FILHOS DA IGREJA
Pe. C. Bouchacourt |
Cristo confiou os seus ensinamentos à Igreja. Ela
não é sua proprietária, mas sua depositária. No cumprimento do seu mandato,
leva-os até os confins da terra para dispor as almas a receberem a vida
sobrenatural, para iluminá-las e conduzi-las à vida eterna. “Ide por todo o
mundo e pregai o Evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será
salvo; mas quem não crer será condenado”.(3) Esse é o roteiro que a Igreja recebeu
do seu Divino Fundador e que deve seguir até a sua segunda vinda. Sua
hierarquia, sua disciplina, sua organização interna, seu direito canônico estão
a serviço da doutrina recebida de Cristo para transmitir a fé que ela deve
conservar, explicar, explicitar, defender e transmitir em toda sua integridade,
para o bem das almas e com a assistência do Espírito Santo. Ninguém, até mesmo
o Papa, pode mudar substancialmente este depósito recebido, sem correr o risco
de ofender gravemente a Deus e comprometer a Fé dos próprios católicos.
A Igreja cumpre esta missão há dois mil anos,
mantendo sua unidade, conservando esta herança contra os ataques do erro,
apesar das perseguições que não faltaram desde sua fundação e as traições de
certos membros que ela excluiu de seu seio. Fortalecida por esta Assistência
Divina, não cessou de se consolidar e se estender por toda a face da Terra,
apoiando-se sobre os dois pilares que constituem a Revelação: a Sagrada
Escritura e a Tradição. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus posta por
escrito sob a inspiração do Espírito Santo e registrada nos 72 livros da Bíblia
(45 do Antigo Testamento e 27 do Novo Testamento). Quanto à Tradição, ela se
reflete na prática da Igreja, nas fórmulas e nos usos litúrgicos, nos escritos
dos Padres e dos Doutores da Igreja, nos Credos, nos Concílios, nas encíclicas
dos Papas, nos catecismos, nas obras de arte sacra, etc.
Este patrimônio chegou intacto até nossos dias.
Estas são as fontes nas quais beberam os filhos da Igreja ao longo de toda sua
história. A implementação desta doutrina deu frutos visíveis: a Cristandade. Os
homens, as mulheres, as famílias, a sociedade foram transformados por este
tesouro, e o céu se encheu de santos, conhecidos e desconhecidos. Nós queremos
conhecer esta herança preciosa e ser fiéis a ela, defendê-la e transmiti-la em
toda sua pureza para as gerações futuras. Negá-la significaria negar Nosso
Senhor Jesus Cristo, bem como os papas, os mártires e os santos que nos
precederam.
Nos últimos cinquenta anos, com o Concílio Vaticano
II, os homens da Igreja quiseram adaptar este depósito revelado à mentalidade
moderna. Este foi o famoso aggiornamento conciliar. Eles tentaram modificar
profundamente estes dois pilares sobre os quais a Igreja se apoia: a Sagrada
Escritura e a Tradição. Em conformidade com este funesto espírito foram
revisados e corrigidos os textos sagrados da Bíblia e sua interpretação. Também
se iniciou uma ruptura com a Tradição bimilenar da Igreja. Por isso,
transformou-se a liturgia, o Direito Canônico, o catecismo, a arte católica,
para adaptá-los à nova doutrina ensinada. À semelhança da Revolução Francesa,
toda referência ao passado devia desaparecer. O ‘ano 1’ da Igreja Conciliar
começou, então, com João XXIII e o Concílio Vaticano II. Fez-se tábua
rasa do passado. Uma primavera foi anunciada, mas o que chegou foi um inverno!
Um inverno glacial que esterilizou a Igreja e suas obras, porque se quis
separar a Igreja de seu Esposo, Jesus Cristo, para casá-la com o mundo. Esta
família reconstituída recebeu o nome de ‘Igreja conciliar’, segundo as
próprias palavras do Cardeal Benelli. Assim se chegou a uma crise sem
precedentes, que até esta data ainda não chegou ao fim. A Igreja foi abalada
até os seus fundamentos. Para conservar a sua Fé, os filhos da Igreja de
sempre, em oposição a este ‘espírito
conciliar’, passaram à resistência e sofreram a perseguição de Roma,
dos bispos e dos padres. Que mistério insondável! O Padre Calmel,
sacerdote dominicano francês, capelão das irmãs dominicanas de Brignoles,
grande defensor da Tradição desde os primeiros tempos, escreveu estas
magníficas palavras: “De nenhuma maneira formamos uma seita marginal. Somos
membros da única Igreja Católica, Apostólica e Romana. Fazemos o possível para
preparar o dia abençoado em que, voltando a autoridade a ser o que nunca
deveria ter deixado de ser, a Igreja, à vista de todos, finalmente será livrada
da neblina sufocante das provações presentes. Ainda que esse dia demore a
chegar, buscamos não abandonar de forma nenhuma o nosso dever essencial de nos
santificarmos; e fazemos isso guardando a Tradição no mesmo espírito que a
recebemos, que é um espírito de santidade”.(4)
Animado por este mesmo espírito, um filho eminente
da Igreja e digno sucessor dos Apóstolos, Mons. Lefebvre, viajou
incessantemente de Ecône a Roma para tentar convencer o Papa e sua equipe a
retornarem à Tradição, sem nunca querer romper com a Sé de Pedro. Eis o que ele
pregava em 26 de fevereiro de 1983, no Seminário de Zaitzkofen, antes de
ordenar o Padre Ceriani e alguns outros diáconos:
“(...) Alguns membros da Fraternidade,
infelizmente, pensaram que não havia nenhuma razão para ir a Roma, que não se
deveria mais ter contatos com aqueles que hoje estão no erro, mas que se
deveria abandonar àqueles que aderiram ao Concílio Vaticano II e às suas consequências.
E por isso mesmo, porque a Fraternidade continuou a manter contatos com Roma e
com o Papa, preferiram abandonar a Fraternidade.
A Fraternidade nunca agiu dessa
maneira, e nunca pensei ter que dar esse exemplo. Pelo contrário: não deixarei
de ir a Roma. Continuo mantendo contatos com o cardeal Ratzinger, a quem
já conheceis, com o propósito de que Roma volte à Tradição. Se eu pensasse que
o Papa não existisse mais, que não há Papa, para que ir a Roma? E então, como
esperar que Roma volte à Tradição? Porque é o Papa que deve fazer que a Igreja
volte à Tradição. A ele corresponde essa responsabilidade. Se hoje em dia
infelizmente se deixa arrastar pelos erros do Vaticano II, isso não é motivo
para abandoná-lo. Muito pelo contrário: devemos colocar todo nosso esforço para
fazê-lo refletir sobre a gravidade da situação, para fazer que volte à Tradição
e pedir-lhe que faça a Igreja voltar para o caminho seguido por vinte séculos.
Sem dúvida, alguns me dirão (como dizem
aqueles que se afastaram de nós): ‘É inútil, está perdendo seu tempo!’
O que acontece é que eles não têm
confiança em Deus. Deus pode tudo! Do ponto de vista humano, realmente é
decepcionante, mas devemos rezar, rezar o dobro pelo Papa, para que Deus o
ilumine, para que finalmente abra os olhos, para que veja os desastres que se
expandem na Igreja. Devemos rezar para que os seminários se encham como estão
os nossos, para formar novamente padres que celebrem a verdadeira Missa e
cantem as glórias de Deus, como Cristo fez na Cruz, e para que continuem o
Sacrifício da Cruz.
É por isso que vou a Roma! Esta é a
Fraternidade.”
Este é também o caminho seguido por seu sucessor, Dom
Fellay, após a morte do nosso fundador. Como somos filhos da Igreja, não
podemos resignar-nos a ver que a Tradição seja expatriada de seu seio, como
ainda é hoje. Essa foi a finalidade dos recentes discussões doutrinais: mostrar
às autoridades romanas que a Igreja não pode ser cortada de suas raízes, como o
fez durante o último Concílio e nas décadas seguintes. De fato, a solução da
crise que a Igreja atravessa se encontra na restauração da Tradição em todos os
seus níveis. Estamos convencidos de que um dia essa restauração irá ocorrer,
mesmo que leve tempo... Já é possível ouvir algumas vozes – que não são vozes
da Fraternidade – pedindo que se faça uma análise crítica dos textos do último Concílio.
Tal atitude era impensável há 10 anos. Não há dúvida de que este movimento
ainda é tímido, mas não deixa de ser real e crescerá. A ala progressista se
opõe a tal eventualidade e se oporá por todos os meios, como inimigos da
Igreja, a esta restauração.
Quanto a nós, filhos da Igreja, é preciso que não
percamos o ânimo, que guardemos a Fé e a Esperança iluminadas pela Caridade, que
rezemos e façamos penitência pela Igreja e por sua hierarquia.
Façamos nossas as palavras de Nossa Senhora de La
Salette: “Chamo os meus filhos, os meus verdadeiros devotos, aqueles que já
se consagraram a mim a fim de que vos conduza ao meu Divino Filho; os que, por
assim dizer, levo nos meus braços, os que têm vivido do meu Espírito;
finalmente, chamo os apóstolos dos últimos tempos, os fiéis discípulos de Jesus
Cristo que têm vivido no desprezo do mundo e de si próprios, na pobreza e na
humildade, no desprezo e no silêncio, na oração e na mortificação, na castidade
e na união com Deus, no sofrimento e no desconhecimento do mundo. Já é hora que
saiam e venham a iluminar a Terra. Ide e mostrai-vos como filhos queridos meus.
Eu estou convosco e em vós enquanto a vossa Fé for a luz que vos ilumina nesses
dias de infortúnio. Que o vosso zelo vos faça famintos da glória de Deus e da
honra de Jesus Cristo. Lutai, filhos da luz, vós que sois em pequeno número e
que vedes; porque vem o tempo dos tempos, o fim dos fins”.
Que cada um esteja em seu lugar, ali onde a
Providência o colocou, para cumprir fervorosamente o seu dever de estado, rezar
o terço e fazer penitência pelas intenções da cruzada que Dom Fellay nos chamou
até o Pentecostes de 2012, “para que a Igreja seja libertada dos males que a
afligem ou que a ameaçam em um futuro próximo, para que a Rússia seja
consagrada e venha logo o triunfo da Imaculada”. Eis o que a Igreja espera
dos seus filhos e filhas! Está ao alcance de todos. Ninguém pode se esquivar deste
dever sem ser ingrato com Aquela que deu à luz a Graça. Façamos isso com grande
confiança pela honra de nossa Mãe, a Santa Igreja, e pela salvação das almas.
Que Deus os
abençoe!
Pe. Christian Bouchacourt
Superior do Distrito da América do Sul
(1) Mat. 28, 20.
(2) Mat. 16, 18.
(3) Mc. 16, 15-16.
(4) Pé Calmel, O.P.: “Brève apologie pour l’Eglise de toujours”,
anexo 2, pág. 98.
Fonte: Revista Jesus Christus n. 136.
Português revisado por Giulia d'Amore di Ugento.
Revista Jesus Christus n. 136 |