Deparei-me, por acaso, com este artigo escrito por Alessandro Gnocchi, companheiro inseparável de Mario Palmaro, falecido em março passado, com quem dividiu a pena em vários livros de leitura agradável, que lembra o inesquecível Giovannino Guareschi. Em minha modesta opinião, deve ter feito um passeio em Loreto e voltou de lá escandalizado com a maneira "moderna" de confessar da igreja de Francisco. Eu estava pesquisando algo e encontrei uma "resposta" de algum responsável de Loreto ao artigo de Gnocchi, publicado em Il Foglio, no dia 10 de setembro passado, e que, pela resposta, parecia mais preocupado em indicar um local físico para Gnocchi, do que explicar por que eliminaram um sacramento da igreja, substituindo-o com conversas fiadas que mantêm o homem escravo do pecado, doente, sujeitado a ir para o Inferno... Os grifos e textos entre [colchete] são nossos.
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Se, em um dia de final de verão, um peregrino se aventurasse no Santuário de Loreto, em busca de um confessor, tome cuidado ao circular entre os confessionários colocados ao redor da Santa Casa. Procure, ao invés disso, alguma capela menor, pode ser que encontre um frade acomodado em uma cadeira, um fiel nem sempre de joelhos e um pequeno grupo em apressada espera: isso significa que chegou onde pretendia.
Mas, sobretudo, se abstenha o peregrino de bisbilhotar com o olhar a Capela dos eslavos, onde um lacônico cartaz adverte, em letras garrafais: “Aqui, não confissões, mas diálogo e escuta”, e um oportuno folheto explica que o "Ponto de escuta" é ativo todos os dias, das 10:00 às 12:00 e das 16:00 às 18:00. Ali, a um pulo da casa na qual Maria disse o seu "Sim" ao Anjo que lhe anunciava a Encarnação do Verbo, as almas não encontram o bálsamo celestial que cure suas feridas, mas o pão dormido da tagarelice mundana.
Uma mesinha com um pano vermelho jogado por cima, duas cadeiras e - das 10:00 às 12:00 e das 16:00 às 18:00 - às vezes um frade, às vezes uma freira, às vezes talvez um expert: para falar onde seria melhor calar; para ficar à vontade, onde deveria se estar de joelhos; para suspirar e divagar, onde se precisaria contemplar. Enfim, para deixar que cada um se vá do jeito que chegou, sem que um sacerdote, em nome de Cristo, tenha cuidado, com misericordiosa dureza, das chagas que em outros lugares não podem encontrar alívio.
Ainda assim, o melancólico aviso colocado sobre a balaústra da Capela dos eslavos pretende fazer crer que, na troca, é possível sair ganhando. O “Aqui, não confissões”, seguido por um “mas” adversativo, promete oferecer bem mais com o “diálogo e escuta”. Deixa entender que ali, sob o olhar dos Santos Cirilo e Metódio, que converteram a Europa Oriental à fé em Cristo, se pode encontrar, na compreensão de um ser humano, algo mais do que no perdão do Filho de Deus. Eloquente exibição do desejo louco de render-se ao mundo por parte de uma igreja rebelde ao dogma que transmite a Verdade, e aos sacramentos através dos quais escorre a Graça.
Mas onde o dogma obscurece e o sacramento eclipsa, permanece a técnica nua, e o bate-papo usurpa o papel da confissão. Até mesmo dentro dos gloriosos santuários visitados por milhares de peregrinos, se manifestam o obscurecimento do ser e o domínio tecnocrático temidos por Heidegger quando o cheiro de uma juventude católica voltava a acariciar suas narinas intelectuais. “O tempo é pobre, não só porque Deus está morto, mas porque (...) a morte retira-se para o enigmático” – lamentava o filósofo de Messkirch, em “Porque os poetas?” – “O mistério da dor permanece velado. Não se aprende a amar (...). Pobre é esta mesma pobreza porque desaparece a região essencial na qual dor, morte e amor se recolhem”.
Fiéis sem mais fé, ateus sem mais ateísmo que escorrem dentro e ao redor da Santa Casa de Nazaré carregam em seu coração a mesma dor do filósofo alemão. E, juntos, têm a secreta esperança de tornar menos pobre a pobreza de um mundo em que têm dificuldade em ver os rastros de Deus. Não estão à procura de algo ou alguém que funcione perfeitamente em horário comercial, porque isso eles têm em demasia no dia a dia. Pelo menos dentro do recinto sagrado, gostariam de poder se libertar da tirania da técnica que reclama a espoliação do homem.
Como o Heidegger de “Agora, somente um Deus pode nos salvar” [foi traduzido para o português como “Já, somente um Deus pode nos salvar”, mas “ormai”, que também pode ser traduzido como “já”, aqui está mais para “agora” [cf. aqui], os peregrinos estão aterrorizados pelo fato de que “Tudo funciona. É precisamente isso que é inquietante: que funciona, e o funcionar impele sempre além, para um ulterior funcionar, e a técnica arranca e erradica o homem da terra cada vez mais (...). Não precisa da bomba atômica: a erradicação do homem já foi feita. Tudo o que resta é uma situação puramente técnica. Já não é mais a Terra aquela na qual o homem hoje vive”. Mas, depois, vindos em busca de raízes vivas junto à Casa na qual o Verbo se fez carne, este buscadores sofridos se encontram na presença de pobres bate-papos de um técnico colocado em exposição sobre o balcão, em nome de uma mercantil pluralidade de ofertas. QuandoCharles de Foucauld se converteu ao Catolicismo, em outubro de 1886, foi por meio de um sacerdote que não deu espaço algum ao diálogo e à escuta.
Ele mesmo o narra em suas memórias, falando com o Senhor, lembrando-Lhe as quatro graças lhe concedeu naqueles momentos: “A terceira graça foi de me sugerir: ponemo-nos a estudar, portanto, essa religião; assumamos um professor de religião católica, um padre instruído, e vejamos o que sai disso e se será o caso de crer naquilo que ele diz. A quarta foi a grande graça incomparável de enviar-me, para essas tais lições de religião, a M. Huvelin. Fazendo-me entrar em seu confessionário, um dos últimos dias de outubro, entre os dias 27 e 30, penso que, Vós, meu Deus, realmente me encheste de todos os bens (...). Eu pedi aulas de religião: ele me botou de joelhos e me fez confessar, e me mandou para comungar, imediatamente...”.
O Abbé Henri Huvelin, vigário paroquial de Saint Augustin, em Paris, intuiu que havia chegado o momento, e que não precisava mais investigar os desejos de busca intelectual daquele jovem inquieto. Era preciso apenas induzi-lo, com determinação, a um ato de humilde confissão e de pedido de perdão a Deus. “Queria que me instruísse na fé”, disse o jovem Charles. “Ajoelhai-vos. Confessai-vos a Deus e acreditareis”: e o jovem Charles se ajoelhou, se confessou, acreditou e comungou. Acolher a fé dentro da própria inteligência após um ato de assentimento da vontade, como fez De Foucauld, é o que, no Evangelho, São João descreve dizendo em uma linha maravilhosa: “quem pratica a verdade, vem para a luz” (João3 1,21).
Não foi igualmente frutuoso o destino de Simone Weil [uma feminista antes do feminismo], morta em 1943, aos 34 anos, depois de uma vida feita de austeridade, de dedicação ao próximo, de estudo, de dolorosa contiguidade com a mística, de atenção para com a Igreja Católica, sem se decidir a dar o passo definitivo. Cristina Campo, na esplêndida introdução à sua “À espera de Deus”, vê, na origem da falha em abraçar o Corpo Místico de Cristo, a indecisão do padre dominicano Joseph Marie Perrin, “a timidez apostólica, a caridade muito mais sentimental do que espiritual do religioso que tentou instrui-la. (...) A revelação de uma igreja pura, porque tremenda, piedosa porque inflexível, em total contradição com o mundo, tetrágona e ardente, certamente não aterrorizaria Simone Weil”.
Aquilo que o Abbé Huvelin tinha bem em mente e que, ao contrário, fugia ao Padre Perrin, é narrado quase didaticamente por Manzoni, na conversão do Inominado [Personagem do livro "Os Noivos", marco da literatura italiana e leitura obrigatória a todos os estudantes do ensino secundário]. Paride Zajotti, amargo letrado do século XIX, se queixava de que, em “Os Noivos”, o nascimento para uma nova vida do inquieto cavalheiro não fosse reconhecido justamente. “Se o Inomidado”, dizia Zajotti, “como aduz Rivola, seu primeiro biógrafo, se converteu depois do colóquio com o Cardeal Borromeu, por que tirar o mérito ao cardeal para dá-lo a Lúcia, aos seus olhos, à sua voz suave, às suas palavras, ao voto [que ela fez]?”.
Mas, analisando melhor, o Inominado não “foi convertido”, mas “se converteu” antes de chegar à presença de Borromeu. O cardeal o segura, ao perceber a mudança em seu coração e em sua inteligência: “Deus! Deus! Deus! Se eu o visse! Se eu o ouvisse! Onde está esse Deus?”, [e lhe responde o cardeal:] “E quem mais do que vós Lhe está mais perto? Não O sentis no coração que vos agita?”. E parece que estamos lendo Pascal: “Tu não me procurarias se já não tivesse Me encontrado”. O sacerdote é aquele que revela a conversão; como “alter Christus”, está lá para sancionar o que Deus operou. “Está lá”, comenta Monsenhor Cesare Angelini, “para receber a legitimidade daquilo que ocorreu, e para curar o passado”.
O Inominado não pede “apenas diálogo e escuta”, mas que o Único capaz de fazê-lo cure o seu passado. Pede a justiça e a carícia que Santo Agostinho descreve em seu sermão sobre a adúltera salva do apedrejamento: “E todos saíram de cena. Sozinhos ficaram, Ele e ela; restou o Criador e a criatura; restou a miséria e a misericórdia; restou ela, consciente de seu crime, e Ele, que lhe perdoava o pecado. (...) Ela se acusou. Os outros não puderam trazer as provas e fugiram. Ela, ao contrário, confessou; o seu Senhor não ignorava a culpa, mas buscava nela a fé e confissão”.
Mas, para imitar o Mestre, para prestar-lhe a própria pessoa no sacramento, é necessário um profundo e perfeito sentido do pecado que, na igreja de hoje, é moeda cada vez mais rara. “Por que”, perguntava Cristina Campo, em uma carta a María Zambrano, no terceiro domingo do Advento de 1965, “ainda se celebra a festa dogmática da Única Imaculada, enquanto se nega implicitamente, de mil maneiras, a maculação [no original, usa-se “maculazione”, que não existe em italiano, mas foi usado de propósito, ao falar do pecado, como mancha, mácula] de todos os outros? Em um mundo no qual já não se reconhecem mais – não digo o sacrilégio, a heresia, a blasfêmia, a predestinação para o mal – mas o simples conceito de pecado”.
Privada deste conceito, a confissão só pode se tornar conversa fiada, “escuta e diálogo”, que ocuparão um altar após o outro, uma capela após a outra, uma igreja após a outra. Não é coincidência que os confessionários já tenham caído em desuso. Achados arqueológicos de uma religião na qual muitos se confessavam e poucos ousavam se apresentar à comunhão são incompreensíveis onde se pratica uma religião em que quase ninguém se confessa e todos correm a comungar.
Diante de tal mutação, é preciso ter a coragem de se perguntar se continua se tratando da mesma religião. E surge mais de uma dúvida, se não queremos mesmo falar de certeza, se pensamos que, onde agora com dificuldade se encontra um padre de estola roxa sentado em uma banqueta, antes se erguiam grandiosas obras de arte erigidas à misericórdia e à justiça divinas. Basta pensar ao esplendor dos confessionários de Andrea Fantoni, nascidos no severo e sintético Catolicismo de Bergamo, na virada do século XVII para o XVIII, para sentir nostalgia de uma fé cada vez mais em recuo, mesmo nos vales dos outrora catoliquíssimos Orobie [Alpes próximos a Bergamo].
Hoje não mais, mas até uns cinquenta anos atrás, mesmo as reacionárias e silentes almas bergamascas encontravam o que dizer na confissão que, de acordo com São Tomas, como parte do sacramento, possui o seu determinado ato, que é o de manifestar as próprias culpas, dizendo-as com a própria boca. Uma confissão feita à perfeição, diz ainda o Doutor de Aquino, exige muitas condições: que seja íntegra, simples, humilde, discreta, fiel, vocal, contrita, pura e pronta à obediência. Todo um conceito que pouco ou nada tem a ver com a técnica do “escuta e dialogo”.
Certas confissões, certas conversas fiadas de hoje parecem feitas sob medida para dar razão ao Maquiavel de “A Mandrágora” [peça teatral escrita por Nicolau Maquiavel e que está no Índex, como todas as obras dele], que encena a paródia por obra de Frei Timóteo e Dona Lucrécia. Pura técnica burlesca que serve para o terrível florentino apresentar o sacramento como um sutil instrumento de controle social para o uso do clero.
Mas é outro o florentino a quem devemos recorrer para entender o que é realmente e para onde leva a confissão. No nono canto do Purgatório, Dante descreve esse sacramento com amável e paciente minúcia, tomando como fonte rituais e manuais como os “Ordo reconciliationis poenitentium” e os “Ordo ad dandam poenitentiam”. Chegado diante de um anjo da guarda armado de espada, que representa o confessor, o viajante penitente nota três degraus. O primeiro, de “um branco mármore tão limpo e terso”, representa a acusação sincera do pecado cometido. O segundo, “escuro mais do que brunido / de uma pedra áspera e calcinada / fendida em cruz, ao longo e de través”, como explica o Anônimo florentino comentarista de Dante, simboliza a vergonha em dizer o próprio pecado em voz alta. O terceiro, que “Pórfiro me parecia de tão chamejante / como sangue para fora da veia chispa”, designa o ardor de caridade para com Deus, que impele a expiar o pecado mesmo à custa do martírio, moral ou material. O anjo, cujos pés estão sobre o terceiro degrau, senta-se à soleira, “que me parecia pedra de diamante”; alegoria da força com que o penitente deve manter o seus propósitos. Devoto, me atirei aos santos pés / misericórdia pedi e que ele me abrisse (a porta) / mas três vezes primeiro me bati no peito”. “Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa”, recita, ainda hoje, batendo-se no peito, no “Confiteor”, quem quer professar, também na confissão, a mesma fé de Dante, com as mesmas palavras. Em seguida, o anjo traça com a ponta da espada sete “P”, na testa do penitente, para lembrar-lhe os sete pecados capitais e a inclinação para o pecado contra a qual terá que combater, começando pela execução da penitência imposta pelo confessor.
A misericórdia de Deus não se concretiza em “escuta e diálogo”, no nivelar os degraus que o penitente deve subir na confissão. Pelo contrário, se encontra na instrução recebida pelo anjo da guarda diretamente de São Pedro: que erraria mais negando do que concedendo a absolvição, a pacto de que seja pedida com sincera humildade, “contanto que as gentes a meus pés se prostrem”.
Isso não significa, como soaria aos ouvidos modernos, humilhar a criatura humana, mas amá-la até o seu íntimo, desejando a salvação, sobre a qual, porém, cada homem decide por si só com pensamentos, palavras e ações. “Quia peccavi nimis cogitazione, verbo et opere, mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa” [palavras do “Confiteor”]. E, muitas vezes, são sempre os mesmos pensamentos, palavras e ações que nos fazem cair em tentação. Por isso, o anjo se dirige a Dante e a seu guia após a absolvição, admoestando: “Entrais, mas vos aviso / que para fora retorna quem para trás olha”; quem comete o mesmo pecado volta novamente ao estado de inimizade com Deus.
Uma advertência que lembra o nono capítulo do Evangelho de São Lucas [9,62]: “Nemo mittens manun ad aratrum et respiciens retro aptus est regno Dei”, aquele que coloca a mão no arado e olha para trás não é apto para o Reino de Deus.
Mas, depois de uma sessão de “escuta e diálogo”, em que nada é dado e nada é pedido, não está claro onde exatamente o peregrino, que um dia de fim do verão se tenha aventurado em certas igrejas, possa encontrar a força para olhar adiante.
Fonte: http://www.corrispondenzaromana.it/notizie-dalla-rete/loreto-sconfessata/.
Tradução: Giulia d'Amore.
Loreto desconfessada
por Alessandro Gnocchi para “Il Foglio”.
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Se, em um dia de final de verão, um peregrino se aventurasse no Santuário de Loreto, em busca de um confessor, tome cuidado ao circular entre os confessionários colocados ao redor da Santa Casa. Procure, ao invés disso, alguma capela menor, pode ser que encontre um frade acomodado em uma cadeira, um fiel nem sempre de joelhos e um pequeno grupo em apressada espera: isso significa que chegou onde pretendia.
Mas, sobretudo, se abstenha o peregrino de bisbilhotar com o olhar a Capela dos eslavos, onde um lacônico cartaz adverte, em letras garrafais: “Aqui, não confissões, mas diálogo e escuta”, e um oportuno folheto explica que o "Ponto de escuta" é ativo todos os dias, das 10:00 às 12:00 e das 16:00 às 18:00. Ali, a um pulo da casa na qual Maria disse o seu "Sim" ao Anjo que lhe anunciava a Encarnação do Verbo, as almas não encontram o bálsamo celestial que cure suas feridas, mas o pão dormido da tagarelice mundana.
Uma mesinha com um pano vermelho jogado por cima, duas cadeiras e - das 10:00 às 12:00 e das 16:00 às 18:00 - às vezes um frade, às vezes uma freira, às vezes talvez um expert: para falar onde seria melhor calar; para ficar à vontade, onde deveria se estar de joelhos; para suspirar e divagar, onde se precisaria contemplar. Enfim, para deixar que cada um se vá do jeito que chegou, sem que um sacerdote, em nome de Cristo, tenha cuidado, com misericordiosa dureza, das chagas que em outros lugares não podem encontrar alívio.
Ainda assim, o melancólico aviso colocado sobre a balaústra da Capela dos eslavos pretende fazer crer que, na troca, é possível sair ganhando. O “Aqui, não confissões”, seguido por um “mas” adversativo, promete oferecer bem mais com o “diálogo e escuta”. Deixa entender que ali, sob o olhar dos Santos Cirilo e Metódio, que converteram a Europa Oriental à fé em Cristo, se pode encontrar, na compreensão de um ser humano, algo mais do que no perdão do Filho de Deus. Eloquente exibição do desejo louco de render-se ao mundo por parte de uma igreja rebelde ao dogma que transmite a Verdade, e aos sacramentos através dos quais escorre a Graça.
Mas onde o dogma obscurece e o sacramento eclipsa, permanece a técnica nua, e o bate-papo usurpa o papel da confissão. Até mesmo dentro dos gloriosos santuários visitados por milhares de peregrinos, se manifestam o obscurecimento do ser e o domínio tecnocrático temidos por Heidegger quando o cheiro de uma juventude católica voltava a acariciar suas narinas intelectuais. “O tempo é pobre, não só porque Deus está morto, mas porque (...) a morte retira-se para o enigmático” – lamentava o filósofo de Messkirch, em “Porque os poetas?” – “O mistério da dor permanece velado. Não se aprende a amar (...). Pobre é esta mesma pobreza porque desaparece a região essencial na qual dor, morte e amor se recolhem”.
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Como o Heidegger de “Agora, somente um Deus pode nos salvar” [foi traduzido para o português como “Já, somente um Deus pode nos salvar”, mas “ormai”, que também pode ser traduzido como “já”, aqui está mais para “agora” [cf. aqui], os peregrinos estão aterrorizados pelo fato de que “Tudo funciona. É precisamente isso que é inquietante: que funciona, e o funcionar impele sempre além, para um ulterior funcionar, e a técnica arranca e erradica o homem da terra cada vez mais (...). Não precisa da bomba atômica: a erradicação do homem já foi feita. Tudo o que resta é uma situação puramente técnica. Já não é mais a Terra aquela na qual o homem hoje vive”. Mas, depois, vindos em busca de raízes vivas junto à Casa na qual o Verbo se fez carne, este buscadores sofridos se encontram na presença de pobres bate-papos de um técnico colocado em exposição sobre o balcão, em nome de uma mercantil pluralidade de ofertas. Quando
Ele mesmo o narra em suas memórias, falando com o Senhor, lembrando-Lhe as quatro graças lhe concedeu naqueles momentos: “A terceira graça foi de me sugerir: ponemo-nos a estudar, portanto, essa religião; assumamos um professor de religião católica, um padre instruído, e vejamos o que sai disso e se será o caso de crer naquilo que ele diz. A quarta foi a grande graça incomparável de enviar-me, para essas tais lições de religião, a M. Huvelin. Fazendo-me entrar em seu confessionário, um dos últimos dias de outubro, entre os dias 27 e 30, penso que, Vós, meu Deus, realmente me encheste de todos os bens (...). Eu pedi aulas de religião: ele me botou de joelhos e me fez confessar, e me mandou para comungar, imediatamente...”.
O Abbé Henri Huvelin, vigário paroquial de Saint Augustin, em Paris, intuiu que havia chegado o momento, e que não precisava mais investigar os desejos de busca intelectual daquele jovem inquieto. Era preciso apenas induzi-lo, com determinação, a um ato de humilde confissão e de pedido de perdão a Deus. “Queria que me instruísse na fé”, disse o jovem Charles. “Ajoelhai-vos. Confessai-vos a Deus e acreditareis”: e o jovem Charles se ajoelhou, se confessou, acreditou e comungou. Acolher a fé dentro da própria inteligência após um ato de assentimento da vontade, como fez De Foucauld, é o que, no Evangelho, São João descreve dizendo em uma linha maravilhosa: “quem pratica a verdade, vem para a luz” (João3 1,21).
Não foi igualmente frutuoso o destino de Simone Weil [uma feminista antes do feminismo], morta em 1943, aos 34 anos, depois de uma vida feita de austeridade, de dedicação ao próximo, de estudo, de dolorosa contiguidade com a mística, de atenção para com a Igreja Católica, sem se decidir a dar o passo definitivo. Cristina Campo, na esplêndida introdução à sua “À espera de Deus”, vê, na origem da falha em abraçar o Corpo Místico de Cristo, a indecisão do padre dominicano Joseph Marie Perrin, “a timidez apostólica, a caridade muito mais sentimental do que espiritual do religioso que tentou instrui-la. (...) A revelação de uma igreja pura, porque tremenda, piedosa porque inflexível, em total contradição com o mundo, tetrágona e ardente, certamente não aterrorizaria Simone Weil”.
Aquilo que o Abbé Huvelin tinha bem em mente e que, ao contrário, fugia ao Padre Perrin, é narrado quase didaticamente por Manzoni, na conversão do Inominado [Personagem do livro "Os Noivos", marco da literatura italiana e leitura obrigatória a todos os estudantes do ensino secundário]. Paride Zajotti, amargo letrado do século XIX, se queixava de que, em “Os Noivos”, o nascimento para uma nova vida do inquieto cavalheiro não fosse reconhecido justamente. “Se o Inomidado”, dizia Zajotti, “como aduz Rivola, seu primeiro biógrafo, se converteu depois do colóquio com o Cardeal Borromeu, por que tirar o mérito ao cardeal para dá-lo a Lúcia, aos seus olhos, à sua voz suave, às suas palavras, ao voto [que ela fez]?”.
Mas, analisando melhor, o Inominado não “foi convertido”, mas “se converteu” antes de chegar à presença de Borromeu. O cardeal o segura, ao perceber a mudança em seu coração e em sua inteligência: “Deus! Deus! Deus! Se eu o visse! Se eu o ouvisse! Onde está esse Deus?”, [e lhe responde o cardeal:] “E quem mais do que vós Lhe está mais perto? Não O sentis no coração que vos agita?”. E parece que estamos lendo Pascal: “Tu não me procurarias se já não tivesse Me encontrado”. O sacerdote é aquele que revela a conversão; como “alter Christus”, está lá para sancionar o que Deus operou. “Está lá”, comenta Monsenhor Cesare Angelini, “para receber a legitimidade daquilo que ocorreu, e para curar o passado”.
O Inominado não pede “apenas diálogo e escuta”, mas que o Único capaz de fazê-lo cure o seu passado. Pede a justiça e a carícia que Santo Agostinho descreve em seu sermão sobre a adúltera salva do apedrejamento: “E todos saíram de cena. Sozinhos ficaram, Ele e ela; restou o Criador e a criatura; restou a miséria e a misericórdia; restou ela, consciente de seu crime, e Ele, que lhe perdoava o pecado. (...) Ela se acusou. Os outros não puderam trazer as provas e fugiram. Ela, ao contrário, confessou; o seu Senhor não ignorava a culpa, mas buscava nela a fé e confissão”.
Mas, para imitar o Mestre, para prestar-lhe a própria pessoa no sacramento, é necessário um profundo e perfeito sentido do pecado que, na igreja de hoje, é moeda cada vez mais rara. “Por que”, perguntava Cristina Campo, em uma carta a María Zambrano, no terceiro domingo do Advento de 1965, “ainda se celebra a festa dogmática da Única Imaculada, enquanto se nega implicitamente, de mil maneiras, a maculação [no original, usa-se “maculazione”, que não existe em italiano, mas foi usado de propósito, ao falar do pecado, como mancha, mácula] de todos os outros? Em um mundo no qual já não se reconhecem mais – não digo o sacrilégio, a heresia, a blasfêmia, a predestinação para o mal – mas o simples conceito de pecado”.
Privada deste conceito, a confissão só pode se tornar conversa fiada, “escuta e diálogo”, que ocuparão um altar após o outro, uma capela após a outra, uma igreja após a outra. Não é coincidência que os confessionários já tenham caído em desuso. Achados arqueológicos de uma religião na qual muitos se confessavam e poucos ousavam se apresentar à comunhão são incompreensíveis onde se pratica uma religião em que quase ninguém se confessa e todos correm a comungar.
Belíssimo confessionário de Andrea Fantoni, ricamente entalhado com várias esculturas, dominado por Deus Todopoderoso. clique para ver melhor |
Diante de tal mutação, é preciso ter a coragem de se perguntar se continua se tratando da mesma religião. E surge mais de uma dúvida, se não queremos mesmo falar de certeza, se pensamos que, onde agora com dificuldade se encontra um padre de estola roxa sentado em uma banqueta, antes se erguiam grandiosas obras de arte erigidas à misericórdia e à justiça divinas. Basta pensar ao esplendor dos confessionários de Andrea Fantoni, nascidos no severo e sintético Catolicismo de Bergamo, na virada do século XVII para o XVIII, para sentir nostalgia de uma fé cada vez mais em recuo, mesmo nos vales dos outrora catoliquíssimos Orobie [Alpes próximos a Bergamo].
Hoje não mais, mas até uns cinquenta anos atrás, mesmo as reacionárias e silentes almas bergamascas encontravam o que dizer na confissão que, de acordo com São Tomas, como parte do sacramento, possui o seu determinado ato, que é o de manifestar as próprias culpas, dizendo-as com a própria boca. Uma confissão feita à perfeição, diz ainda o Doutor de Aquino, exige muitas condições: que seja íntegra, simples, humilde, discreta, fiel, vocal, contrita, pura e pronta à obediência. Todo um conceito que pouco ou nada tem a ver com a técnica do “escuta e dialogo”.
Certas confissões, certas conversas fiadas de hoje parecem feitas sob medida para dar razão ao Maquiavel de “A Mandrágora” [peça teatral escrita por Nicolau Maquiavel e que está no Índex, como todas as obras dele], que encena a paródia por obra de Frei Timóteo e Dona Lucrécia. Pura técnica burlesca que serve para o terrível florentino apresentar o sacramento como um sutil instrumento de controle social para o uso do clero.
Mas é outro o florentino a quem devemos recorrer para entender o que é realmente e para onde leva a confissão. No nono canto do Purgatório, Dante descreve esse sacramento com amável e paciente minúcia, tomando como fonte rituais e manuais como os “Ordo reconciliationis poenitentium” e os “Ordo ad dandam poenitentiam”. Chegado diante de um anjo da guarda armado de espada, que representa o confessor, o viajante penitente nota três degraus. O primeiro, de “um branco mármore tão limpo e terso”, representa a acusação sincera do pecado cometido. O segundo, “escuro mais do que brunido / de uma pedra áspera e calcinada / fendida em cruz, ao longo e de través”, como explica o Anônimo florentino comentarista de Dante, simboliza a vergonha em dizer o próprio pecado em voz alta. O terceiro, que “Pórfiro me parecia de tão chamejante / como sangue para fora da veia chispa”, designa o ardor de caridade para com Deus, que impele a expiar o pecado mesmo à custa do martírio, moral ou material. O anjo, cujos pés estão sobre o terceiro degrau, senta-se à soleira, “que me parecia pedra de diamante”; alegoria da força com que o penitente deve manter o seus propósitos. Devoto, me atirei aos santos pés / misericórdia pedi e que ele me abrisse (a porta) / mas três vezes primeiro me bati no peito”. “Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa”, recita, ainda hoje, batendo-se no peito, no “Confiteor”, quem quer professar, também na confissão, a mesma fé de Dante, com as mesmas palavras. Em seguida, o anjo traça com a ponta da espada sete “P”, na testa do penitente, para lembrar-lhe os sete pecados capitais e a inclinação para o pecado contra a qual terá que combater, começando pela execução da penitência imposta pelo confessor.
A misericórdia de Deus não se concretiza em “escuta e diálogo”, no nivelar os degraus que o penitente deve subir na confissão. Pelo contrário, se encontra na instrução recebida pelo anjo da guarda diretamente de São Pedro: que erraria mais negando do que concedendo a absolvição, a pacto de que seja pedida com sincera humildade, “contanto que as gentes a meus pés se prostrem”.
Isso não significa, como soaria aos ouvidos modernos, humilhar a criatura humana, mas amá-la até o seu íntimo, desejando a salvação, sobre a qual, porém, cada homem decide por si só com pensamentos, palavras e ações. “Quia peccavi nimis cogitazione, verbo et opere, mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa” [palavras do “Confiteor”]. E, muitas vezes, são sempre os mesmos pensamentos, palavras e ações que nos fazem cair em tentação. Por isso, o anjo se dirige a Dante e a seu guia após a absolvição, admoestando: “Entrais, mas vos aviso / que para fora retorna quem para trás olha”; quem comete o mesmo pecado volta novamente ao estado de inimizade com Deus.
Uma advertência que lembra o nono capítulo do Evangelho de São Lucas [9,62]: “Nemo mittens manun ad aratrum et respiciens retro aptus est regno Dei”, aquele que coloca a mão no arado e olha para trás não é apto para o Reino de Deus.
Mas, depois de uma sessão de “escuta e diálogo”, em que nada é dado e nada é pedido, não está claro onde exatamente o peregrino, que um dia de fim do verão se tenha aventurado em certas igrejas, possa encontrar a força para olhar adiante.
Fonte: http://www.corrispondenzaromana.it/notizie-dalla-rete/loreto-sconfessata/.
Tradução: Giulia d'Amore.
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