Conceito medieval da família: muitas gerações unidas por uma mesma herança espiritual e material
A família foi a alma viva da ordem cristã medieval. A sua influência continuou - e continúa - muito depois. Eis como o erudito Mons. Delassus nos fala de seu benêfico influxo nos séculos passados:
"Citemos como exemplo algumas linhas extraídas do livro de família (*) de André d'Ormesson, conselheiro de Estado [na França] no século XVII:
Que nossos filhos conheçam aqueles dos quais descendem por parte de pai e mãe, que eles sejam incitados a rezar a Deus pelas suas almas e a bendizer a memória das pessoas que, com a graça de Deus, honraram a sua casa e adquiriram os bens de que eles usufruem.
"Outro pai de família escreve em 1807: Encontrareis, meus filhos, uma seqüência de ancestrais estimados, considerados, honrados na sua região e por todos os seus concidadãos. Uma existência honesta, uma fortuna mediana, mas uma reputação sem mancha, eis o capital que vem sendo transmitido, durante quatrocentos anos, por onze pais de família que jamais abandonaram o nome que receberam nem a terra em que nasceram.
"Por esta palavra família, portanto, não se entendia somente, como hoje, apenas o pai, a mãe e os filhos, mas toda a linhagem dos ancestrais e a dos descendentes que viriam.
"Para ser assim una e contínua através dos séculos, ela tinha não somente a continuidade do sangue, mas também, se assim se pode dizer, um corpo e uma alma perpétuos. O corpo era o bem de família que cada geração recebia dos ancestrais, como depósito sagrado. Ela o conservava religiosamente, esforçava-se para aumentá-lo e o transmitia fielmente às gerações seguintes. A alma eram as tradições, isto é, as idéias dos antepassados e seus sentimentos, bem como os hábitos e costumes que daí decorriam.
"Uma lei escrita no coração dos franceses, consagrada por um costume multissecular, assegurava a transmissão do patrimônio de uma geração a outra. E um tríplice ensinamento: o primeiro, dado pela conduta dos pais que os filhos tinham diante dos olhos; o segundo, que lhes era ensinado pelas exortações, conselhos e admoestações que recebiam; e o terceiro, contido nos escritos, chamados livros de contas ou livros de família, mantidos e atualizados por cada geração. Tudo isso garantia a transmissão das tradições familiares.
"Hoje em dia os livros de família não existem mais, nem mesmo sob a forma de recordações, a não ser nos arquivos dos eruditos. O patrimônio só é considerado pelos filhos como um butim a ser dividido. E quantos há, entre nós, que podem citar os nomes de seus bisavós?
"A família não mais existe na França. E é isso, digamo-lo de passagem, que explica os parcos resultados obtidos pelos padres e religiosos que tiveram em mãos, durante meio século, o ensino primário e secundário de mais da metade da população. Suas lições não mais encontravam, como base para assentar-se, aquele fundamento sólido que as tradições de família devem inculcar na alma da criança.
"Não é só a família que já não existe na França, mas não resta mais nada da constituição social que a História viu originar-se da família em todos os povos civilizados. A família real foi decapitada, as famílias aristocráticas foram dizimadas, e aquelas que escaparam ao massacre e à ruína foram colocadas, pelas leis, na impossibilidade de agir e até mesmo de conservar sua posição. Enfim, as mesmas leis colocam as famílias burguesas e proletárias na impotência para se elevarem de modo contínuo.
"Nem em Atenas nem em Roma a sociedade se reergueu, uma vez desmoronada sobre si mesma. O Cristianismo nos dá os meios de regeneração dos quais as sociedades pagãs não dispunham. Saberemos empregá-los?
"Durante um século, todos os nossos esforços fracassaram. Por quê? Porque sofrendo a ação deprimente das leis e dos costumes, baseadas nos sofismas de Rousseau, nós só temos as vistas postas no indivíduo. Atuamos sobre o indivíduo, em vez de considerar a família e orientar nossos esforços para reconstituí-la. A família reconstituída produzirá de novo homens. Este é o clamor geral: Não temos mais homens! Se não temos mais homens, é porque não temos mais famílias para produzi-los. E não temos mais famílias porque a sociedade perdeu de vista o objetivo da sua própria existência, que não consiste em oferecer ao indivíduo o maior número possível de prazeres, mas em proteger a germinação das famílias e ajudá-las a elevar-se cada vez mais alto.
“A família, já o dissemos, tem dois sustentáculos: o lar e o livro da família, chamado na França Livro de Contas. Ambos quebrados pelas leis. O primeiro diretamente, e o segundo por via de conseqüência. A transmissão do lar e do patrimônio que o contém formava, entre as gerações sucessivas, o vínculo material que as unia uma à outra. A esse primeiro vínculo se juntava um outro, que eram a genealogia e os ensinamentos dos ancestrais, consignados no livro em que a genealogia era registrada....
“A situação dos bens da família de Antoine de Courtois, cujo livro de contas foi publicado por Charles de Ribbe, era precedido destas linhas endereçadas aos seus filhos: Meus bem-amados filhos, nós temos o usufruto dos nossos bens, dos quais somente podemos consumir os frutos. Nossos bens estão em nossas mãos para que trabalhemos sem cessar no sentido de
melhorá-los, e depois para que os transmitamos aos que nos prolongarão no curso da vida. Aquele que dissipa seu patrimônio comete um roubo horrível, pois trai a confiança de seus pais e desonra seus filhos. Teria sido melhor, para ele e para toda a sua raça, que jamais tivesse nascido. Tremei, portanto, ante a possibilidade de consumir os bens dos vossos filhos e de cobrir vosso nome de opróbrios.
melhorá-los, e depois para que os transmitamos aos que nos prolongarão no curso da vida. Aquele que dissipa seu patrimônio comete um roubo horrível, pois trai a confiança de seus pais e desonra seus filhos. Teria sido melhor, para ele e para toda a sua raça, que jamais tivesse nascido. Tremei, portanto, ante a possibilidade de consumir os bens dos vossos filhos e de cobrir vosso nome de opróbrios.
"Estes pensamentos decorriam naturalmente do pensamento, que todos tinham no espírito, de que o lar e o domínio patrimonial eram o objeto de um tipo de fideicomisso perpétuo, que não era permitido diminuir, e que todos deviam esforçar-se para aumentar”.
(Mgr Henri Delassus, L'Esprit Familial dans la Maison, dans la Cité et dans l'État, Société Saint-Augustin, Desclée, De Brouwer, Lille, 1910, pp. 113-117).
NOTA:
(*) — "Le Livre de Famille": Um antigo costume que perdurou especialmente na França, mas também em alguns outros países europeus, consistia em narrativas – normalmente a cargo do primogênito – do dia-a-dia da família (nascimentos, casamentos, mortes, comentários etc.). Visava manter viva a memória das virtudes dos ancestrais nos descendentes, impulsionando-os para o bem, através das leituras e meditações que faziam dos ensinamentos narrados. Por estes livros se reconstituíam a genealogia e a história das famílias.
(Fonte: "Catolicismo", janeiro de 1999)
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