Prof. Roberto de Mattei, “… ‘regra da fé’ não é nem o Concílio Vaticano II, nem o Magistério vivo contemporâneo, mas a Tradição, ou seja, o Magistério perene”.
Entrevista com o professor Roberto de Mattei – Um docente católico é ‘indigno’ de ser premiado
Na
atual cultura europeia, o conceito de liberdade de opinião adquiriu,
também, infelizmente, em campo católico, matizes tipicamente iluministas
e ideológicos. Em nome da defesa da liberdade “de todos” se procura
impedir que aqueles que defendem ideias consideradas incompatíveis com
esta liberdade as possam expressar. Isto tem uma inata valência
antirreligiosa e principalmente anticatólica, já que a Fé romana tem a
certeza das Verdades que proclama, e isto é percebido pelos relativistas
como dogmatismo intolerante, a ser combatido em todas as suas
expressões.
Neste quadro se insere o caso “de Mattei –
Acqui Storia”, que apareceu nos principais jornais italianos: desde o
“Corriere della Sera” ao “Il Giornale”, de “la República” ao “Libero”. O
Prêmio Acqui Storia, chegado este ano à 44ª edição (a cerimônia de
premiação será realizada em Acqui Terme, em 22 de outubro próximo),
tornou-se o mais importante reconhecimento dedicado à História, não
apenas em nível nacional, mas na Europa, e está dividido em três seções:
histórico-científica, histórico-divulgadora e romance histórico. O
Presidente do Prêmio, Guido Pescosolido, demitiu-se de forma polêmica
contra a escolha de premiar o ensaio histórico-científico O Concílio Vaticano II. Uma história nunca escrita
(Lindau Ed.) do Professor Roberto de Mattei, Católico com C maiúsculo e
vice-presidente do CNR (Conselho Nacional de Pesquisas). Motivo:
“Trata-se da obra de um militante”, no entanto havia declarado:
“respeito todas as ideias”… Rocco Buttiglione, ex-ministro da Cultura,
acusou Pescosolido de continuar uma ‘perseguição pessoal’ contra de
Mattei. Cada estudioso lê e interpreta os eventos com base em sua
própria bagagem cultural; mas isto não exclui de realizar obras sérias e
rigorosas, sem manipulações, respeitando a objetividade dos fatos.
No ‘Corriere della Sera’ (3-10-2011)
de Mattei escreveu: “Estou muito longe de Giuseppe Alberigo e de
Alberto Melloni como orientação cultural, mas reconheço que
desenvolveram sobre o Vaticano II um trabalho científico de primeira
categoria. Depois, o juízo deles sobre o Concílio é oposto ao meu, mas
isso é dialética normal entre históricos de diferentes procedências”.
Justamente Melloni, no ‘Corriere della Sera’, reconheceu o valor
historiográfico e crítico da obra do de Mattei. Declarou (‘Il Giornale’,
3-10-2011)
o assessor de Cultura de Acqui Terme, ao qual compete a organização do
Prêmio: “O ensaio de de Mattei não foi escolhido com base em
considerações ideológicas, tanto é verdade que os jurados do prêmio
pertencem a diferentes escolas científicas e tradições culturais”.
Nós entrevistamos o Professor Roberto de Mattei.
Professor, depois de estar entre os
finalistas do prêmio PEN Club, seu livro ‘O Concílio Vaticano II. Uma
história nunca escrita’ ganhou o Premio Acqui, o prêmio histórico
italiano de maior prestígio. Até mesmo neste caso, não faltaram as
polêmicas, inclusive com a renúncia do Presidente do Júri…
O Prêmio Acqui Storia
foi atribuído ao meu livro exclusivamente pelo seu valor científico,
independentemente de valorações ideológicas de qualquer natureza, como
explicou o assessor Carlos Sburlati, mas o prof. Guido Pescosolido,
presidente do júri, tão logo se esboçou a possibilidade de meu sucesso,
pediu demissão. Poderia ter expressado um voto contrário, como se
costuma fazer neste tipo de premiação, mas com sua demissão e as
sucessivas declarações à imprensa quis dar a seu gesto o significado de
um protesto contra a minha posição de ‘católico militante’ (assim me
definiu no ‘Corriere della Sera’). Observo que qualquer católico é, ou
deveria ser, ‘militante’, como membro da Igreja, que assim se define
justamente porque aqui na terra combate. Mas o que os ‘liberais’ como
Pescosolido não aceitam, a ponto de ‘virar a mesa em que se joga’, é que
‘católicos militantes’ possam obter públicos reconhecimentos ou estar
em instituições de relevo. Pode-se conceder a eles a liberdade de
expressão somente sob a condição de que a exprimam na semi-clandestinade
dos círculos tradicionalistas, em um estado de substancial dhimmitude[1]. Estamos diante de uma clara expressão do ‘totalitarismo liberal’.
Em que sentido o senhor fala de ‘totalitarismo’?
O totalitarismo é caracterizado pela
proibição de fazer pergunta, porque exige não homens, mas máquinas, que
ajam de modo mecânico, privados de critérios de juízo, de acordo com a
vontade de seus superiores, nos quais se anulam. O totalitarismo é
estranho ao Cristianismo, que certamente conhece a obediência ao
superior, mas sempre escolhida, nunca imposta, como acontece nos regimes
totalitários. A Idade Média nunca foi totalitária porque o soberano se
curvava à lei natural e divina, e às tradições e aos costumes do reino.
Foi a Revolução Francesa que impôs a todo cidadão uma obediência à
Revolução desvinculada de qualquer critério transcendente. Foi a
Revolução Francesa que introduziu a lei dos ‘suspeitos’, matriz de todos
os totalitarismos. De acordo com essa lei, as pessoas eram presas e
condenadas, não por crimes objetivos, mas por aqueles que o suspeito
poderia ter cometido como resultado de sua educação, de suas amizades,
de suas simpatias ideológicas. O mesmo princípio guiou os “expurgos” de
Stalin: a condenação era decretada não contra quem tivesse violado a
lei, mas contra quem quer que não manifestasse plena adesão, cego
entusiasmo, obediência servil à Revolução Comunista e a seu líder. Esta
mentalidade totalitária inspira a prática do ‘politicamente correto’ das
sociedades democráticas. Existem alguns temas que não podem ser
tratados, sob pena não de prisão física, mas do isolamento psicológico e
moral do ‘suspeito’. A mesma mentalidade tem penetrado no seio da
Igreja, em alguns de seus expoentes, laicos e eclesiásticos: ela se
manifesta, hoje, através da proibição de colocar questionamentos sobre o
Concílio Vaticano II.
O senhor se refere às críticas feitas a seu livro também em alguns círculos católicos?
Nenhum historiador pode imaginar que seu
trabalho seja recebido sem discussão ou controvérsias, mas essas
discussões acontecem, geralmente, no plano em que o historiador se
situa: o dos fatos que narra. Não teria imaginado que meu livro fosse,
no entanto, rejeitado por alguns em nome desses mesmos preconceitos
ideológicos dos quais Bento XVI nos convida a nos livrarmos. Assim foi:
em alguns jornais católicos meu livro foi acusado de ser ‘tendencioso’
e, portanto, inaceitável, porque dele parece emergir um juízo negativo
em relação ao Concílio Vaticano II. O Concílio, tem sido escrito e repetido, é
um ato supremo e infalível da Igreja e como tal não pode ser colocado
em discussão: quem o discute se coloca, por isso mesmo, fora da Igreja.
Com esse incrível sofisma não só o meu
estudo, mas qualquer livro, artigo ou afirmação que, respondendo ao
chamado do Papa Bento XVI, no seu discurso de 20 de dezembro de 2005,
queira colocar questionamentos sobre o Concílio, ou ao pós-Concílio, é
imediatamente silenciado sob pena de excomunhão, se não canônica, ao
menos psicológica, moral e midiática. Quem levanta questões sobre o
Vaticano II é ‘suspeito’ de cisma e heresias, excluído dos salões
eclesiásticos, isolado nas dioceses, nas paróquias, nas associações.
Pelo contrário, aqueles que, em nome do Concílio Vaticano II, avançam
teses ousadas e sem escrúpulos, às vezes heréticas ou perto da heresia, é
convidado à mesa eclesiástica, tratado com o máximo respeito,
considerado um interlocutor digno de atenção.
Não lhe surpreende que essas críticas tenham vindo sobretudo de católicos ‘neoconservadores’?
É verdade. As mais fortes críticas, de
fato, vieram de círculos católicos que eu não gostaria de chamar de
‘neoconservadores’ porque me pareceria errado em relação aos verdadeiros
conservadores, mas sim ‘neocentristas’ ou ‘neoconciliares’. São aqueles
católicos que, para impor a própria hegemonia, brandem o ‘Magistério’
contra a Tradição da Igreja, propondo-se, em seguida, como os únicos
intérpretes deste efêmero e magmático Magistério, mesmo que nunca
infalível e nunca de definição. Outra característica deles é o
complexo de inferioridade para com a cultura secular, que consideram
sempre mais ‘respeitável’ e ‘científica’ do que aquela
‘tradicionalista’. São minimalistas, ou se se preferir
‘catacumbalistas’, porque aceitam, em última instância, seu destino
catacumbal.
A Sua obra parece contrapor-se de
maneira clara também ao clichê ‘tradicional’ sobre o Concílio Vaticano
II, encarnada pela chamada Escola de Bolonha. Pode-se falar de uma fenda definitiva na homogeneidade quase absoluta da leitura ‘bolognese’ da Assis[2] pastoral?
A ‘Escola de Bologna’, depois da morte de
Giuseppe Alberigo, é representada hoje por Alberto Melloni e alguns
outros poucos alunos, enquanto se está formando uma nova escola em vez
disso, que gosto de chamar de ‘romana’, em homenagem à grande escola
teológica de que Mons. Brunero Gherardini é hoje ilustre representante. O
termo Roma obviamente não é geográfico, ao contrário do de Bolonha, mas
expressa a fidelidade destes autores ao perene ensinamento da Cátedra
de Pedro. A esta escola ‘romana’ atribuiria o excelente livro recém publicado por Alessandro Gnocchi e Palmaro Mario: A Bela Adormecida. Porque depois do Vaticano II a Igreja entrou em crise. Porque despertará (Vallecchi
Ed.), um livro que tem o mérito de desenvolver, em um modo brilhante e
acessível ao grande público, questões importantes, tais como a Revolução
da linguagem do Vaticano II.
Como reagem os estudantes
universitários a essas novas pesquisas historiográficas? Há alunos
laureados e laureandos que desejam aprofundar o sulco traçado pelo
senhor?
Serão sobretudo os jovens a desenvolver e
aprofundar os temas levantados pelo meu livro. Há ainda muitos arquivos
para explorar, penso principalmente nos dos Países do Leste, e muitos
diários para trazer à luz, tais como os dos Cardeais Felici e Ottaviani,
cuja existência é certa, mas ainda mantidos em segredo. O problema
real, no entanto, mais do que a aquisição de novos documentos é a
discussão sobre o que é já conhecido. Esta discussão o Papa a abriu, a
solicitou, a apreciou, como o confirmaram seus atos depois do discurso
de 2005: refiro-me ao Motu Proprio Summorum Pontificum, com a
qual devolveu a livre cidadania ao Rito Romano antigo, e à remissão da
excomunhão aos quatro bispos consagrados por Mons. Marcel Lefebvre. A
esta discussão eu pretendi dar uma contribuição, escrevendo uma história
que, como tal, se colocasse ao nível dos fatos, buscasse a verdade do
que houve no Concílio, para que, finalmente, discutindo-se isso, se
soubesse do que fala, e o soubessem principalmente os jovens, aqueles
que nasceram depois do Concílio Vaticano II e que o consideram muitas
vezes um evento mítico, mais do que um fato histórico. É sobretudo para
os jovens que o meu livro foi escrito, para ajudá-los a pensar, a
discutir, a se situar na perspectiva sugerida por Bento XVI.
O senhor pensa em dedicar outros estudos ao XXI Concílio ecumênico da Igreja Católica?
Será lançado em novembro, pela Lindau
editora, um novo livro meu sobre a Tradição da Igreja, no qual não
deixarei de responder aos problemas historiográficos e teológicos
levantados pelos críticos da minha história do Concílio.
Esta fissura no edifício conciliar,
que alguns definiram o triunfo da Revolução na Igreja, preludia, em sua
opinião, a um seu colapso? E, em caso afirmativo, quando?
O Concílio Vaticano II, considerado como
evento histórico, e para além até mesmo de uma necessária valoração
teológica de seus documentos, foi uma verdadeira revolução, não por
acaso definida o ‘89 [3] da Igreja Católica. Como qualquer revolução,
ele construiu um edifício destinado a ruir. Isto será feito
abruptamente, e o nosso trabalho é o de não nos deixar esmagar pelas
ruínas, que não serão as da Igreja, mas de homens e de estruturas de
Igreja.
O senhor acredita que a Tradição, após a embriaguez do mito do aggiornamento [4], possa retornar a ter seu lugar de direito na Igreja?
A Tradição não é o passado, é o Depósito
perene e sempre vivo da Fé e dos costumes da Igreja. Seu papel
reemergirá, em minha opinião, com força sempre maior, como é natural que
aconteça nos tempos de crise. A ‘hermenêutica da continuidade’, evocada
por Bento XVI, não pode ser entendida se não como uma interpretação do
Concílio Vaticano II à luz da Tradição, ou à luz do ensinamento
divino-apostólico que perdura em todos os tempos e nunca se interrompe.
Na Igreja, de fato, a ‘regra da Fé’ não é nem o Concílio Vaticano II nem
o Magistério vivo contemporâneo, mas a Tradição, ou seja o Magistério
perene, que constitui, com a Sagrada Escritura, uma das duas fontes da
Palavra de Deus e usufrui da especial assistência sobrenatural do
Espírito Santo.
Cristina Siccardi
Fonte: MessaInLatino.it via Una Fides
Tradução: Giulia d’Amore di Ugento.
[1] NdTª.: Neologismo francês derivado do árabe dhimmi
e se refere ao status jurídico reconhecido aos não-muçulmanos em um
país governado pelo direito muçulmano. Aqui quer expressar que os
católicos, no mundo moderno, estão em uma relação de inferioridade em
relação aos modernistas; reconhece-se-lhes o direito, mas devem
exercê-lo quase que clandestinamente.
[2] NdTª.: Assis, aqui se refere à sessão conciliar. Houve quatro assises.
[3] NdTª.: Referência a 1789, ano da Revolução Francesa.
[4] NdTª.: Aggiornamento
(atualização) é um termo italiano utilizado durante o Concílio Vaticano
II e que o Papa João XXIII popularizou como expressão do desejo de que a
Igreja Católica saísse atualizada do Concílio Vaticano II. Em outras
palavras, o aggiornamento é a adaptação e a nova apresentação dos
princípios católicos ao mundo atual e moderno, sendo por isso um
objetivo fundamental do Concílio Vaticano II. O documento conciliar Sacrosanctum Concilium resume o espírito do aggiornamento da seguinte maneira: “fomentar
a vida cristã entre os fiéis, adaptar melhor às necessidades do nosso
tempo as instituições susceptíveis de mudança, promover tudo o que pode
ajudar à união de todos os crentes em Cristo, e fortalecer o que pode
contribuir para chamar a todos ao seio da Igreja“.
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