NA IDADE DA CONFUSÃO1, EIS UM LIVRO QUE ESCLARECE...
A primeira apresentação do livro de Gnocchi-Palmaro2, A Bela Adormecida. Porque depois do Vaticano II a Igreja entrou em crise. Porque despertará (Ed. Vallecchi), despertou um vivíssimo interesse entre as pessoas reunidas sábado, 15 de outubro, na maravilhosa e antiga Igreja de Todos os Santos dos Franciscanos da Imaculada, de Florença, onde foi celebrada, antes da conferência, a Santa Missa no rito tridentino oficiada pelo Pe. Serafino Lanzetta.
Estavam presentes, à mesa dos palestrantes, o próprio Pe. Lanzetta, o Prof. Pucci Cipriani, o Prof. Mario Palmaro e o Dr. Paolo Deotto, diretor de Riscossa Cristiana3. Este encontro foi melhor resposta para o artigo que Alberto Melloni4 havia escrito no ‘Corriere fiorentino’5 um dia antes; jornal que dedicou, no dia da reunião, uma página inteira ao evento. O expoente da Escola de Bologna6, que fez do Concílio Vaticano II um mito intocável, usou em seu artigo tons insolentes e rudes contra quem sustenta que a Igreja sofreu um trauma com seu XXI Concílio. A medicina nos ensina que dos traumas se consegue muitas vezes sarar somente descobrindo as causas que os geraram... Tampar o sol com a peneira7 ou repetir enfurecidamente que o Concílio não é o problema, mas que, quando muito, os problemas surgiram porque as diretrizes conciliares não foram executadas suficientemente (os progressistas) ou porque houve más interpretações deles (os neoconservadores) não é certamente um bom serviço à Igreja.
Melloni considera os católicos que amam toda a Igreja, portanto sua Tradição, como nostálgicos que ‘comovem’. Tem dó deles e deles se compadece como se se tratasse de frustrados que esperam uma revanche: “esperam uma desforra ao invés de compreender a sua posição por aquilo que é: um movimento que chama tradição e hábitos de sua própria juventude”; e, no entanto, a Igreja de Todos os Santos estava cheia de jovens e de estudantes, assim como esses mesmos jovens se interessam pela Tradição da Igreja através das ideias que livremente circulam na Internet. Não se trata absolutamente de nostálgicos. As estatísticas, por outro lado, falam por si. Melloni não sabe que nestas reuniões e nas missas tridentinas os mais velhos são sempre o percentual menor. Na realidade, todos estes católicos querem entender o que realmente aconteceu naquele Concílio Vaticano II que tantos problemas tem criado.
Ninguém, desprovido de má-fé, pode afirmar que a Igreja tenha se beneficiado das decisões pastorais do Concílio Vaticano II. Ninguém pode dizer que tenham aumentado as vocações, que tenha aumentado o zelo, que tenham se ampliado a Fé, a Esperança e a Caridade, que haja uma boa preparação catequética nas crianças e adolescentes, que a prática religiosa tenha aumentado, que as famílias tenham sido beneficiadas, que as leis dos Países ocidentais sejam respeitosas em relação à vida humana desde a sua concepção, que a evangelização, ordenada por Jesus Cristo aos seus Apóstolos, tenha assimilado linfa nova e vital... Nada disso. Então, realmente, como disse Ralph McInerny8, no Vaticano II algo deu errado, mas não deu errado porque, como argumentou o estudioso americano, os documentos não foram acolhidos corretamente e sua interpretação foi falsificada, mas porque o Concílio, seguindo a cultura da época, quis se desfazer, disse o padre Serafino Lanzetta, do princípio da Cruz e do sacrifício, sustentando uma tese heterodoxa “em nome da pastoralidade. Isso originou a ambiguidade, e, portanto, o Concílio se submeteu, por sua própria natureza, a múltiplas interpretações. Muitos, como resulta da análise de Melloni, pensaram que a doutrina deva adaptar-se aos tempos e não vice-versa. Hans Küng9 sustenta, em seu livro ‘Salvemos a Igreja’, que a Igreja está em crise não for falta de Fé e de correta pregação, mas deriva de um problema de caráter político dentro da Cúria romana, portanto da teologia romana, da teologia metafísica. Küng, como Alberigo e Melloni, argumenta que o Vaticano II queria recuperar a Igreja do primeiro milênio, considerando-o um período ideal porque a Igreja era unida e compacta: Ocidente e Oriente juntos, sem cismas, sem Protestantismo. Mas como é possível, na Igreja, não considerar o segundo milênio? Benvinda seja, então, a análise divulgadora de Gnocchi e Palmaro, que esclarece muitos pontos, gerando, no entanto, em alguns, turbamento, irritação, nervosismo”, e, sem argumentações sérias, procuram desacreditar com irreverência aqueles que consideram ‘inimigos’.
Pe. Lanzetta, que aprecia neste livro o agradabilíssimo italiano, lembrou, como bem enfatizaram Gnocchi e Palmaro em seu livro, a formidável incidência da mídia sobre o mito do Vaticano II, e isto deriva de uma filosofia de matriz kantiana: a coisa existe se aparece. O ‘Avvenire d’Italia’10, no período do Concílio, registrava a crônica das assembleias conciliares: as realidades sagradas eram colocadas em praça pública, em uma espécie de mentalidade ‘democrática’ que satisfazia as necessidades liberais da cultura da época. E tais crônicas relatavam tudo o que parecia ‘novo’ e ‘revolucionário’, e não a essência da Fé. Emblemático resulta o fato de que o arcebispo brasileiro Helder Pessoa Câmara11 (conhecido como Dom Helder, 1909-1999) preferisse realizar coletivas de imprensa a falar no Concílio, pois o reputava, justamente, mais eficaz, uma vez que os Padres Conciliares se deixavam influenciar por tudo que aparecia nos meios de comunicação de massa, mais do que por aquilo que haviam ouvido nas Sessões.
“O livro de Gnocchi e Palmaro”, afirmou Pe. Lanzetta, “não é uma inquisição, um processo a Galileu12, mas simplesmente uma análise dos fatos; é tomar consciência de um problema real. Ocorre tomar consciência de que o Concílio não é o todo, não é o divisor de águas. A Fé católica não se origina em um Concílio”. A Fé não depende da adesão ao Concílio Vaticano II, porque este não é um dogma de Fé. A Bela Adormecida ajuda a perceber um problema que não pode mais ser negligenciado.
Paolo Deotto, então, declarou que ficou satisfeito de ler o livro de Gnocchi-Palmaro, porque há muito tempo recebe, em um ritmo insistente, correspondência dos leitores de Riscossa Cristiana, na qual se percebe o desejo de compreender as questões controversas do Concílio e “o desejo de ter uma Igreja próxima e respeitada”, que não se confunde com as outras realidades terrenas de consistência líquida ou gasosa. O fiel da primeira hora conciliar restava assombrado diante dos novos eventos eclesiásticos: padres trabalhadores, padres sindicalistas, padres sociólogos, padres politiqueiros, padres guerrilheiros... quando pelo contrário, ontem como hoje, precisamos de sacerdotes que sejam sacerdotes, “necessitamos deles”, afirmou Deotto, “como do ar que respiramos”.
A comunicação da época se apropriou da temática religiosa: o Concílio Vaticano II era uma grande novidade, e jornais e TV colocaram sob os holofotes uma Igreja que, através de alguns teólogos e alguns pastores, queria emancipar-se e estar nos salões da sociedade13. “A Igreja queria manter-se atualizada com os tempos”; sem antagonizar ninguém, quis agradar a todos para ser amiga de todos, não olhando mais para erros e heresias, mas apenas para as coisas que unem e não dividem, “bem distante de um santo Atanásio que permaneceu firma na Fé Católica e no Deus encarnado com todas as consequências que este Credo comporta”.
A intervenção do Prof. Palmaro foi, então, cheia de significado. Ele lembrou, antes de tudo, de ter nascido em 1968, e daqueles anos lembra, em particular, uma palavra que era sempre pronunciada e praticada: ‘debate’, continuamente invocado e reclamado. Desde então, se fazem debates sobre tudo e todos. “Todavia, hoje, há quem não queira mais os debates, embora os tenha apoiado muito. Daqui nasce a intolerância, a qual esconde uma grande fraqueza: não enfrentar a realidade. Eis, então, a idade do paradoxo: onde eu e Gnocchi pudemos expressar o nosso pensamento católico? Em jornais seculares e, em particular, no ‘Il Foglio’14, de Giuliano Ferrara. Aqui pudemos dar espaço a uma hermenêutica de fatos católicos. Estamos dentro do que, muito provavelmente, os historiadores do futuro definirão a ‘Idade da confusão’.
Nos acusam de fazer recair todas as culpas sobre o Vaticano II, e que procuramos todas as causas dos males neste particular Concílio. Não é verdade, porque dizemos que muitos problemas doutrinais precederam o Vaticano II, como bem destaca o Prof. Roberto de Mattei15. De fato, aos meus alunos faço ler a encíclica do São Pio X, a Pascendi Dominici Gregis16, onde são evidenciados e condenados os erros dos modernistas. Esta tem um caráter de definição e jurídico, e há nela uma metafísica sólida, onde a teologia é acompanhada por um pragmatismo são, que não deixa espaço à imaginação ou às fantasias utópicas.
O católico é chamado a reagir: não pode salvaguardar o que a Igreja sempre renegou. No entanto, Melloni e alguns conservadores não querem que se fale. A acusação deles é forte, usam as armas da excomunhão, ou nos consideram pobres marinheiros que discutem em uma taberna. Outro paradoxo: não podemos mais dizer a alguém que é um herético, mas, contra os católicos que instauram um ‘debate’ sério, então se diz que eles são heréticos...”. Estamos diante do paradoxo de Epiménides17, que afirmou: ‘Todos os cretenses são mentirosos’. Mas os cretenses eram muito, supondo que todos fossem mentirosos: como Epiménides era um cretense, então Epiménides era um mentiroso. Sua afirmação era então verdadeira, mas isto é impossível porque um mentiroso não diz a verdade. Portanto, Epiménides é um mentiroso, e sua afirmação não é verdadeira. Negar uma asserção universal como ‘Todos os cretenses são mentirosos’ equivale a dizer que há pelo menos um cretense que diz a verdade. Da mesma forma, esses escritores e estudiosos católico têm que viver, portanto, o paradoxo de Epiménides.
Palmaro ressaltou, em fim, a importância da mudança da linguagem ocorrida durante o Concílio, e os documentos da Sessão estão embebidos de novas caracterizações linguísticas. Três foram as colunas da comunicação católica:
1. A língua latina. Esta deu uniformidade à linguagem e ao sentido das palavras. Tudo era definido em latim para evitar ambiguidades de expressão, oferecendo uma solidez sã ao longo do tempo.
2. A linguagem apologética. O latim não era compreendido por todos, por isso devia haver a transferência da comunicação por um clero preparado ao povo dos fiéis: narravam-se as vidas dos santos com os livros e com as homilias, defendiam-se as razões da Igreja, e nos sermões não se usavam as citações de um Rahner18, mas de São Jerônimo, de São Francisco... Em suma, alimentava-se a Fé.
3. A linguagem jurídica. Os conceitos eram expressos em modo de definição.
Tais cânones, no Concílio Vaticano II não os encontramos mais. De fato, explicou Palmaro, os esquemas conciliares preparados pela Cúria de Roma que contemplavam ainda estas três colunas foram descartados.
Muitos aspectos, então, presentes nos documentos conciliares são a esta altura antiquados e ultrapassados; por exemplo, a relação entre o homem e o ambiente ou o homem e a técnica, ambos caracterizados pelo irracional otimismo dos anos Sessenta. Portanto, estamos diante de outro paradoxo: há muito mais novidade em levantar tais questões do que em quem, pelo contrário, está ancorado ao ‘moderno’ de então. Portanto, enfrentar essas temáticas resulta um drama psicológico para aquela geração que cresceu no mito do Concílio. Estamos diante de um novo Muro de Berlim que cairá, inexoravelmente, como acontece com as ideologias. A Igreja não nasceu de novo com uma fictícia e almejada pentecostes, porque a Igreja teve e tem uma única Pentecostes, não decidida pelos homens. Então, devemos nos armar de santa paciência. Os tempos da Igreja são longos: levou quase 50 anos para levantar questões como as de hoje, e o encantamento da Bela Adormecida será quebrado também graças a obras como a de Gnocchi e Palmaro, que, como muitos outros católicos que amam a Igreja, se colocam interrogações lícitas para as quais desejam ter respostas não vagas, ambíguas, ou fugazes, mas resolutivas, e operam com o espírito de quem não quer servir-se da Igreja, mas deseja servi-la.
Cristina Siccardi
da esquerda: Pucci Cipriani, Mario Palmaro e Paolo Deotto |
Melloni considera os católicos que amam toda a Igreja, portanto sua Tradição, como nostálgicos que ‘comovem’. Tem dó deles e deles se compadece como se se tratasse de frustrados que esperam uma revanche: “esperam uma desforra ao invés de compreender a sua posição por aquilo que é: um movimento que chama tradição e hábitos de sua própria juventude”; e, no entanto, a Igreja de Todos os Santos estava cheia de jovens e de estudantes, assim como esses mesmos jovens se interessam pela Tradição da Igreja através das ideias que livremente circulam na Internet. Não se trata absolutamente de nostálgicos. As estatísticas, por outro lado, falam por si. Melloni não sabe que nestas reuniões e nas missas tridentinas os mais velhos são sempre o percentual menor. Na realidade, todos estes católicos querem entender o que realmente aconteceu naquele Concílio Vaticano II que tantos problemas tem criado.
Ninguém, desprovido de má-fé, pode afirmar que a Igreja tenha se beneficiado das decisões pastorais do Concílio Vaticano II. Ninguém pode dizer que tenham aumentado as vocações, que tenha aumentado o zelo, que tenham se ampliado a Fé, a Esperança e a Caridade, que haja uma boa preparação catequética nas crianças e adolescentes, que a prática religiosa tenha aumentado, que as famílias tenham sido beneficiadas, que as leis dos Países ocidentais sejam respeitosas em relação à vida humana desde a sua concepção, que a evangelização, ordenada por Jesus Cristo aos seus Apóstolos, tenha assimilado linfa nova e vital... Nada disso. Então, realmente, como disse Ralph McInerny8, no Vaticano II algo deu errado, mas não deu errado porque, como argumentou o estudioso americano, os documentos não foram acolhidos corretamente e sua interpretação foi falsificada, mas porque o Concílio, seguindo a cultura da época, quis se desfazer, disse o padre Serafino Lanzetta, do princípio da Cruz e do sacrifício, sustentando uma tese heterodoxa “em nome da pastoralidade. Isso originou a ambiguidade, e, portanto, o Concílio se submeteu, por sua própria natureza, a múltiplas interpretações. Muitos, como resulta da análise de Melloni, pensaram que a doutrina deva adaptar-se aos tempos e não vice-versa. Hans Küng9 sustenta, em seu livro ‘Salvemos a Igreja’, que a Igreja está em crise não for falta de Fé e de correta pregação, mas deriva de um problema de caráter político dentro da Cúria romana, portanto da teologia romana, da teologia metafísica. Küng, como Alberigo e Melloni, argumenta que o Vaticano II queria recuperar a Igreja do primeiro milênio, considerando-o um período ideal porque a Igreja era unida e compacta: Ocidente e Oriente juntos, sem cismas, sem Protestantismo. Mas como é possível, na Igreja, não considerar o segundo milênio? Benvinda seja, então, a análise divulgadora de Gnocchi e Palmaro, que esclarece muitos pontos, gerando, no entanto, em alguns, turbamento, irritação, nervosismo”, e, sem argumentações sérias, procuram desacreditar com irreverência aqueles que consideram ‘inimigos’.
Pe. Lanzetta, que aprecia neste livro o agradabilíssimo italiano, lembrou, como bem enfatizaram Gnocchi e Palmaro em seu livro, a formidável incidência da mídia sobre o mito do Vaticano II, e isto deriva de uma filosofia de matriz kantiana: a coisa existe se aparece. O ‘Avvenire d’Italia’10, no período do Concílio, registrava a crônica das assembleias conciliares: as realidades sagradas eram colocadas em praça pública, em uma espécie de mentalidade ‘democrática’ que satisfazia as necessidades liberais da cultura da época. E tais crônicas relatavam tudo o que parecia ‘novo’ e ‘revolucionário’, e não a essência da Fé. Emblemático resulta o fato de que o arcebispo brasileiro Helder Pessoa Câmara11 (conhecido como Dom Helder, 1909-1999) preferisse realizar coletivas de imprensa a falar no Concílio, pois o reputava, justamente, mais eficaz, uma vez que os Padres Conciliares se deixavam influenciar por tudo que aparecia nos meios de comunicação de massa, mais do que por aquilo que haviam ouvido nas Sessões.
“O livro de Gnocchi e Palmaro”, afirmou Pe. Lanzetta, “não é uma inquisição, um processo a Galileu12, mas simplesmente uma análise dos fatos; é tomar consciência de um problema real. Ocorre tomar consciência de que o Concílio não é o todo, não é o divisor de águas. A Fé católica não se origina em um Concílio”. A Fé não depende da adesão ao Concílio Vaticano II, porque este não é um dogma de Fé. A Bela Adormecida ajuda a perceber um problema que não pode mais ser negligenciado.
Paolo Deotto, então, declarou que ficou satisfeito de ler o livro de Gnocchi-Palmaro, porque há muito tempo recebe, em um ritmo insistente, correspondência dos leitores de Riscossa Cristiana, na qual se percebe o desejo de compreender as questões controversas do Concílio e “o desejo de ter uma Igreja próxima e respeitada”, que não se confunde com as outras realidades terrenas de consistência líquida ou gasosa. O fiel da primeira hora conciliar restava assombrado diante dos novos eventos eclesiásticos: padres trabalhadores, padres sindicalistas, padres sociólogos, padres politiqueiros, padres guerrilheiros... quando pelo contrário, ontem como hoje, precisamos de sacerdotes que sejam sacerdotes, “necessitamos deles”, afirmou Deotto, “como do ar que respiramos”.
A comunicação da época se apropriou da temática religiosa: o Concílio Vaticano II era uma grande novidade, e jornais e TV colocaram sob os holofotes uma Igreja que, através de alguns teólogos e alguns pastores, queria emancipar-se e estar nos salões da sociedade13. “A Igreja queria manter-se atualizada com os tempos”; sem antagonizar ninguém, quis agradar a todos para ser amiga de todos, não olhando mais para erros e heresias, mas apenas para as coisas que unem e não dividem, “bem distante de um santo Atanásio que permaneceu firma na Fé Católica e no Deus encarnado com todas as consequências que este Credo comporta”.
A intervenção do Prof. Palmaro foi, então, cheia de significado. Ele lembrou, antes de tudo, de ter nascido em 1968, e daqueles anos lembra, em particular, uma palavra que era sempre pronunciada e praticada: ‘debate’, continuamente invocado e reclamado. Desde então, se fazem debates sobre tudo e todos. “Todavia, hoje, há quem não queira mais os debates, embora os tenha apoiado muito. Daqui nasce a intolerância, a qual esconde uma grande fraqueza: não enfrentar a realidade. Eis, então, a idade do paradoxo: onde eu e Gnocchi pudemos expressar o nosso pensamento católico? Em jornais seculares e, em particular, no ‘Il Foglio’14, de Giuliano Ferrara. Aqui pudemos dar espaço a uma hermenêutica de fatos católicos. Estamos dentro do que, muito provavelmente, os historiadores do futuro definirão a ‘Idade da confusão’.
Nos acusam de fazer recair todas as culpas sobre o Vaticano II, e que procuramos todas as causas dos males neste particular Concílio. Não é verdade, porque dizemos que muitos problemas doutrinais precederam o Vaticano II, como bem destaca o Prof. Roberto de Mattei15. De fato, aos meus alunos faço ler a encíclica do São Pio X, a Pascendi Dominici Gregis16, onde são evidenciados e condenados os erros dos modernistas. Esta tem um caráter de definição e jurídico, e há nela uma metafísica sólida, onde a teologia é acompanhada por um pragmatismo são, que não deixa espaço à imaginação ou às fantasias utópicas.
O católico é chamado a reagir: não pode salvaguardar o que a Igreja sempre renegou. No entanto, Melloni e alguns conservadores não querem que se fale. A acusação deles é forte, usam as armas da excomunhão, ou nos consideram pobres marinheiros que discutem em uma taberna. Outro paradoxo: não podemos mais dizer a alguém que é um herético, mas, contra os católicos que instauram um ‘debate’ sério, então se diz que eles são heréticos...”. Estamos diante do paradoxo de Epiménides17, que afirmou: ‘Todos os cretenses são mentirosos’. Mas os cretenses eram muito, supondo que todos fossem mentirosos: como Epiménides era um cretense, então Epiménides era um mentiroso. Sua afirmação era então verdadeira, mas isto é impossível porque um mentiroso não diz a verdade. Portanto, Epiménides é um mentiroso, e sua afirmação não é verdadeira. Negar uma asserção universal como ‘Todos os cretenses são mentirosos’ equivale a dizer que há pelo menos um cretense que diz a verdade. Da mesma forma, esses escritores e estudiosos católico têm que viver, portanto, o paradoxo de Epiménides.
Palmaro ressaltou, em fim, a importância da mudança da linguagem ocorrida durante o Concílio, e os documentos da Sessão estão embebidos de novas caracterizações linguísticas. Três foram as colunas da comunicação católica:
1. A língua latina. Esta deu uniformidade à linguagem e ao sentido das palavras. Tudo era definido em latim para evitar ambiguidades de expressão, oferecendo uma solidez sã ao longo do tempo.
2. A linguagem apologética. O latim não era compreendido por todos, por isso devia haver a transferência da comunicação por um clero preparado ao povo dos fiéis: narravam-se as vidas dos santos com os livros e com as homilias, defendiam-se as razões da Igreja, e nos sermões não se usavam as citações de um Rahner18, mas de São Jerônimo, de São Francisco... Em suma, alimentava-se a Fé.
3. A linguagem jurídica. Os conceitos eram expressos em modo de definição.
Tais cânones, no Concílio Vaticano II não os encontramos mais. De fato, explicou Palmaro, os esquemas conciliares preparados pela Cúria de Roma que contemplavam ainda estas três colunas foram descartados.
Muitos aspectos, então, presentes nos documentos conciliares são a esta altura antiquados e ultrapassados; por exemplo, a relação entre o homem e o ambiente ou o homem e a técnica, ambos caracterizados pelo irracional otimismo dos anos Sessenta. Portanto, estamos diante de outro paradoxo: há muito mais novidade em levantar tais questões do que em quem, pelo contrário, está ancorado ao ‘moderno’ de então. Portanto, enfrentar essas temáticas resulta um drama psicológico para aquela geração que cresceu no mito do Concílio. Estamos diante de um novo Muro de Berlim que cairá, inexoravelmente, como acontece com as ideologias. A Igreja não nasceu de novo com uma fictícia e almejada pentecostes, porque a Igreja teve e tem uma única Pentecostes, não decidida pelos homens. Então, devemos nos armar de santa paciência. Os tempos da Igreja são longos: levou quase 50 anos para levantar questões como as de hoje, e o encantamento da Bela Adormecida será quebrado também graças a obras como a de Gnocchi e Palmaro, que, como muitos outros católicos que amam a Igreja, se colocam interrogações lícitas para as quais desejam ter respostas não vagas, ambíguas, ou fugazes, mas resolutivas, e operam com o espírito de quem não quer servir-se da Igreja, mas deseja servi-la.
Cristina Siccardi
Fonte: Approfondimenti di “Fides Catholica”
Tradução: Giulia d'Amore di Ugento
Cristina Siccardi |
Cristina Siccardi: nascida em Turim (1966), é casada e mãe de dois filhos. Formada em Letras (Cum Laurea) com ênfase em História, é especializada em biografias. Escreveu para La stampa, La gazzetta del Piemonte, Il nostro tempo, Avvenire, L’Osservatore romano e colabora com diversos periódicos culturais e religiosos como il Timone, Radici Cristiane, Nova Historica. É membro das Academias Paestum, Costantiniana, Ferdinandea, Archeologica italiana, Bonifaciana. Em 26 de Novembro de 2010 recebu o Premio Bonifacio VIII, da cidade de Anagni (Itália). As suas obras foram traduzidas até no exterior e do livro dedicado à Princesa Mafalda foi produzido um filme para Canale 5: Mafalda di Savoia. A coragem de uma princesa, produzido por Angelo Rizzoli e dirigido por Maurizio Zaccaro. Website
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1 NdTª.: No original: Evo confusionale.
2 NdTª.: Alessandro Gnocchi e Mario Palmaro.
3 NdTª.: Riscossa Cristiana (Revanche Cristã): site católico de atualidades e cultura.
4 NdTª.: Alberto Melloni é um histórico italiano, dedicando-se à História da Igreja, em particular ao Concilio Vaticano II.
5 NdTª.: Corriere Fiorentino (Correio de Florença): jornal italiano online de crônica local, da cidade de Florença. Pertence ao célebre Corriere della Sera (Correio da Tarde), fundado em 1876.
6 NdTª.: A chamada Escola de Bologna ‘congrega’ os defensores da Hermenêutica da Ruptura: Giuseppe Alberigo, Giuseppe Ruggieri, Maria Teresa Fattori, Alberto Melloni, Yves Chiron, David Berger, John O'Malley, Gilles Routhier e Cristoph Theobald, entre os principais expoentes.
7 NdTª.: Foderarsi gli occhi: expressão que – originada da frase: ‘É inutile foderarsi gli occhi con la pancetta’, ou seja: ‘é inútil forrar os olhos com o bacon’ – quer dizer: fazer de conta que não é verdade. O nosso ‘tampar o sol com a peneira’.
8 NdTª.: Ralph M. McInerny. What Went Wrong with Vatican II?: The Catholic Crisis Explained (Vaticano II. O que deu errado?: A Crise Católica Explicada).
9 NdTª.: Hans Küng. é um teólogo suíço, filósofo, professor de teologia, escritor e sacerdote católico romano. No final da década de 1960, Küng iniciou uma reflexão rejeitando o dogma da Infalibilidade Papal, publicada no livro ‘Infallible? An Inquiry’ (‘Infalibilidade? Um inquérito’), em 18 de janeiro de 1970. Em consequência disso, em 18 de dezembro de 1979, foi revogada a sua licença pela Igreja Católica Apostólica Romana de oficialmente ensinar teologia em nome dela, mas permaneceu como sacerdote e professor em Tübingen até a sua aposentadoria em 1996. Küng defende o fim da obrigatoriedade do celibato clerical, maior participação laica e feminina na Igreja Católica, retorno da teologia baseada na mensagem da Bíblia.
10 NdTª.: Avvenire d’Italia (Porvir da Itália): foi o primeiro jornal diário nacional de inspiração católica que apareceu no Reino da Itália. Foi publicado de 1896 a 1968. Em 1961, o novo diretor, Raniero La Valle, lhe deu uma direção progressista, contra a Igreja Tradicional. No plano internacional, tornou-se um jornal pacifista e antiamericano. La Valle era ligado ao card. Giacomo Lercaro, de Bologna. O jornal pertencia à Santa Sé, à Democrazia Cristiana (partido italiano de centro) e a algumas dioceses da Toscana e de Emília-Romanha. Foi fechado por questões econômicas, não doutrinárias.
11 NdTª.: Helder Pessoa Câmara, OFS. Foi um bispo católico, arcebispo emérito de Olinda e Recife. Foi um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e defensor dos direitos humanos durante o regime militar brasileiro. A Permanência faz uma boa e substancial biografia de dom Helder.
12 NdTª.: Sic. Esta colocação é estranha, tendo em vista que a ‘perseguição a Galileu’ é um mito.
13 NdTª.: No original: ‘salotti buoni’. Ou seja os salões da burguesia. Que todos, afinal, querem frequentar. Até os comunistas.
14 NdTª.: Il Foglio Quotidiano (conhecido como Il Foglio) é um jornal diário italiano de difusão nacional fundando em 1996 por Giuliano Ferrara. Este, em 2007, fez uma campanha por uma moratória contra o aborto, porque “Os mais de um bilhão de abortos praticados desde que as leis permitem a famosa interrupção voluntária da gravide diz respeito a pessoas legalmente inocentes, criadas e destruídas pelo mero poder do desejo, desejo de não tê-los e de odiar-se até o ponto de amputar-se do amor. É o escândalo supremo do nosso tempo, é uma ferida catastrófica que lacera em profundidade as fibras e o possível encanto da sociedade moderna. É, além de tudo, em muitas partes do mundo onde o aborto é seletivo por sexo, e torna-se seletivo por perfil genético, uma obra de arte ideológica de racismo em marcha com a força da eugenética. Alegremo-nos, portanto, para o alto os corações, e depois de termos promovido a Pequena Moratória, promovamos a Grande Moratória do massacre dos inocentes. Aceitam-se zombarias, porque as boas consciências sabem usar a arma do sarcasmo melhor que as más, mas também a adesão a um apelo que fala por si, iluministicamente, com a evidência absoluta e verídica dos fatos de experiência e de razão”. (Giuliano Ferrara, Il Foglio, 19 dezembro de 2007).
15 NdTª.: Roberto de Mattei. autor e historiados católico italiano, escreveu o ‘Il Concilio Vaticano II. Una storia mai scritta’ (‘Concílio Vaticano II. Uma história nunca escrita’), que ganhou a indicação a dois prêmios: ‘Pen Club Italiano’ e ‘XLIV Premio Acqui Storia’, sendo que ganhou este último.
16 NdTª.: Pascendi Dominici Gregis. É uma encíclica papal promulgada pelo Papa Pio X em setembro de 1907. Seu subtítulo diz: Carta Encíclica do Papa Pio X sobre os erros do modernismo. O documento, assim, condena o modernismo católico, considerado uma “síntese de todas as heresias”, com sua junção de evolucionismo, relativismo, cripto-marxismo, cientificismo e psicologismo. Como consequência da Encíclica, o papa formulou o ‘juramento antimodernista’, obrigatório para todos os padres, bispos e catequistas e que foi abolido em 1967, pelo Papa Paulo VI. Este fato levou os católicos tradicionalistas a acusarem que o outrora combatido modernismo tornou-se na doutrina subjacente da ‘nova Igreja’. Um dos mais influentes filósofos modernistas foi Teilhard de Chardin, que pretendia reunir catolicismo com darwinismo e marxismo. Os católicos tradicionais veem este documento como evidência de que a Igreja Católica e os papas anteriores ao Concílio Vaticano II já estavam atentos para a infiltração de inimigos da Tradição no seio da instituição. Muitos tradicionalistas consideram o Papa Paulo VI um modernista, como o norte-americano Rama Coomaraswamy, em ‘Ensaios sobre a Destruição da Tradição Cristã’ (São Paulo, 1990).
17 NdTª.: Trata-se do ‘Paradoxo do Mentiroso’.
18 NdTª.: Karl Rahner foi um sacerdote católico jesuíta de origem germânica e um dos mais influentes teólogos do século XX. Participou – a pedido de Papa João XXIII – como teólogo consultor do Concílio Vaticano II. Entrou na Comissão teológica e se tornou um personagem chave do Concílio, promovendo a “nova visão de uma ‘Igreja de todo o mundo’, não mais ‘fechada em trincheira’, mas ativa e positivamente aberta ao diálogo com as outras confissões cristãs e com as grandes religiões do mundo; Rahner contribuiu a transportar a teologia católica para o fim da neoescolástica, com a valorização do laicato na Igreja e com a concessão, aos bispos de todo o mundo, de uma maior liberdade de iniciativa dentro da própria Igreja”. [La fatica di credere (A fadiga de crer). 1986.] Criou a revista Concilium.
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