Bernard Dumont. Ruptura, reforma, renovaçãoPor gentil cortesia do Prof. Bernard Dumont, Diretor da Revista de reflexão política e religiosa Catholica, publicamos seu editorial da última edição da revista. Parece-me não apenas estimulante, mas sobretudo útil e oportuna esta circulariedade de comunicação que leva, para além das fronteiras nacionais, as reflexões e os aportes de ideias e de pensamento. Afinal de contas, a Igreja é universal, e o que se move nela não pode e não deve ficar confinado aos âmbitos nacionais ou locais. O texto que temos a oportunidade de consultar é repleto de observações que abrem novas vias de compreensão e elementos de aprofundamento. Enxergo nele diversas chaves de leitura que nos poderão dar a possibilidade de prosseguir não apenas na análise, mas também na comparação, envolvendo nisso, se possível, outros interlocutores de nível. Por agora, limito-me ao texto, observando que ele já é uma primeira importante resposta à pergunta que havíamos deixado em suspenso sobre a liberdade de religião.
Ruptura, reforma, renovação
Em sua encíclica Fides et Ratio (14 de setembro de 1998),
João Paulo II havia enfrentando uma série de problemas filosóficos, seja de
ordem geral diante de uma sociedade mergulhada na confusão, seja em relação à
situação contemporânea da Igreja. Um trecho (n. 87) ligava-se a um ponto de método
que adquire um particular relevo hoje, em relação à amplitude assumida pela discussão
dos últimos anos sobre a interpretação do evento conciliar e em relação à questão
de saber no que este teria constituído ruptura em relação ao passado e no que teria
permanecido em continuidade. Este trecho merece ser mostrado em sua íntegra. Está
situado em uma seção do Capítulo VII da encíclica, que quer determinar algumas “tarefas
atuais” e se detém rapidamente sobre duas tendências julgadas danosas à atividade
filosófica da qual a teologia necessita: o ecletismo
e o historicismo. A primeira
tendência citada é vista sob a ótica das invenções da linguagem, inúteis e
origem de mal-entendidos; a segunda é tratada um pouco mais detalhadamente e
apresentada como um caso particular deste abuso.
“O ecletismo é um erro de método, mas poderia também esconder em si as teses próprias do historicismo. Para compreender adequadamente uma doutrina do passado, é necessário que esta esteja inserida em seu contexto histórico e cultural. A tese fundamental do historicismo, no entanto, consiste em estabelecer a verdade de uma filosofia com base em sua adequação em relação a um determinado período e a um determinado propósito histórico. Desta forma, pelo menos implicitamente, nega-se a validade perene do verdadeiro. O que era verdade em uma época, sustenta o historicista, pode não o ser mais em outra. A história do pensamento, em suma, se torna para ele um pouco mais do que um achado arqueológico do qual podemos nos valer para evidenciar posições do passado, agora em grande parte superadas e privas de significado para o presente. Deve-se considerar, ao contrário, que, mesmo que a formulação seja de certo modo ligada ao tempo e à cultura, a verdade ou o erro nelas expressos podem ser, em todo caso, reconhecidos e valorados como tais, apesar da distância espaço-temporal.Na reflexão teológica, o historicismo tende a apresentar-se, quando muito, sob uma forma de ‘modernismo’. Com a justa preocupação de tornar o discurso teológico atual e assimilável para o contemporâneo, nos valemos apenas das afirmações e do linguajar filosófico mais recentes, negligenciando as instâncias críticas que, à luz da tradição, se deveriam eventualmente levantar. Esta forma de modernismo, pelo fato de trocar a atualidade pela verdade, se revela incapaz de satisfazer às exigência da verdade, à qual a teologia é chamada a dar respostas”.
Este trecho diz
respeito ao método de raciocínio e às verdades filosóficas, mas, na medida em
que a teologia é uma reflexão em relação ao dado da Revelação que segue as
mesmas exigências lógicas, resulta disto maior o alcance. Este inclui a
evolução dos dogmas, situada especialmente no desenvolvimento homogêneo “na sua
linha própria, dentro do próprio dogma, com o mesmo significado, com a mesma
compreensão”[1] – Vaticano
I, Constituição de Fide –, e a
heterogeneidade dos campos culturais, consequência do subjetivismo moderno recuperada
em teologia pelo modernismo.
Disto, a Fides et Ratio resgata sobretudo o
repúdio da tradição em nome da pluralidade das ‘linguagens’ espaço-temporais,
mas comporta também, já o vimos, uma incriminação tanto lapidária quanto
essencial: o historicismo (modernista) “confunde a atualidade com a verdade”.
* * *
Estes dois aspectos
estão no cerne da interpretação do Vaticano II. É sobre eles que se centrou o
discurso de 22 de dezembro de 2005, e mais precisamente acerca do tema que, por
si só, resume o problema como um todo: a declaração conciliar Dignitatis Humanae[2], que
tentou dar um fundamento doutrinário à garantia da liberdade de religião no
direito positivo dos Estados, afastando-se, assim, dos enunciados do Magistério
de sentido oposto.
Uma primeira
dificuldade foi observada desde o final do Concílio pelo então conselheiro (peritus) do Cardeal Frings, Arcebispo de
Colônia: Joseph Ratzinger. Esta dificuldade é citada em uma prestação de contas
que ele elaborou sobre a quarta sessão (1965), reproduzida no diário recentemente
publicado em francês (Mon Concile Vatican
II. Enjeux et perspectives, Artège, Perpignan, março 2011). O texto da declaração
fora preparado para um primeiro debate durante a sessão anterior, sobre a qual
Joseph Ratzinger havia exprimido uma reserva, provavelmente reconhecendo a
influência exercitada pelo jesuíta John Courtney Murray: “De fato, é o modelo norte-americano que transparece através da doutrina
da presumida independência do direito natural em relação à história.
Em vez de conceber uma construção ideal de
cooperação entre Estado e Igreja, teria sido melhor se contentar em apresentar
a doutrina da não-violência do Evangelho, com todas as suas consequências de se
livrar do erro fatal de S. Tomás que acredita ter
de corrigir o evangelho neste ponto, dizendo que, em uma sociedade cristã
fechada, não há necessidade de recorrer aos tribunais, mas que se deve, com
pleno direito, extirpar a cizânia e matar os pecadores ‘de modo louvável e
salutar’.”(loc. cit., p. 170). (S. Tomás se interessava pelo destino eventualmente
reservado aos ‘males’, isto é aos
criminosos, em nome do bem comum, e não aos ‘pecadores’: a leitura da questão 64 da IIa IIae resultava aqui bastante precipitada).
Em seguida, Joseph
Ratzinger observará que a dificuldade de encontrar um fundamento teológico (na
Escritura ou na Tradição) à liberdade civil das religiões permaneceria, e, por
consequência, ele colocava o problema da continuidade, a partir do momento em
que se contentava em afirmar, como quem não quer nada, que a Declaração “não traz qualquer prejuízo à doutrina
tradicional católica acerca do dever do homem e das sociedades para com a verdadeira
religião e a única Igreja de Cristo”. (DH 1, 3). O teólogo ressaltava a
rocha: “O termo do dever das comunidades
para com a Igreja permanece discutível: a declaração conciliar na realidade
oferece algo novo e de maneira outra daquela que se pode encontrar nas
declarações de Pio IX e Pio XII”. De tal modo que a afirmação posta no início
da Declaração, inserida para eliminar a
priori as perplexidades, nada mais é do que “uma flor de inicial retórica que se poderia melhor deixar de lado [...]
nada mais do que simples escorregada de estilo” (Ibid., p. 216).
Eis o que permite entender
melhor, apesar da distância e das evoluções ligadas à maturação intelectual, a
problemática formulada por Bento XVI em 2005. Determinou-se uma mudança de
direção no campo em questão (liberdade de religião), como em alguns outros, e
se isto apresenta uma dificuldade do ponto de vista da continuidade – no sentido
dinâmico de uma elucidação cada vez mais precisa do dado revelado – resta
levantar a única razão que possa permitir aceitá-lo, ou seja, a mudança de
época, uma mudança tão líquida e certa que autoriza retirar a sua razão de ser da manutenção de uma
doutrina anteriormente sustentada, mas que não guarda mais vínculo algum com a
nova realidade.
Um esclarecimento desses
constitui um passo considerável, libertador, em comparação à superabundância de
escritos que se esforçam para demonstrar a ausência da ruptura, a pretensa
evidência de uma continuidade sob a aparência de descontinuidade etc., que
caracterizaram as décadas precedentes e que ainda agora são apoiados aqui e
ali. Desta vez, o problema é colocado de forma clara. A ‘reforma’ a que alude
Bento XVI é definida como “um conjunto de
continuidade e de descontinuidade em diferentes níveis”. Para ‘níveis’ precisa
entender certa gradualidade do ponto de vista da duração da validade, imediatamente
explicada: “as decisões fundamentais
podem permanecer válidas, enquanto as formas de sua aplicação em novos
contextos podem mudar”. O conceito de reforma assim aclarado sugere dois elementos
de reflexão, um de método, outro de fato.
* * *
A distinção entre ‘decisões
fundamentais’ e ‘formas’, à primeira vista, pareceria se relacionar apenas com
a modalidade de expressão de um mesmo princípio. Além do mais, o termo usado é o
de ‘decisão’, que é um pouco ambíguo, porque não poderia se referir a nada mais
do que às disposições disciplinares (por exemplo, o Non possumus, o Realinhamento[3]...); mas o contexto leva a compreende que se trata de juízos doutrinais (‘aplicação’), exprimidos
de maneira elaborada, como, por exemplo, a série de encíclicas contra o
modernismo de Leão XIII: Diuturnum illud
(1881), Humanum genus (1884), Immortale Dei (1885), Libertas praestantissimum (1888).
Antes da segunda
sessão conciliar, isto é, muito recentemente, esta maneira de distinguir substância e aplicação, pelo menos no sentido que aqui parece em discussão, não
era nem evidente nem usual. Atinha-se à ideia de que os princípios constantes
pudessem ser invocados com insistência nas épocas em que eram esquecidos ou
descaradamente violados. Como em qualquer juízo prático, os princípios eram
aplicados a uma determinada situação com a insistência ou a discrição exigida
segundo o caso, o que constituía propriamente falando a ‘forma’. Mas após a
segunda sessão conciliar, não parece se tratar da mesma coisa. Bento XVI nota
que a distinção entre ‘decisões fundamentais’ e ‘formas’ é “um fato que a uma primeira abordagem pode
facilmente fugir”; e acrescenta também que requeria um esforço de compreensão:
“[...] tínhamos de aprender mais
concretamente do que antes que as decisões da Igreja sobre fatos contingentes
[...] deviam necessariamente ser elas mesmas contingentes [...]. Precisava aprender
a reconhecer que, em tais decisões, somente os princípios exprimem o aspecto
duradouro [...], ao invés, as formas concretas não são tão permanentes [...]”.
Do ponto de vista metodológico se trata, portanto, de uma inovação que consiste
não apenas em distinguir, como sempre com precedência, princípios e aplicações prudenciais,
mas também em dividir os próprios enunciados doutrinais em princípios ‘fundamentais’, intangíveis, e formas concretas, sobre as quais resta ainda compreender o alcance
exato. Notamos que a terminologia utilizada é puramente jurídica, dado
indubitavelmente nada fortuito.
Parece que se possa,
por analogia, compreender a divisão aqui operada como um ato administrativo ou
legislativo de desclassificação: por estar em contradição com uma situação
nova, uma parte da doutrina anteriormente exposta é considerada como não
operante ou contraproducente, e se vê assim rebaixada, passando da categoria
dos princípios àquela das formas ou formulações ligadas a uma
determinada época.
O discurso de
Dezembro de 2005 traz o exemplo da liberdade de religião, condenada quando era
“considerada uma expressão da
incapacidade do homem de encontrar a verdade”, enaltecida pelo Concílio
porque considerada uma “necessidade derivante
da convivência humana”, a partir do momento em que um “Estado moderno, que concedia lugar a cidadãos de várias religiões e
ideologias, agindo para com estas religiões de modo imparcial, assumindo simplesmente
a responsabilidade por uma convivência ordenada e tolerante entre os cidadãos pela
liberdade deles de praticar a própria religião”. A diferenciação ultrapassa
a de uma acentuação particular, o argumento novo vindo não a completar o
precedente, mas tornando-o caduco. Não há aqui, então, uma expressão parcial de
historicismo, na medida em que a enunciação doutrinal em relação às
circunstâncias novas, ou presumidas tais, é subtraída à regra do
desenvolvimento homogêneo por causa de sua colocação na categoria das ‘formas’?
Poder-se-ia tomar outro
exemplo, de resto ligado ao precedente, o da doutrina do Cristo Rei, exposta de
maneira aprofundada por Pio XI na Quas
Primas (1925). Uma longa argumentação teológica desenvolve as razões pelas
quais o inteiro corpo social tem o dever objetivo de prestar culto público ao Cristo
Redentor. Pode-se imaginar – por pura hipótese – que, em um determinado
contexto, seja preferível não insistir nisso, e isto por razões de prudência; é inconcebível reconstruir tal doutrina de modo que não apareça mais ‘ameaçadora’ em
relação à cultura dominante anticristã, e optar por amputá-la de seus aspectos
sócio-políticos (a obrigatoriedade do direito do culto público em relação ao Redentor)
para conservar apenas o seu sentido espiritual e escatológico?
E, no entanto, nunca
antes do Vaticano II foi tomada em consideração tal possibilidade, nem, sobretudo,
vinculando-a a um juízo de perempção histórica. Pela perspectiva factual, e
salvo equívocos, o método surgido durante o Concílio é, portanto, inédito. As
razões para seu surgimento nesta precisa época deveriam ser objeto de uma
pesquisa que permitisse comparar alguns modos de raciocinar paralelos, sobre
terrenos teológicos, como a metodologia do ecumenismo, os novos conceitos de Tradição,
o potencial desenvolvimento das noções de ‘pastoralidade’ e ‘recebimento/aceitação’,
a relação entre teologia e prática etc.
* * *
Ao lado da questão
do método subsiste uma questão de fato.
A mudança evocada
por Bento XVI corresponde a duas fases distintas da ordem política moderna, que
justifica por parte da Igreja uma rejeição, primeiro, e uma aprovação, depois.
E sobre as mudanças
internas da modernidade? Certamente, a veritação[4] política,
rápida e violenta dos princípios formulados na era dos Lumes[5] fez
nascer – com o fórceps – uma nova sociedade, governada de acordo com a lógica dessa
filosofia, em antagonismo formal com os princípios cristãos dos quais aspirava
libertar a humanidade. Esta inter-relação entre filosofia e realidade é fundamental
no caso da modernidade, que se desenvolve nos tempos como um processo de
realização da filosofia geral que a define. Levado adiante pelos homens, este
processo esbarra em algumas resistências daquela parte das sociedades que este atinge,
dóceis ou relutantes, conforme os tempos e os lugares.
Este processo
encontra também o obstáculo das contradições que traz em si (universalismo/diferencialismo,
soberania do indivíduo/igualdade...), que ao longo do tempo levam à sua
autodestruição; finalmente, não esqueçamos, ele entra no mistério da divina
providência, da qual cumpre por um tempo os desígnios. Tudo isso explica que,
ao contrário do mito progressista, o processo pode seguir um ritmo caótico
antes de ter que um dia desaparecer.
O discurso de 2005
não pretende que a modernidade – entendida como ‘liberalismo radical’, à qual haviam
respondido as “condenações severas e radicais”, estas também de Pio IX – teria
cessado de existir enquanto filosofia-mundo. Em vez disto, considera que, sob o
efeito das circunstâncias, o processo moderno diversificou as suas modalidades (especialmente
com o exemplo do modelo norte-americano distinto do jacobinismo), e que a
implicação política dos católicos nas instituições democráticas eliminou certas
incompreensões e acrescentou a ideia de uma possível cooperação lá onde antes
era concebível apenas a oposição. A mudança qualitativa teria tomado, assim,
principalmente, o aspecto de um espírito novo, de uma transição do estado de guerra
a uma recíproca abertura.
Esta evolução coincide
com aquela dominante no momento do Concílio, caracterizada por um otimismo
voluntarista, de qualquer maneira bem em sintonia com as realidades do momento.
Sucessivamente, tornou-se mais difícil conceber os fatos a partir da mesma
angulação, enquanto a rejeição de Cristo por todos os tipos de forças políticas,
ideológicas, econômicas e religiosas tomou uma amplitude considerável.
A este respeito, a
interpretação dada por Bento XVI em 2005 parece demasiadamente inatual. O único
traço de boas relações a que alude sem nomeá-las – a laicidade positiva – não é,
por enquanto, que um projeto, se não um algo que relatam entre si, mas no qual,
no fundo, não acreditam. É, portanto, lícito ter para si que o propósito de
Bento XVI era mais prescritivo que descritivo, como uma espécie de arenga para
um alívio prático das tensões, pela perspectiva do mal menor.
Poderíamos imaginar
uma trégua na hipótese em que as circunstâncias enfraquecessem o sistema
dominante ou se se tornasse útil para este praticar a política da mão estendida
em direção à Igreja, até o momento em que fosse ele mesmo a retomar o seu curso
normal. Tais foram as fases da Ordem moral conhecidas no século XIX, ou ainda a
‘NEP[6] religiosa’ na URSS no início do stalinismo.
Por outro lado, a
modernidade, depois de ter misturado todas as formas, hoje chegou à sua fase
tardia de sua consumação e oferece as duas figuras, contraditórias apenas na
aparência: hipermodernidade, de
ambições ilimitadas, e pós-modernidade,
decadente e anti-humanista, sem que uma ou outra abandonem por nada uma mesma
lógica inicial de exclusão de Deus. No máximo, podemos notar pequenas e às
vezes úteis diferenças, embora pareça, sob certos aspectos, que a comparação final
dê a impressão de um jogo empatado: o homo
sovieticus, produzido pela violência policiesca do regime comunista não tem
o seu par no homo occidentalis descerebrado,
de sociedades tidas mais livres, mas de efeitos antropológicos similares?
Em qualquer caso, a
hora presente é mais um retorno a um conflito aberto, o que nos reconduz, sob
diversos aspectos, à situação à qual quis responder o Syllabus[7]. Será,
assim, possível considerar, com o fim de responder a esta digressão, uma nova operação,
desta vez de reclassificação da ‘forma’ conciliar, ela própria vítima da obsolescência?
Pode-se duvidar da hipótese, sobretudo porque, no exemplo dado, sobre a
liberdade de religião, Bento XVI indicava que, se o Vaticano II, com o Dignitatis Humanae, havia reconhecido e se apropriado de um princípio
essencial do Estado moderno, o Concílio havia, ao mesmo tempo, “retomado,
renovando-o, o patrimônio mais profundo da Igreja”.
Fazer o caminho
inverso por causa de novas manifestações estruturais de hostilidade política
dificilmente escaparia da incriminação de oportunismo, o que torna a hipótese impensável
sem uma profunda revisão do método como um todo, bem além do tema dos ‘quatro
valores não negociáveis’. Precisaria, portanto, encontrar uma saída. Embora o
conceito de reforma seja mais preciso em relação àquele do aggiornamento (renovação), não seria mais justo homenagear o da restauração, no sentido usado, por outro
lado, durante o Concílio em relação à liturgia?
A conotação deste
último termo é muito negativa para o mundo herdado pelos Lumes, porque evoca todos
os fantasmas do retorno ao ancien régime,
da ‘reação’ etc. O latim instauratio,
que ele traduz, explica, sem dúvida, muito melhor a ideia de reabilitação ou de
repristinação. Na vida cristã ele evoca, sobretudo, os frutos da reconciliação
com Deus após o pecado confessado; ou, ainda, a redescoberta do sentido ou da
beleza original das doutrinas e das práticas cuja consciência se atenuou ao
longo do tempo. Este modo de conceber uma renovação desligado da constrição de
ter que se justificar perante o mundo permitiria uma abordagem essencialmente positiva,
com o resultado de não poder mais operar seleções na sagrada doutrina em função
da aceitação ou da rejeição por parte da cultura dominante, mas para buscar tudo
o que pode e deve ser reabilitado depois de meio século de desordens.
Bernard Dumont
[Editorial do n.113/Outono 2011 da Revista francesa de reflexão política e religiosa Catholica] – Tradução para o blog Chiesa e post Concilio por Maria Guarini – Tradução para o português Giulia d’Amore di Ugento.
Fonte: Chiesa e post Concilio.
NOTAS
1 NdR: São Vicente de Lerins: Crescat igitur... et multum vehementer proficiat... sed in suo dimtaxat
genere, in eodem silicet dogmate, eodem sensu eademque sententia: o progredir
de seu entendimento, portanto, é o orgânico acréscimo do idêntico, imune a qualquer
alteração.
2 NdTª.: Dignitatis Humanae: o texto.
A Declaração ‘Dignitatis
Humanae’ é compatível com a doutrina católica tradicional?
3 NdR.: Basicamente, o Ralliement (realinhamento) contemplava
a proposta de aceitação da constituição republicana na crença de que tinha
chegado o momento para os católicos franceses de renunciar à possível
restauração de uma Monarquia cristã, e sancionou a reaproximação entre a França
e a Santa Sé. O prevê o ‘Au milieu des
sollicitudes’ (No meio das solicitudes) que é uma encíclica escrita em
francês por Leão XIII em 1892, com a qual, retomando as temáticas já exprimidas
em Nobilissima Gallorum Gens, de 1884,
se propunha uma reaproximação dos católicos franceses à República.
4 NdTª.: Veritação é um neologismo: atribuir verdade a algo, realizar, adquirir verdade. Filosoficamente, veritação é um critério filosófico que se baseia nas evidências dos sentidos ou nas comprovações racionalmente válidas que se fazem, em última instância, com o apoio de premissas validadas por evidências. É um critério externo às próprias crenças que valida cada uma delas.
4 NdTª.: Veritação é um neologismo: atribuir verdade a algo, realizar, adquirir verdade. Filosoficamente, veritação é um critério filosófico que se baseia nas evidências dos sentidos ou nas comprovações racionalmente válidas que se fazem, em última instância, com o apoio de premissas validadas por evidências. É um critério externo às próprias crenças que valida cada uma delas.
5 NdTª.: Era dos Lumes, Era
da Razão ou Iluminismo.
6 NdTª.: NEP (Novaya Ekonomicheskaya Politika: Nova
Política Econômica) foi a política econômica seguida na União Soviética após o
abandono do comunismo de guerra (praticado durante a guerra civil), em 1921, e
a coletivização e renacionalização forçada dos meios de produção com a ascensão
ao poder por Stalin, em 1928. Em linhas gerais, passou pela devolução à
iniciativa privada das pequenas explorações agrícolas, industriais e comerciais,
tentando assim, desesperadamente, e recuperando alguns traços do capitalismo,
fazer a nascente União Soviética sair da grave crise em que se achava
mergulhada.
7 NdTª.: “Syllabus complectens praecipuos nostrae
aetatis errores”, o Silabo, por antonomásia, publicado por Papa Pio IX junto
com a Encíclica Quanta
Cura, em 1864. Trata-se de um elenco dos (80) principais erros do
nosso tempo. No Silabo são condenados o liberalismo, as velhas heresias
repropostas nas ideias da época, o ateísmo, o comunismo, o socialismo, o indiferentismo
e outras proposições relativas à Igreja e à sociedade civil (incluído, ai, o
matrimonio civil).