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domingo, 6 de novembro de 2011

A Ponte de Waterloo

Depois de muito tempo, resolvi escrever sobre... cinema.
Enfim, alguém há de dizer: "por que não escreve sobre filmes católicos, ou melhor por que não os assiste!" Bem, lhe responderia que os assisto, sim, mas nem são tantos assim e, muitos, são de qualidade técnica e/ou moral duvidosas. Lembro-me de um, por exemplo, sobre Santo Agostinho, indicadíssimo nos meios tradicionalistas, que eu assisti a contragosto, desde o começo. Parei definitivamente de assistir quando começou uma cena em que Agostinho encontra alguém em uma casa em que se dava uma orgia. Oras! Que necessidade há de mostrar uma orgia? O mundo já não sabe bem demais do que se trata? O filme A Ponte de Waterloo não tem uma cena sequer indecorosa ou desnecessária. Desafio alguém a encontrá-la.

Ponte de Waterloo - Londres


A Ponte de Waterloo


Eu gosto de filmes antigos, e por uma série de razões: a própria dramaturgia era diferente e tinha um sentido. Não havia vulgaridade, nem cenas ou palavreado desnecessários. Havia valores, e estavam no filme não por puro acaso, mas por uma questão absolutamente natural. Os diálogos eram densos e inesquecíveis. As histórias eram relevantes. E traziam esta sensação de não pertencer a ‘este’ mundo, uma sensação que eu sentia desde muito pequena, e olhe que o mundo da minha infância era bem melhor do que o mundo da infância de hoje! Era uma época em que não só se conheciam e se incentivavam os valores, mas eles eram vivenciados. Na minha infância, eu não via estes filmes que agora, enfim, posso assistir, e pela simples razão de que não eram para o público infantil, e meus pais, pais zelosos, não só não permitiam que os víssemos, mas faziam com que sua existência passasse totalmente despercebida para nós. Hummm, mas eu não disse que eram bons filmes, sem nudez, sem vulgaridades, com uma absurda noção de valores? Sim, é isso mesmo. Mas eram filmes adultos, pela temática e pelo romantismo que se tornava explicito em algum beijo roubado – cena absolutamente necessária para explicar a história – ou na presença de figuras que pertencem ao mundo, mas que não são moralmente estimulantes: um amigo traiçoeiro, uma ‘senhorita’ que precisava levar certa vida, um homem com vícios: roubo, bebida, jogo... Eu sou profundamente grata a meus pais por isto. Não me fizeram falta, e sua ausência ajudou a manter em mim certos valores que são intramontáveis e fazem falta no mundo de hoje. 



Bom, de dizer que na minha infância a TV não era um direito inalienável da criança. Tinha regras e horários. Não só ditados pela tecnologia da época – funcionava em determinados períodos do dia – mas pela ‘lex paternae’. E se, por um lado, era comum que obedecêssemos, por outro não éramos deixados à mercê de nossa própria vontade, frágil demais, ainda, para não cairmos em tentação, e, para tanto, contávamos com a vigilância perpétua de nossa mãe, o anjo do lar.

Esses filmes têm em comum a beleza. Você os assiste e dificilmente não pensa, imediatamente, são belos! E não só pela minha feminina visão. Tudo neles passa pela beleza: a fotografia, a história, os diálogos. O final. Mesmo dramático, mesmo indesejável, é sempre um final que é belo em si

Eu tenho oportunidade de assisti-los, agora, em um dos canais da TV a cabo: 90% lixo, puro lixo. Mas descobri um canal que meu marido chama de ‘seu canal de velharias’, nem lembro bem como chama, é o ‘91’. Acho que os filmes mais modernos que passam são a série ‘Bonanza’. Sim, são velharias, mas se a TV é inevitável, pelo menos assistimos a bons filmes, que despertam esta sensação de que falei no inicio, de não pertencer a este mundo, a este século, e que, por isto mesmo, devemos viver o mais longe possível dele, até o dia em que pudermos retornar à Domus Patris

A Ponte de Waterloo

Vivien Leigh e Robert Taylor
Um filme que vi recentemente é o ‘A Ponte de Waterloo’ (‘Waterloo Bridge’), baseado na homônima peça de Robert E. Sherwood[1]. Teve duas versões norte-americanas (1931 e 1940) e duas brasileiras (1959 e 1967): eu assisti a de 1940, com Vivien Leigh[2] e Robert Taylor[3] nos papéis principais. 

A Ponte de Waterloo narra uma história que se desenrola entre as duas grandes guerras mundiais: uma história que começa e termina na famosa Ponte Waterloo, sobre o Rio Tâmisa, em Londres (Inglaterra). Começa com o fim. O já não mais jovem oficial do exército britânico Roy Cronin, sobre a ponte, trazendo nas mãos um pequeno amuleto que lhe havia sido dado pela jovem bailarina Myra Deauville, quando se conheceram, durante um bombardeio naquela mesma ponte, na guerra anterior. Ele, um jovem de família nobre e importante, apaixona-se quase que instantaneamente pela jovem um tanto desastrada que ele ajudou a se abrigar de um ataque inimigo. Impetuoso e decidido, ele sabe que parte para o front em dois dias e a pede em casamento um dia depois de conhecê-la. Infelizmente, apesar de arduamente conseguir a autorização dos superiores para se casarem – um dos quais, do Estado Maior, era seu tio, o Duque Cronin (C. Aubrey Smith) – Roy parte sem poder casar com Myra, mas começam uma troca intensa de cartas. Roy não sabe que seu amor trouxe problemas à jovem Myra que era uma bailarina clássica do corpo de balé de Madame Olga Kirowa (a russa Maria Ouspenskaya[4]), que é uma professora rígida sobretudo em termos morais, e queria proteger a aluna proibindo-lhe de se encontrar com o jovem oficial. Diante da rebeldia da moça, Madame Olga a despede. Mas Myra não está só, a amiga Kitty (Virginia Field) solidariza-se com ela e deixa o balé. As coisas se tornam difíceis para as moças, em tempos de guerra certamente o emprego não sobeja, e Myra não quer contar ao noivo sobre as necessidades pelas quais passam. Quando estão no limite de suas forças, a fome batendo à porta, Roy escreve dizendo-lhe que a mãe, Lady Margaret Cronin (Lucile Watson), vai visitá-la em Londres, e que em breve ele voltará. Enquanto espera a sogra em um café, a jovem lê um jornal em que estão anunciados os nomes dos soldados mortos e, por engano, aparece o nome de Roy. Myra não diz nada à sogra e a trata estranhamente, por força da imensa comoção que a toma; se despedem, então, com certa rudeza. A notícia abalou tanto a jovem moça que ela cai doente. Quando melhora descobre que a amiga Kitty se prostituiu para conseguir comprar remédios e comida para as duas. Myra entristecesse e se compadece com o sacrifício da amiga, contudo, levada pela fome, e certa de que Roy morrera, acaba seguindo relutantemente o mesmo caminho. 

Certo dia, vai à estação atrás de mais um cliente e, inesperadamente, chega Roy, que a vê e pensa que ela foi lá recebê-lo porque a mãe dele a avisou de alguma maneira. Quase não a deixa falar, e conta-lhe o que houve com ele, de como a mãe dele a procurou por meses sem conseguir encontrá-la. Myra não sabe o que pensar, dividida entre a alegria imensa de saber que Roy está vivo e a tristeza profunda de sua atual vida. Tenta, mas nada diz. Roy quer partir imediatamente para o interior, para a casa paterna, e quer levar a noiva consigo, para compensá-la por tantas necessidades que ele imagina que ela tenha passado durante a guerra que chega ao fim. Em casa, Myra narra a Kitty a grande novidade e lhe diz que não contará nada porque, como Roy lhe ensinara quando se conheceram, esse amor é uma dessas raras ocasiões em que a vida traz boas coisas e não se pode deixar passar. O diálogo entre as duas é denso e forte, ambas têm a consciência plena de seus atos e de quão baixo chegaram para sobreviver, como muitas outras mulheres, em todas as guerras. Sabem o que se tornaram. A escolha de Myra é grave, mas não impensada, embora pareça egoísta. Myra parte com Roy. É recebida como filha por Lady Margaret, que se desculpa por não ter sido capaz de encontrá-la em Londres. À noite celebram com uma grande festa o retorno de Roy e a chegada de Myra. O duque Cronin também está presente e avaliza Myra diante da sociedade que ainda não sabe bem o que pensar da belíssima recém-chegada, suscitando alguma inveja. O duque e Myra conversam em privado e ele se mostra condescendente com ela, e não mais um provinciano de que infelizmente a sociedade é cheia. Ela, diante de tanta amabilidade e tanto carinho, é tomada por escrúpulos. São boas pessoas e ela... bom, ela sabe o que fez. Antes de dormir, Lady Margaret vai ao quarto de Myra para desejar-lhe boa noite e conversam, desfazem as más impressões do encontro em Londres. Lady Margaret retorna a seu quarto, mas Myra não consegue dormir e a procura para comunicar-lhe que irá embora e para pedir-lhe que não diga a Roy o porquê. Lady Margaret pensa que talvez haja outro homem na vida de Myra e, quando descobre que o problema era outro, mostra toda a sua nobreza – típica de pessoa realmente nobre – ao tentar dissuadi-la de partir, responsabiliza-se por não ter podido encontrar a nora nos tempos difíceis para ajudá-la, pede-lhe, em fim, que conte tudo a Roy, que ele compreenderia... Myra, no entanto, teme que não seja assim, mas, sobretudo, acha-se indigna do amor de Roy. Consegue de Lady Margaret a promessa do silêncio. No caminho de volta ao seu quarto, encontra Roy, apaixonado e feliz, que lhe devolve o amuleto porque quase o perdeu no jardim. Myra então se despede dele com um adeus. Roy não entende. Também não sabe que é a última vez que vê Myra. Na manhã seguinte, Roy descobre que Myra foi embora e pergunta à mãe o que houve, a mãe mantem a promessa e nada diz. Roy inconformado vai atrás da amada. 

Roy e Kitty
“quanto você a ama, Roy?”
Em Londres, Roy encontra Kitty, e os dois, depois de um diálogo profundo também, em que Kitty pergunta a Roy: “quanto você a ama, Roy?”, saem à procura de Myra. Roy ainda não sabe a verdade, mas a percebe depois do terceiro ‘ponto’ em que vão. Mas nada de Myra. Roy compreende, então, que nunca mais verá Myra: “posso passar a vida procurando por ela, Kitty, mas nós nunca mais a veremos”. A dignidade de Myra não permitia. A cena passa então à Ponte Waterloo, onde a jovem foi procurar consolo. Uma ‘colega’ a encontra e pergunta se quer ir com ela à estação, atrás de clientes, Myra responde apenas que não. Vira-se, então, e começa a andar pela ponte, na calçada, na contramão dos carros. Algumas ambulâncias passam por ela, com as sirenes ligadas (no dia em que conheceu Roy, as sirenes anunciavam a chegada dos aviões), uma depois da outra. Myra toma, então, a decisão definitiva. Quando a desesperança é tamanha, desesperada também é a solução: a jovem, com toda sua tristeza e dor, joga-se debaixo de uma das viaturas. No chão fica apenas o amuleto. Cena seguinte: volta-se ao Roy envelhecido, a caminho de outra guerra. O amuleto voltou às suas mãos. Depois de lembrar cada palavra da primeira e da última conversa com Myra, Roy vai, em fim, seguir seu destino.

No dia em que se conheceram
Well, minhas pobres palavras não saberiam reviver toda a beleza da história que o filme retrata. A sobriedade dos personagens, a dignidade e a decência. Mesmo das moças que lamentavelmente abriram mão de seus valores porque havia um valor maior em jogo: a sobrevivência. Não pretendo justificá-las, mas, embora nunca tenha estado em uma guerra, em minha juventude ouvi as testemunhas vivas da última, e o que narravam era terrível. Você comeria um rato?

Enfim, nem é isso que mais conta no filme. O filme fala de um mundo, de uma era que já se foi. De beleza e de finezas. De damas e cavaleiros. De honra e glória. Eu até comecei a imaginar como seria um filme desses na atualidade. O palavreado, as situações, os gestos. O fim. Mas me detive. Seria injusto para com o filme original, onde não aparecem cenas desnecessárias, como do corpo de Myra estatelado debaixo da ambulância, como se faria hoje em dia. Nem mesmo quando ela sucumbe à fome e, estando na ponte a observar o nada ao longe, triste pela perda do amado e pela guerra e pela situação toda, aceita – não procura – o convite de um homem, partindo para a prostituição: não mostram sequer o homem, ou os dois indo embora, ou, pior ainda, na cama. Apenas uma voz masculina. Um convite até gentil: “a senhorita gostaria de passear?” ou algo assim. Hoje a conversa seria bem outra. Nem mesmo em relação a Kitty. Sabe-se que ela está se prostituindo por algumas comedidas palavras, ou é mostrada chegando da rua com roupas que hoje se veem comumente até em casamentos católicos, mas que na época uma boa moça não usaria. Quando Myra conta à Lady Margaret o que ela fez, ela nem diz 'prostituição'. Não precisa. Lady Margaret entende o silêncio eloquente de Myra. Quem assiste também entende. Para que palavras?

Nesses filmes antigos, nada é explícito que não seja absolutamente necessário. Os horrores da guerra são mostrados com explosões que a tecnologia da época nem permite ver direito: nada de corpos destroçados, sangue esparramado por todo lado, feridas abertas... Os casais partem em lua de mel e a cena seguinte é o café da manhã, adequadamente vestidos, serenos. Não há malícia, ambiguidades.

As comédias são o melhor exemplo de como mudou a moral humana. Antigamente, não havia necessidade de nudez, de palavrões e de vulgaridade. E todo mundo ria. Até hoje se ri ao rever tais filmes. E geralmente ouço comentários assim: “engraçado, antigamente não havia necessidade de mulher pelada na comédia”... E aí eu me pergunto qual é a ‘necessidade’ hoje em dia? E dos palavrões? Tanto nas comédias como nos filmes de todos os tipos. Graças à censura militar que traduzia os filmes estrangeiros, durante décadas eu achava que somente os filmes brasileiros tinham palavrões. Sim, porque eu deixei a Itália com quinze anos e os filmes que eu assistia lá... bem, não tinham sequer uma exclamação dúbia! E verdade seja dita, o Brasil produziu por décadas apenas lixo. E o problema maior nem eram os palavrões. Infelizmente, continua assim.

Prefiro pensar que um dia a beleza vai voltar, em toda sua glória, e que ninguém nunca mais terá fome outra vez[5]. 

Giulia d’Amore di Ugento

PS: tive que me esforçar para lembrar do filme porque as sinopses que achei na net eram pífias. Quem as escreveu não viu o filme: ora Roy era russo, ora canadense, por exemplo. Quem são essas pessoas que escrevem sobre algo que não veem ou não entendem? 
Myra e Roy, na ponte


Dois vídeos para assistir:

Trilha Sonora - 1m31s



O filme em 10 minutos


BAIXE O FILME AQUI



[1] Dramaturgo e roteirista norte-americano, vencedor de três prêmios Pulitzer. A maioria das peças de Sherwood foi adaptada para o cinema, em parceria com outros roteiristas, além de ter colaborado em diversos roteiros adaptados.
[2] Vivien Leigh, a celebérrima Scarlet em ‘...E o Vento Levou’ ('Gone with the Wind').
[3] Robert Taylor, o grande ator norte-americano, que fez grandes filmes, entre os quais Quo Vadis: era Marco Antônio. Dele assisti ainda, recentemente, ‘All the Brothers Were Valliants’ (‘Todos os Irmãos Eram Valentes’); excelente filme também, que fala de honra, de lealdade fraterna, de dramas pessoais.
[4] Maria Ouspenskaya foi uma atriz russa que alcançou sucesso como atriz de teatro na Rússia e mais tarde como atriz de cinema em Hollywood.
[5] "Nunca mais passarei fome outra vez!" Scarlett O'Hara (Vivien Leigh) em '...E o Vento Levou'. 


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