A Paciência
Por
São Francisco de Sales
Padroeiro dos apologistas, dos escritores, rogai por nós! |
A paciência, diz o Apóstolo, vos é necessária para que, fazendo a
vontade de Deus, alcanceis o que Ele vos tem prometido. Sim, nos diz Jesus
Cristo, possuireis vossas almas pela paciência.
O maior bem do homem
consiste, Filotéia, em possuir seu coração e tanto mais o possuímos quanto mais
perfeita é nossa paciência; cumpre, portanto, aperfeiçoarmos nesta virtude.
Lembra-te também que, tendo Nosso Senhor nos alcançado todas as graças da salvação
pela paciência de Sua vida e de Sua morte, nós também no-las devemos aplicar
por uma paciência constante e inalterável nas aflições, nas misérias e nas
contradições da vida.
Não limites a tua
paciência a alguns sofrimentos, mas estende-a universalmente a tudo o que Deus
te mandar ou permitir que venha sobre ti. Muitas pessoas há que de boa mente
querem suportar os sofrimentos que têm um certo cunho de honroso: ter sido
ferido numa batalha, ter sido prisioneiro ao cumprir seu dever, ser maltratado
pela religião, perder todos os seus bens numa contenda de honra, da qual saíram
vencedores, tudo isso lhes é suave; mas é a glória e não o sofrimento o que
amam.
O homem verdadeiramente
paciente tolera com a mesma igualdade de espírito os sofrimentos ignominiosos
como os que trazem honra. O desprezo, a censura e a deseducação dum homem
vicioso e libertino é um prazer para uma alma grande; mas sofrer esses maus
tratos de gente de bem, de seus amigos e parentes, é uma paciência heróica. Por
isso aprecio e admiro mais o Cardeal São Carlos Borromeu, por ter sofrido em
silêncio, com brandura e por muito tempo, as invectivas públicas que célebre
pregador duma ordem reformada fazia contra ele do púlpito, do que ter suportado
abertamente os insultos de muitos libertinos; pois, como as ferroadas das
abelhas doem muito mais que as das moscas, assim as contradições procedentes de
gente de bem magoam muito mais do que as que provêm de homens viciosos.
Acontece, no entanto, muitas vezes que dois homens de bem, ambos bem intencionados,
pela diversidade de opiniões, se afligem mutuamente não pouco.
Tem paciência não só
com o mal que sofres, mas também com as suas circunstâncias e conseqüências.
Muitos se enganam neste ponto e parecem desejar aflições, recusando,
entretanto, sofrer suas incomodidades inseparáveis. Não me afligiria, diz
alguém, de ficar pobre, contanto que a pobreza não me impedisse de ajudar a
meus amigos, de educar meus filhos, e de levar vida honrosa. E eu, declarava um
outro, pouco me inquetaria disso, se o mundo não atribuísse esta desgraça à
minha imprudência. E eu, dizia ainda um terceiro, nada me importaria esta
calúnia, contanto que não achasse crédito em outras pessoas. Muitos há que
estão prontos a sofrer uma parte das incomodidades conjuntas aos seus males,
mas não todas, dizendo que não se impacientam de estar doentes, mas do trabalho
que causam aos outros e da falta de dinheiro para se tratar.
Digo, pois, Filotéia,
que a paciência nos obriga a querer estar doentes, como Deus quiser, da
enfermidade que Ele quiser, no lugar onde Ele quiser, com as pessoas e com
todos os incômodos que Ele quiser; e eis aí a regra geral da paciência! Se
caíres numa enfermidade, emprega todos os remédios que Deus te concede; pois
esperar alívio sem empregar os meios seria tentar a Deus; mas, feito isso,
resigna-te a tudo e, se os remédios fazem bem, agradece a Deus com humildade e,
se a doença resiste aos remédios, bendize-o com paciência.
Sou do parecer de S.
Gregório, que diz: Se te acusarem de uma falta verdadeira, humilha-te e
confessa que mereces muito mais que esta confusão. Se a acusação é falsa,
justifica-te com toda a calma, porque o exigem o amor à verdade e a edificação
do próximo. Mas, se tua escusa não for aceita, não te perturbes, nem te
esforces debalde para provar a tua inocência, porque, além dos deveres da
verdade, deves cumprir também os da humildade. Assim, não negligenciarás a tua
reputação e não faltarás ao afeto que deves ter à mansidão e humildade do
coração.
Queixa-te o menos
possível do mal que te fizeram; pois queixar-se sem pecar é uma coisa
raríssima; nosso amor-próprio sempre exagera aos nossos olhos e ao nosso
coração as injúrias que recebemos. Se houver necessidade de te queixares ou
para abrandar o teu espírito ou para pedir conselhos, não o faças a pessoas
fáceis de exaltar-se e de pensar e falar mal dos outros. Mas queixa-te a
pessoas comedidas e tementes a Deus, porque, ao contrário, longe de
tranqüilizar a tua alma, a perturbarias ainda mais e, em lugar de arrancares o
espinho do coração, o cravarias ainda mais fundo.
Muitos numa doença ou
numa outra tribulação qualquer guardam-se de se queixar e mostrar a sua pouca
virtude, sabendo bem (e isto é verdade) que seria fraqueza e falta de
generosidade; mas procuram que outros se compadeçam deles, se queixem de seus
sofrimentos e ainda por cima os louvem por sua paciência. Na verdade temos aqui
um ato de paciência, mas certamente duma paciência falsa, que na realidade não
passa dum orgulho muito sutil e duma vaidade refinada.
Sim, diz o Apóstolo,
tem de que gloriar-se, mas não diante de Deus. Os cristãos verdadeiramente
pacientes não se queixam de seus sofrimentos nem desejam que os outros os
lamentem; se falam neles é com muita simplicidade e ingenuidade, sem os fazer
maiores do que são; se outros os lamentam, ouvem-nos com paciência, a não ser
que tenham em vista um sofrimento que não existe, porque, então, lhes declaram
modestamente a verdade; conservam assim a tranqüilidade da alma entre a verdade
e a paciência, manifestando ingenuamente os seus sofrimentos, sem se queixarem.
Nas contrariedades que
te sobrevierem no caminho da devoção (pois que delas não hás de ter falta),
lembra-te que nada de grande podemos conseguir neste mundo sem primeiro
passarmos por muitas dificuldades, mas que, uma vez superadas, bem depressa nos
esquecemos de tudo, pelo íntimo gozo que então temos de ver realizadas as
nossas aspirações. Pois bem, Filotéia, queres absolutamente trabalhar para
formar a Jesus Cristo, como diz o Apóstolo, em teu coração, como em tuas obras,
pelo amor sincero de Sua doutrina e pela imitação perfeita de Sua vida. Há de
custar-te algumas dores, sem dúvida; mas hão de passar e Jesus Cristo, que
viverá em ti, há de encher tua alma duma alegria inefável, que ninguém te
poderá furtar.
Se caíres numa doença,
oferece as tuas dores, a tua prostração e todos os teus sofrimentos a Jesus
Cristo, suplicando-Lhe de os aceitar em união com os merecimentos de Sua
paixão. Lembra-te do fel que Ele bebeu por teu amor e obedece ao médico,
tomando os remédios e fazendo tudo o que determinar por amor de Deus. Deseja a
saúde para O servir, mas não recuses ficar muito tempo doente para obedecer-Lhe
e mesmo dispõe-te a morrer, se for a Sua vontade, para ir gozar eternamente de
Sua gloriosa presença.
Lembra-te, Filotéia,
que as abelhas, enquanto fazem o mel, vivem dum alimento muito amargo e que
nunca nós outros poderemos encher mais facilmente o coração desta santa
suavidade, que é fruto da paciência, do que comendo com paciência o pão amargo
das tribulações que Deus nos envia; e quanto mais humilhantes forem, tanto mais
preciosa e agradável se tornará a virtude ao nosso coração.
Pensa muitas vezes em
Jesus crucificado; considera-O coberto de feridas, saturado de opróbrios e
dores, penetrado de tristeza até ao fundo de Sua alma, num desamparo e abandono
completo, carregado de calúnias e maldições; verás então que tuas dores não se
podem comparar às Suas, nem em quantidade, nem em qualidade, e que jamais
sofrerás por Ele alguma coisa de semelhante ao que Ele sofreu por ti.
Compara-te aos
mártires, ou, sem ires tão longe, às pessoas que sofrem atualmente mais do que
tu e exclama, louvando a Deus: Ah! meus espinhos me parecem rosas e minhas
dores, consolações, se me comparo àqueles que vivem sem socorros, sem
assitência e sem alívio, numa morte contínua, opressos de dores e de tristezas.
(São Francisco de
Sales, FILOTÉIA, trad. Frei João José P. de Castro, O.F.M., págs. 180-186,
Editora Vozes, 16ª edição, 2008.)
Visto em Philosophia Christi
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