dá vida a todas as partes da monarquia, ainda que ela se estenda fora de ambos os trópicos, como a do sol e a nossa: Et sanitas in pennis ejus. – Se as suas penas forem sãs e tão puras como os raios do sol, delas nascerá todo o bem e felicidade pública: mas se em vez de serem sãs forem corruptas, e não como raios do sol, senão como raios, elas serão a causa de todas as ruínas e de todas as calamidades. Se perguntardes aos gramáticos donde se deriva este nome calamidade: calamitas, responder-vos-ão que de calamo. E que quer dizer calamo? Quer dizer cana e pena, porque as penas antigamente faziam-se de certas canas delgadas. Por sinal que diz Plínio que as melhores do mundo eram as da nossa Lusitânia. Esta derivação ainda é mais certa na política que na gramática. Se as penas de que se serve o rei não forem sãs, destes cálamos se derivarão todas as calamidades públicas, e serão o veneno e enfermidade mortal da monarquia, em vez de serem a saúde dela: Sanitas in pennis ejus.
O rei de que fala neste lugar Malaquias é o Rei dos Reis, Cristo,e as penas com que ele deu saúde ao mundo, todos sabemos que são as dos quatro evangelistas, e essas assistidas do Espírito Santo. Para que advirtam os evangelistas dos príncipes a verdade, a pureza, a inteireza que devem imitar as suas penas, e como em tudo se hão de mover pelo impulso soberano, e em nada por afeto próprio. Se as suas escrituras as pomos sobre a cabeça como sagradas, seja cada uma delas um evangelho humano.
Porém se sucedesse alguma vez não ser assim, ou por desatenção das penas maiores, ou por corrupção das inferiores, de que elas se ajudam, julguem as consciências, sobre que carregam estes escrúpulos, se têm muito que examinar, e muito que confessar, e muito que restituir em negócios e matérias tantas e de tanto peso! Que possa isto suceder, e que tenha já sucedido, o profeta Jeremias o afirma: Vere mendacium operatus est stylus men-dax scribarum. Ou como lê o caldaico: Fecit calamum mendacii ad falsandas scripturas,[21] E suposto que isto não só é possível, mas já foi praticado e visto naquele tempo, bem é que saiba o nosso, quanto bastará para falsificar uma escritura. Bastará mudar um nome? Bastará mudar uma palavra? Bastará mudar uma cifra? Digo que muito menos basta. Não é necessário para falsificar uma escritura mudar nomes, nem palavras, nem cifras, nem ainda letras: basta mudar um ponto ou uma vírgula.
Perguntam os controversistas se assim como nas Sagradas Escrituras são de fé as palavras, serão também de fé os pontos e vírgulas? E respondem que sim, porque os pontos e vírgulas determinam o sentido das palavras, e variados os pontos e vírgulas, também o sentido se varia. Por isso antigamente havia um conselho chamado dos massoretas, cujo ofício era conservar incorruptamente em sua pureza a pontuação da Escritura. Esta é a galantaria misteriosa daquele texto dos Cânticos: Murenulas aureas faciemus tibi vermiculatas argento (Cânt. 1, 10). Diz o Esposo divino que fará à sua esposa umas arrecadas de ouro, esmaltadas ce prata; – e o esmalte, segundo se tira da raiz hebraica, era de pontos e vírgulas, porque, em lugar de vermiculatas, lêem outros: punctatas, virgulatas argento. Mas s as arrecadas eram de ouro, por que eram os esmaltes de prata, e formados de pontos e vírgulas? Porque as arrecadas são ornamento das orelhas, onde está o sentido da fé: Fides ex auditu[22] (Rom. 10, 17), e nas palavras de fé, ainda que os pontos e vírgulas pareçam de menos consideração, assim como a prata é de menos preço que o ouro, também pertencem à fé tanto como as mesmas palavras. As palavras, porque formam o significado; os pontos e vírgulas, porque distinguem e determinam o sentido. Exemplo: Surrexit, non est hic (Mc. 16, 6): Ressuscitou, não está aqui. – Com estas palavras diz o evangelista que Cristo ressuscitou, e com as mesmas palavras, se se mudar a pontuação, pode dizer um herege que Cristo não ressuscitou: Surrexit? Non. Est hic. Ressuscitou? Não. Está aqui. – De maneira que só com trocar pontos e vírgulas, com as mesmas palavras, se diz que Cristo ressuscitou, e é fé, e com as mesmas se diz que Cristo não ressuscitou, e é heresia. Vede quão arriscado ofício o de uma pena na mão. Ofício que, com mudar um ponto ou uma vírgula, da heresia pode fazer fé, e da fé pode fazer heresia. Oh! que escrupuloso ofício!
E se a mudança de um ponto e de uma vírgula pode fazer tantos erros e tantos danos, que seria se se mudassem palavras? Que seria se se diminuíssem palavras? Que seria se se acrescentassem palavras? Torno a dizer: se a mudança de um ponto e de uma vírgula pode ser causa de tantos danos, que seria se se calassem regras? Que seria se faltassem capítulos? Que seria se se sepultassem papéis e informações inteiras? E que seria se, em vez de se presentarem a quem havia de pôr o remédio, se entregassem a quem havia de executar a vingança? Tudo isto pode caber em uma pena, e eu não sei como pode caber em uma confissão. Pois é certo que se confessam, e muitas vezes, os que isso fazem, e que não falta quem absolva estas confissões, ou quem se queira condenar pelas absolver. Mas eu nem absolvo os confessados, nem condeno os confessores, porque só me admiro com as turbas: Et admiratae sufi turbae.
______________
Notas:
[1] Depois de ter expelido o demônio, falou o mudo, e se admiraram as gentes (Lc. 11, 14).
[17] Se dormirdes entre o meio das sortes (herdades), sereis como as penas da pomba, argentadas, e os remates do lombo dela em amarelidão de ouro (SI. 67, 14).
[18] O poder da terra está na mão de Deus, e ele a seu tempo suscitará um governador útil. A prosperi¬dade do homem está na mão de Deus, e é ele que põe o sinal da sua majestade sobre a fronte do escriba (Eclo. 10, 4).
[19] Cornelius, hic Scribae vocabantur qui erant proximi a rege, quorum erat nomine regis decreta concipere, scribere, promulgare, conservare
[20] Nascerá o sol da justiça, e estará a salvação nas suas asas (Mal. 4, 2).
[21] Verdadeiramente o ponteiro mentiroso dos escribas gravou a mentira (Jer. 8, 8). [22] A fé pelo ouvido (Rom.10,17).
Índice
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Quibus auxiliis? Com que meios? Três dedos e uma pena, o ofício mais arriscado do governo humano. A escrita fatal do festim de Baltasar. Os ministros da pena e as parteiras do Egito. O texto obscuro de Davi. Importância dos escribas. Comparação do profeta Malaquias. Etimologia de calamidade. As penas dos quatro evangelistas. Os massoretas e a pontuação das Escrituras Sagradas. As arrecadas da Esposa do Cântico dos Cânticos.
Quibus auxiliis? E com que meios se fazem e se conseguem todas estas coisas que temos dito? Com um papel e com muitos papéis: com certidões, com informações, com decretos, com consultas, com despachos, com portarias, com provisões. Não há coisa mais escrupulosa no mundo que papel e pena. Três dedos com uma pena na mão é o ofício mais arriscado que tem o governo humano. Aquela escritura fatal que apareceu a el-rei Baltasar na parede, diz o texto que a formaram uns dedos como de mão de homem: Apparuerunt digiti, quasi manus hominis (Dan. 5, 5). – E estes dedos, quem os movia? Dizem todos os intérpretes, com S. Jerônimo, que os movia um anjo. De maneira que quem escrevia era um anjo, e não tinha de homem mais que três dedos. Tão puro como isto há de ser quem escreve. Três dedos com uma pena podem ter muita mão, por isso não há de ser mais que dedos. Com estes dedos não há de haver mão, não há de haver braço, não há de haver ouvidos, não há de haver boca, não há de haver olhos, não há de haver coração, não há de haver homem: Quasi manus hominis. – Não há de haver mão para a dádiva, nem braço para o poder, nem ouvidos para a lisonja, nem olhos para o respeito, nem boca para a promessa, nem coração para o afeto, nem finalmente há de haver homem, porque não há de haver carne nem sangue. A razão disto é porque, se os dedos não forem muito seguros, com qualquer jeito da pena podem fazer grandes danos.
Quis Faraó destruir e acabar os filhos de Israel no Egito, e que meio tomou para isto? Mandou chamar as parteiras egípcias e encomendou-lhes que quando assistissem o parto das hebréias, se fosse homem o que nascesse, que lhe torcessem o pescoço e o matassem, sem que ninguém o entendesse. Eis aqui quão ocasionado ofício é o daqueles em cujas mãos nascem os negócios. O parto dos negócios são as resoluções, e aqueles em cujas mãos nascem estes partos, ou seja escrevendo ao tribunal, ou seja escrevendo ao príncipe, são os ministros da pena. E é tal o poder, a ocasião e a sutileza deste ofício, que com um jeito de mão e com um torcer de pena podem dar vida e tirar vida. Com um jeito podemos dar com que vivais, e com outro jeito podemos tirar o com que viveis. Vede se é necessário que tenham muito escrupulosas consciências estas egípcias quando tanto depende delas a buena dicha dos homens, e não pelas riscas da vossa mão, senão pelos riscos das suas, Si dormiatis inter medios cleros (hoc est inter medias sortes) pennae columbae deargentatae (Sl. 67, 14): Se estais duvidoso da vossa sorte, penas prateadas, diz Davi. O sentido deste texto ainda se não sabe ao certo, mas tomado pelo que soa, terrível coisa é que a boa ou má sorte de uns dependa das penas de outros! E muito mais terrível ainda se essas penas, por algum reflexo, se puderem pratear ou dourar: Pennae columbae deargentate, et posteriora dorsi ejus in pallore auri.[17] Estas penas são as que escrevem as sortes; estas as que as tiram e as que as dão, e talvez a boa aos maus e a má aos bons. Quantos delitos se enfeitam com uma penada! Quantos merecimentos se apagam com uma risca! Quantas famas se escurecem com um borrão! Para que vejam os que escrevem de quantos danos podem ser causa se a mão não for muito certa, se a pena não for muito aparada, se a tinta não for muito fina, se a regra não for muito direita, se o papel não for muito limpo!
Eu não sei como não treme a mão a todos os ministros de pena, e muito mais àqueles que sobre um joelho, aos pés do rei, recebem os seus oráculos, e os interpretam e estendem. Eles são os que, com um advérbio, podem limitar ou ampliar as fortunas; eles os que, com uma cifra podem adiantar direitos e atrasar preferências; eles os que, com uma palavra, podem dar ou tirar peso à balança da justiça; eles os que, com uma cláusula equívoca ou menos clara, podem deixar duvidoso e em questão o que havia de ser certo e efetivo; eles os que, com meter ou não meter um papel, podem chegar e introduzir a quem quiserem, e desviar e excluir a quem não quiserem; eles, finalmente, os que dão a última forma às resoluções soberanas, de que depende o ser, ou não ser de tudo. Todas as penas, como as ervas, têm a sua virtude; mas as que estão mais chegadas à fonte do poder são as que prevalecem sempre a todas as outras. São por oficio ou artifício, como as penas da águia, das quais dizem os naturais, que postas entre as penas das outras aves, a todas comem e desfazem. Ouçam estas penas pelo que têm de reais, o que delas diz o Espírito Santo: In manu Dei potestas terrae, et utilem rectorem suscitabit in tempus super illam. ln manu Dei prosperitas hominis, et super fatiem scribae ponet honorem suum.[18] Escriba, neste lugar, como notam os expositores, significa o ofício daqueles que junto à pessoa do rei escrevem e distribuem os seus decretos. Assim se chama na Escritura Saraias, escriba do rei Davi, e Sobna, escriba del el-rei Ezequias[19]. Diz pois o Espírito Santo: O poder e império dos reis está na mão de Deus, porém a honra de Deus pô-la o mesmo Deus na mão dos que escrevem aos reis: Et super fatiem scribae imponet honorem suam. Pode haver ofício mais para gloriar por uma parte, e mais para tremer por outra? Grande crédito e grande confiança argui, que nestas mãos e nestas penas ponham os reis a sua honra; mas muito maior crédito e muito maior confiança é que diga o mesmo Deus que põe nelas a sua. Quantas empresas de grande honra de Deus puderam estar muito adiantadas, se estas penas, sem as quais se não pode dar passo, as zelaram e assistiram como era justo! E quantas, pelo contrário, se perdem e se sepultam, ou porque falta o zelo e diligência, ou porque sobeja o esquecimento e o descuido, quando não seja talvez a oposição!
Do rei, que logo direi, falava o profeta Malaquias debaixo do nome de Sol de Justiça, quando disse que nas suas penas estava a saúde do mundo: Orietur vobis sol justitiae, et sanitas in pennis ejus.[20] Chama penas aos raios do sol, porque assim como o sol, por meio de seus raios alumia, aquenta e vivifica a todas as partes da terra, assim orei, que não pode sair do seu zodíaco, por meio das penas que tem junto a si, dá luz, dá calor, e dá vida a todas as partes da monarquia, ainda que ela se estenda fora de ambos os trópicos, como a do sol e a nossa: Et sanitas in pennis ejus. – Se as suas penas forem sãs e tão puras como os raios do sol, delas nascerá todo o bem e felicidade pública: mas se em vez de serem sãs forem corruptas, e não como raios do sol, senão como raios, elas serão a causa de todas as ruínas e de todas as calamidades. Se perguntardes aos gramáticos donde se deriva este nome calamidade: calamitas, responder-vos-ão que de calamo. E que quer dizer calamo? Quer dizer cana e pena, porque as penas antigamente faziam-se de certas canas delgadas. Por sinal que diz Plínio que as melhores do mundo eram as da nossa Lusitânia. Esta derivação ainda é mais certa na política que na gramática. Se as penas de que se serve o rei não forem sãs, destes cálamos se derivarão todas as calamidades públicas, e serão o veneno e enfermidade mortal da monarquia, em vez de serem a saúde dela: Sanitas in pennis ejus.
O rei de que fala neste lugar Malaquias é o Rei dos Reis, Cristo,e as penas com que ele deu saúde ao mundo, todos sabemos que são as dos quatro evangelistas, e essas assistidas do Espírito Santo. Para que advirtam os evangelistas dos príncipes a verdade, a pureza, a inteireza que devem imitar as suas penas, e como em tudo se hão de mover pelo impulso soberano, e em nada por afeto próprio. Se as suas escrituras as pomos sobre a cabeça como sagradas, seja cada uma delas um evangelho humano.
Porém se sucedesse alguma vez não ser assim, ou por desatenção das penas maiores, ou por corrupção das inferiores, de que elas se ajudam, julguem as consciências, sobre que carregam estes escrúpulos, se têm muito que examinar, e muito que confessar, e muito que restituir em negócios e matérias tantas e de tanto peso! Que possa isto suceder, e que tenha já sucedido, o profeta Jeremias o afirma: Vere mendacium operatus est stylus men-dax scribarum. Ou como lê o caldaico: Fecit calamum mendacii ad falsandas scripturas,[21] E suposto que isto não só é possível, mas já foi praticado e visto naquele tempo, bem é que saiba o nosso, quanto bastará para falsificar uma escritura. Bastará mudar um nome? Bastará mudar uma palavra? Bastará mudar uma cifra? Digo que muito menos basta. Não é necessário para falsificar uma escritura mudar nomes, nem palavras, nem cifras, nem ainda letras: basta mudar um ponto ou uma vírgula.
Perguntam os controversistas se assim como nas Sagradas Escrituras são de fé as palavras, serão também de fé os pontos e vírgulas? E respondem que sim, porque os pontos e vírgulas determinam o sentido das palavras, e variados os pontos e vírgulas, também o sentido se varia. Por isso antigamente havia um conselho chamado dos massoretas, cujo ofício era conservar incorruptamente em sua pureza a pontuação da Escritura. Esta é a galantaria misteriosa daquele texto dos Cânticos: Murenulas aureas faciemus tibi vermiculatas argento (Cânt. 1, 10). Diz o Esposo divino que fará à sua esposa umas arrecadas de ouro, esmaltadas ce prata; – e o esmalte, segundo se tira da raiz hebraica, era de pontos e vírgulas, porque, em lugar de vermiculatas, lêem outros: punctatas, virgulatas argento. Mas s as arrecadas eram de ouro, por que eram os esmaltes de prata, e formados de pontos e vírgulas? Porque as arrecadas são ornamento das orelhas, onde está o sentido da fé: Fides ex auditu[22] (Rom. 10, 17), e nas palavras de fé, ainda que os pontos e vírgulas pareçam de menos consideração, assim como a prata é de menos preço que o ouro, também pertencem à fé tanto como as mesmas palavras. As palavras, porque formam o significado; os pontos e vírgulas, porque distinguem e determinam o sentido. Exemplo: Surrexit, non est hic (Mc. 16, 6): Ressuscitou, não está aqui. – Com estas palavras diz o evangelista que Cristo ressuscitou, e com as mesmas palavras, se se mudar a pontuação, pode dizer um herege que Cristo não ressuscitou: Surrexit? Non. Est hic. Ressuscitou? Não. Está aqui. – De maneira que só com trocar pontos e vírgulas, com as mesmas palavras, se diz que Cristo ressuscitou, e é fé, e com as mesmas se diz que Cristo não ressuscitou, e é heresia. Vede quão arriscado ofício o de uma pena na mão. Ofício que, com mudar um ponto ou uma vírgula, da heresia pode fazer fé, e da fé pode fazer heresia. Oh! que escrupuloso ofício!
E se a mudança de um ponto e de uma vírgula pode fazer tantos erros e tantos danos, que seria se se mudassem palavras? Que seria se se diminuíssem palavras? Que seria se se acrescentassem palavras? Torno a dizer: se a mudança de um ponto e de uma vírgula pode ser causa de tantos danos, que seria se se calassem regras? Que seria se faltassem capítulos? Que seria se se sepultassem papéis e informações inteiras? E que seria se, em vez de se presentarem a quem havia de pôr o remédio, se entregassem a quem havia de executar a vingança? Tudo isto pode caber em uma pena, e eu não sei como pode caber em uma confissão. Pois é certo que se confessam, e muitas vezes, os que isso fazem, e que não falta quem absolva estas confissões, ou quem se queira condenar pelas absolver. Mas eu nem absolvo os confessados, nem condeno os confessores, porque só me admiro com as turbas: Et admiratae sufi turbae.
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Notas:
[1] Depois de ter expelido o demônio, falou o mudo, e se admiraram as gentes (Lc. 11, 14).
[17] Se dormirdes entre o meio das sortes (herdades), sereis como as penas da pomba, argentadas, e os remates do lombo dela em amarelidão de ouro (SI. 67, 14).
[18] O poder da terra está na mão de Deus, e ele a seu tempo suscitará um governador útil. A prosperi¬dade do homem está na mão de Deus, e é ele que põe o sinal da sua majestade sobre a fronte do escriba (Eclo. 10, 4).
[19] Cornelius, hic Scribae vocabantur qui erant proximi a rege, quorum erat nomine regis decreta concipere, scribere, promulgare, conservare
[20] Nascerá o sol da justiça, e estará a salvação nas suas asas (Mal. 4, 2).
[21] Verdadeiramente o ponteiro mentiroso dos escribas gravou a mentira (Jer. 8, 8). [22] A fé pelo ouvido (Rom.10,17).
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