Sentenças e avisos úteis para a direção da alma no caminho da perfeição cristã
Não é minha intenção que este volume cresça nimiamente, e me acho já muito adiante, quando ainda restam doutrinas em outras matérias não menos importantes que as passadas. Pelo que, mudando de estilo, reduzirei a documentos breves os que podiam ser discursos mais difusos. Espero que assim seja mais grato e útil aos leitores, em razão da brevidade e variedade amigas da natureza humana. Por isso porventura seguiram esta forma de escrever S. Martinho Dumiense Arcebispo de Braga, S. Diadoco Bispo Foticense, João Bispo de Carpácia, S. Nilo Abade, S. Hesíquio, S. Isaac Siro, S. Hiperíquio Presbíteros, S. Simeão Júnior, S. Máximo Mártir Constantinopolitano, Talássio, Evágrio Monges, S. Marcos Eremita e outros Padres. Dos quais, e de outros autores espirituais famigerados são excertos pela maior parte os avisos que aqui damos, omitindo outros, cuja luz por ser muito alta e forte, poderia ofender os olhos menos puros. Vão distribuídos em seis classes:
I – Dos que são mais especulativos ou teóricos. 09/04/2014
II — Algumas outras sentenças notáveis por sua brevidade e substância. 16/04/2014
III — Avisos e Documentos práticos que respeitam o trato da alma com Deus. 23/04/2014
IV — Os que respeitam o trato da alma consigo. 30/04/2014
V — Os que respeitam o trato da alma com os próximos. 07/05/2014
VI — Os que pertencem ao conflito da alma com o tentador. 14/05/2014
VI — Os que pertencem ao conflito da alma com o tentador.
1. Persuade-te muito deveras que sem especial luz do Espírito Santo e auxílio de sua graça, impossível é conhecer e evitar as inumeráveis traições, astúcias e estratagemas dos inimigos invisíveis. Porque todos os estudos e vigilâncias de todos os homens do mundo juntos em consulta, comprando-se com a arte de fazer mal que sabe qualquer demônio, são como as prevenções de um menino contra os conselhos de um grande político estadista, ou forças de um poderoso monarca. Com esta certeza desenganado disse S. Lourenço Justiniano: Nam spiritualis quis, sine spirituali lumine effugit laqueos? Quis, inquam, aerarum potestatum insidias, et fallacias innumeras inimicorum invisibilium agnovit ad plenum, nisi sapientiae sit splendore perfusus? Non sufficit naturalis acumen ingenii, si non introrsus erudiatur a verbo [Lib. de Obedientia c. 16]. Portanto importa colocar toda nossa confiança no poder, fidelidade e misericórdia do Senhor, que modera e reprime os inimigos, e só permite na tentação quanto é conveniente para confusão deles, exercício nosso e glória do mesmo Deus.
2. Para escapar dos laços do demônio uma alma que trata da perfeição, e a quem ele não tenta senão com capa do seu bem, é necessário observar essas três cautelas: 1a. Que em tudo quanto lhe for possível se governe pela obediência dos Superiores, supondo nele o mesmo Cristo; ou ao menos pelo conselho de quem lho pode dar acertado 2a. Que de coração procure sempre humilhar-se no pensamento, palavra e obra; folgando que lhe anteponham a todos em todas as coisas e mais as daquele que menos lhe cai em graça; 3a. Que na direção interior e exterior do exercício de Oração, e dos mais fora dela, siga antes o norte e luz da Fé, que o da razão; nem faça fundamento algum em consolações sensíveis, ou apreensões imaginárias.
3. Três modos de locução tem o homem: dois interiores e um exterior. O primeiro se forma no entendimento, que é potência espiritual, com espécies inteligíveis, que concorrem com o mesmo entendimento para produzir-se o conceito. O segundo se forma na fantasia, que é potência material, com espécies também materiais, que concorrem com a mesma fantasia para produzir-se a sua palavra interior, ou fantasma expresso. O terceiro se forma na língua, lábios e mais órgãos necessários para articular as vozes. Do primeiro modo, dizemos verbi gratia esta sentença: Pai nosso que estais no Céu, sem ser necessário mais que um ou alguns atos do entendimento, que tocam de pôr junto isso de que Deus é pai, e pai de todos os homens, e que assiste nas alturas, como em lugar próprio para manifestar sua glória. Do segundo modo dizemos esta mesma sentença com dicções, sílabas e letras interiormente formadas, e sucessivamente seguidas, as quais podemos continuar, partir, ou omitir conforme quisermos. E estas tais dicções, sílabas e letras são simulacros e representações que da locução externa resultaram e ficaram guardadas na fantasia. Por onde um homem que sempre fosse surdo e mudo não poderia falar consigo por meio destas tais palavras interiores, que são simulacros das exteriores, pois nunca percebeu estas; suposto que sempre pela fantasia, que é sentido comum, perceberá o objeto, em virtude de outras espécies que entraram pelos outros sentidos desimpedidos; e assim não dirá lá consigo: Pai nosso etc. mas todavia formará um fantasma expresso, ou selo figurado, de que Deus é nosso Pai. Do terceiro modo, dizemos a mesma sentença, exteriormente articulada, como fazemos ao rezar vocalmente. A locução do entendimento é velocíssima; a da fantasia, não tanto; a da língua, mais vagarosa. Esta a entendem os outros homens; a da fantasia, também a entendem os Anjos bons e maus, se Deus lho não encobre; porque como são espíritos, ficam superiores a todas as coisas materiais, bem como as casas mais baixas são devassadas e descortinadas, das que ficam mais altas. A do entendimento só Deus a conhece, e a quem ele a quiser revelar: e estes são os segredos do coração, que as Escrituras dizem que só a Deus são patentes. Toda esta doutrina, ainda que especulativa, serve para muitos proveitos práticos. Apontam-se agora dois: O primeiro, e que faz ao presente intento de pelejar contra o tentador, é, que quando propusermos fazer esta ou aquela obra do serviço de Deus, não o proponhamos falando com a fantasia e muito menos com a língua; senão só tocando no objeto de por junto com atos espirituais do entendimento e vontade; e sem figuras do que queremos obrar. Para que o demônio que ordinariamente anda ao nosso lado escutando, não nos contamine os intentos, e pare em aborto o propósito que havia de sair em obra. O outro proveito, que aqui se toca de caminho, é que as almas que na Oração não podem falar com palavras interiores da fantasia, porque Deus já não influi nelas por esta via do sentido, não tem de inquietar-se cuidando que estão ociosas. Porque enquanto o entendimento está ocupado com a fé da presença de Deus, e a vontade carregando, como um peso, para o amor do mesmo Deus, bem ocupada está a alma e muito excelente Oração é esta, pois tem mais de espiritual, unida e simples; suposto que a ela não se passa, senão por meio da outra, havendo para isso os sinais, que em outro lugar deixamos já apontado.
4. Quando as virtudes crescem, lançam raízes que chegam ao homem exterior em potências materiais. Por isso o demônio prova e apalpa em sonhos com vários irritamentos da honra, cobiça ou deleite, em que estado estão as virtudes contrárias e se há já no homem exterior resistência de per si, sem ajuda da parte superior e espiritual. No que se há propriamente como um ladrão que de noite apalpa as portas, ou paredes da casa, para que sabendo por onde fraquejam, por ali faça o assalto.
5. Se ouvires no teu interior umas palavras altas e rijas, e aceleradas, como zunido de mosca varejeira, que te dizem, em teu nome próprio e não de terceira pessoa, que faças isto, ou deixes de fazer aqueloutro, este não é o espírito de Deus; senão o teu próprio ou o do Anjo mau. Porque o espírito de Deus é suave e pacífico, e não violentador e tumultuoso.
6. Quando o demônio não pode fazer com que a alma fique no pecado, vem a concerto que ao menos fique na ocasião, como o Faraó já vinha em que o Povo de Israel adorasse a seu Deus; mas requeria que isso fosse no Egito. Quando vê que guardamos abstinência discreta, e que nos não pode fazer cair na gula, aconselha-nos abstinência suma, alegando com os legumes de Daniel, e com os três pães duríssimos de S. Maria Egipcíaca, e com os exemplos dos Monges do deserto; para que deste modo debilite o corpo e logo com ele a alma; a cuja necessidade acudindo excedamos o modo, e lhe restituamos mais do que lhe devíamos, e fiquemos com tédio e medo à virtude e seus exercícios. Outras vezes nos irrita contra si, e provoca a orar: então cedendo voluntariamente da perseguição que nos fazia, dá a entender que cede à força de nossas Orações; para que presumamos serem muito gratas a Deus e terríveis para o inferno; e que nelas temos armas prontas, com que podemos entrar em qualquer perigo confiadamente. Também sucede aparecer em figura de alguns homens, que foram de vida perversa, e se condenaram, fingindo que vem do Purgatório, com licença de Deus, a pedir sufrágios. E a tramóia vai ordenada a que concebamos esperança falsa, de que também nos salvaremos, sem embargo de ser grandes pecadores; e a que tenhamos menos horror ao curto número dos predestinados, que as Escrituras e Santos Padres e Pregadores Apostólicos nos intimam. Estas, e outras muito maiores astúcias do comum inimigo, são as que no Apocalipse se chamam: Alturas de Santanás: Altitudines satanae.
7. Andava ausente de sua casa uma pessoa; e vindo de noite a desoras, sua esposa, ou o seu servo, suposto que lhe parecia conhecer a voz, contudo, por maior cautela, não lhe quis abrir, mandando-o vir de dia. No seguinte dia esta pessoa não somente se não irou, senão que louvou a esposa, ou servo de fiel e prudente. Quer dizer esta parábola: Que em negar o crédito a sonhos, ainda que estes fossem de Deus, nenhum perigo há; porque bem sabe o Senhor que os enjeitamos, não por fechar a porta a seus santos avisos e inspirações, senão por não abri-la aos enganos do inimigo, que sabe contrafazer-lhe o metal da voz.
8. Ordinariamente fazem os demônios grande estrago à hora da morte, com a esperança enganosa de que viverão mais os enfermos e com o tempo poderão emendar a vida e exercitar o que Deus lhes inspirar por meio de seus Anjos: e com este engano se acham encravados e perdidos. Este aviso deu a Virgem Santíssima S. N. falando com uma serva sua. Por onde a melhor disposição no moribundo para partir à eternidade, é dar-se por despedido desta vida e entregar-se com total resignação nas mãos de Deus, não querendo senão o que ele for servido.
9. O soldado de Cristo deve estar à espera da tentação, sempre solícito e suspenso, especialmente quando começa os caminhos da virtude, ou nele fez algum maior progresso; para que ao afrontar-se com a tentação, esta lhe não cause estranheza ou terror; antes com ânimo pacato se acomode a tolerar o trabalho e moléstia dela; cantando espiritualmente com o profeta: Proba me Domine, et tenta me [Sl. 25,2]: Provai-me Senhor e permiti as tentações que fordes servido, contanto que me não deixeis cair.
10. Quando estamos carregados de tristeza e tédio, é bom orar vocalmente, e em voz um pouco mais alta e entoada; porque aquele som e sua variedade dissipa a melancolia e dá diferente postura à alma, que estava como debruçada sobre o seu afeto triste. E também, se este era causado pela oculta presença, ou sombra do inimigo, espírito triste, fugirá para não ouvir os louvores de Deus Nosso Senhor e verdades de nossa Santa Fé.
11. Na guerra contra os vícios havemos de guardar ordem e método: bem como o jogador escolhe das cartas que tem na mão a que há de pôr na mesa em primeiro ou segundo lugar, e guarda as outras para adiante, e deste modo ganha. Primeiro se há de encaminhar o nosso jogo contra a gula e avareza e vanglória. Porque quem não caiu na gula, dificultoso será cair na luxúria. Do mesmo modo, quem não caiu na cobiça, ou no apetite de gula, ou vanglória, é dificultoso cair na ira. Assim também não poderá escapar do espírito de tristeza e acédia quem, desejando os objetos da vanglória, acédia ou gula, os não conseguiu e ficou frustrado. Por isso, das três tentações com que o demônio acometeu ao Senhor no deserto, a primeira foi de gula: Dic ut lapides isti panes fiant; a segunda de avareza: Haec omnia tibi dabo, etc; a terceira de vanglória: Mitte te deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis mandavit de te, etc. [Mt. 4]
12. Antes de haver chegado à cidade da Humildade, se te vires quieto, e sem moléstias e batalhas dos vícios, não creias em ti. Há de armar emboscadas o inimigo; e desde logo podes esperar pela turbação futura.
13. De muito diferente modo combatem os demônios com as pessoas que vivem no mundo e manejam as coisas que perecem com o tempo, das quais se fomentam as paixões, e com as que vivem em lugares solitários e desertos. Porque com os primeiros a guerra é prática ou exterior; e com os segundo, interior e especulativa, por meio de pensamentos molestíssimos e motins da interior república. Esta segunda guerra é muito mais trabalhosa e difícil que a primeira; porque como é espiritual, facilmente começa e dificultosamente se aquieta; o que não tem a primeira, porque depende de lugar, tempo e oportunidade das coisas materiais com que se lida. Para esta guerra pois espiritual e invisível, as armas em que consiste a nossa vitória é perpétua. Oração também espiritual e invisível, como o são os inimigos; e esta faz o ânimo firme e valoroso para combater.
14. Acabando de vencer com a graça de Deus uma tentação, não triunfes, nem descanses, nem te julgues por seguro; porque logo o inimigo há de revirar sobre ti com outra e outras muitas. Por isso no livro de Jó se diz que este dragão tem as conchas, ou escamas tão juntas e apertadas, que nem o ar cabe entre uma e outra: Corpus illius, quasi scuta fusilia, compactum squamis se prementibus. Una uni conjungitur, et ne spiraculum quidem incedit per eas [Jó 41,6].
15. Guarda-te bem de andar muito contente e satisfeito de ti nos teus exercícios espirituais, e obras de caridade do próximo, que por tua industria sucedem à medida do teu desejo, e as possuis com propriedade gozosa. Porque, ou Deus te não ama com alguma especialidade, ou te ama. Se te não ama, irás de cada vez inchando mais no teu amor-próprio. Se te ama, permitirá que caias em coisas da ira, ou concupiscência, de que muito te descontentes. Neste caso, não te anojes com Deus, como filho que se amua com o castigo do pai; porque te secundará com outro golpe mais rijo. Dá-lhe muitas graças; e reconhece que ele permitiu que tropeçasses, para que andasses mais atento e fiado mais no báculo da sua assistência do que nos pés da tua atividade.
16. De três modos afugenta e faz terror aos demônios o sinal da Cruz: 1o. Pela apreensão dos mesmos demônios, que então se lembram da Paixão e Morte de Cristo Salvador nosso, causa da assolação do seu império; 2o. Pela fé e devoção de quem se benze e persigna; porque como a Oração também se faz por acenos e gestos, deste modo ora o Fiel e invoca em seu auxílio os merecimentos da Paixão de Cristo; 3o. Por instituição de Deus Nosso Senhor que deputou este sagrado sinal para este maravilhoso efeito, e por arma dos homens contra os espíritos malignos; e por isso obra ex opere operato; isto é, independente da fé e devoção de quem se benze; como se tem visto em muitos casos que referem os Santos, em que este sinal valeu e aproveitou a Judeus e Gentios. Mas se algumas vezes experimentarmos que o demônio não foge deste sinal, não imaginemos (diz S. Agostinho) que o despreza, ou não teme; senão entendamos que Deus assim o dispõe para fins mais altos, por ocultos modos: Cum autem non cedunt his signis hujusmodi potestates, Deus ipse prohibet occultis modis, cum id justum atque utile judicet. Nam nullo modo illi spiritus audent haec signa contemnere; contremiscunt haec ubicumque illa prospexerint.
17. Juntas com o sinal da Cruz, são poderosas palavras estas para pelejar contra os demônios:Abrenuncio tibi, satana: et conjungor tibi Christe: Renego de ti Satanás, e uno-me contigo, Jesus Cristo. Assim o ensina S. João Crisóstomo: Haec erit tibi baculus, haec armadura, haec turris inexpugnabilis. Cum hoc verbo et Crucem in fronte imprime. Ita enim, non tantum homo occurrens, verum nec ipse diabolus te quidquam laedere poterit [Homil. 21, ad. Popul.]. Também tem maravilhosa força contra os demônios aquele verso do famosíssimo Salmo 67. Exurgat Deus, et dissipentur inimici ejus, et fugiant qui oderunt eum, a facie ejus: Levanta-te Deus e sejam seus inimigos destruídos; e fujam de tua presença os que lhe tem ódio. Dele usava S. Antão Abade com tal efeito, que lhe não paravam diante legiões e legiões de infernais espíritos. E se escreve que os mesmos demônios confessaram já que em todo o velho e novo Testamento não havia palavra que mais os aterrasse [Thom. Le Blanc. ibi].
18. El-Rei Ciro, o mais moço, grande homem de guerra, ordenava aos seus soldados que, se o inimigo acometesse estrondosamente e com alaridos, eles o esperassem calados; mas se o inimigo viesse surdamente e em silêncio, eles lhe saíssem com clamores e estrondo militar. Assim devemos andar ao revés do tentador. Se acomete com branduras e ociosidade, fazer penitência e buscar ocupação. Se com embaraços e impaciências, recolher, e pôr em paz e silêncio. Se tenta de presunção da misericórdia Divina, considerar seus altos e incompreensíveis juízos. E se tenta de pusilanimidade e desconfiança, considerar na bondade Divina e valor dos merecimentos de Cristo etc.
19. Assim como o menino que tem atado o passarinho por uma linha lhe permite dar alguns voos, porque sabe que lhe não há de fugir. Assim o demônio a muitos que tem presos em pecado mortal, lhes consente cerimônias, lágrimas e outras coisas boas exteriores, porque está certo que, enquanto não se quebra o fio do tal pecado, não lhe podem escapar da mão e se condenam.
20. O Santo Fr. Ambrósio de Sena, Religioso da Ordem dos Pregadores, dizia que para distinguir as visões e aparições dos Anjos bons das falsas dos demônios, em chegando a nós qualquer visão, perguntássemos logo: Quem é? donde vem? e a que vem? E que sendo Anjo do Senhor, se trocaria o temor em alegria, e o sobressalto em segurança. E se acaso fosse o anjo de trevas, perderia com isso as forças, vendo que já era pressentido.
21. Não olhes com a vista da alma para o pecado da sensualidade, nem ainda para abominar o irracionável e feio dele; nem em ti, nem em outros, ainda que sejam pessoas de estado em que não seria culpa; nem também para examinar se consentiste no pensamento; porque isto se há de fazer muito ao espiritual e a seu tempo, já passada a tentação, e quando seja necessário para a Confissão; e sendo-te preciso ouvir no confessionário, ou estudar pelos livros estas matérias, não formes figuras delas na imaginação, e percebe-as quanto puderes só pelo entendimento, e atalha escusadas declarações do indiscreto penitente. Sem e Jafet cobriram a indecência de seu pai Noé andando para trás e deixando-lhe cair em cima a capa, que levavam estendida, pegando um de uma ponta, outro de outra. Assim a tua vontade e o teu entendimento, sem olharem para o que cobrem, devem cobrir tudo isto com a fé da presença de Deus, ou memória de Cristo crucificado.
22. O demônio é tão soberbo, que se não contenta com entrar senão pelas mesmas portas que Deus entra: que são a comunhão sagrada, a Confissão sacramental e o exercício da oração, para lançar peçonha no que é medicina. Isto disse S. Teresa estando já no Céu, a uma sua filha cá na terra. Não declarou que peçonha era esta. Porém bem se mostra, que a peçonha que lança nas Comunhões é que se recebam com pouca preparação e ação de graças; e fazendo mistério do sabor que as sagradas espécies deixam na boca, ou da facilidade com que se levam para baixo, ou de que o Sacerdote desse duas fórmulas por uma, ou parte de uma, em lugar da inteira; e outras semelhantes observações impertinentes, mas a peçonha mais fina de todas, é que se chegue àquela Divina Mesa em pecado mortal, sacrilegamente.
A peçonha que lança nas Confissões é misturar nelas negócios e tratos, e conversações alheias da severidade e decoro daquele ato; consumir largo tempo com impertinências e afetações escrupulosas; desculpar os pecados próprios, manifestar os alheios; apetecer opinião de virtude no conceito do Confessor; criar-lhe amor bastardo, de modo que nasçam e se peçam zelos dos outros irmãos ou irmãs de confissão; fazer negociação da familiaridade adquirida pela freqüência deste Sacramento, em ordem a temporalidades e pretensões do mundo; fingir virtudes e inocência entre muitas gravíssimas Cruzes, para mover o Confessor a sacar esmolar. E finalmente, as piores fezes desta peçonha, são da parte do penitente calar pecados graves, por pejo, ou qualquer outro respeito; e da parte do Confessor (o que Deus não permita) solicitar o penitente.
A peçonha que lança na Oração é furtar para ela o tempo que se deve às obrigações da obediência e da caridade; dar-se à vida folgazã e ociosa, querendo comer da virtude sem o trabalho de mãos e suor do rosto; empregar na Oração com tanto afinco as potências, que se destrua a cabeça e se incapacite para a a mesma Oração alta, suspendendo-me sem Deus me suspender, de que nasce não ter pés para andar meditando, quem tomou asas para voar contemplando; reputar e estimar por consolações do Céu as que são puramente da carne e do amor-próprio; fazer-se milagreiro interpretando qualquer movimento das espécies da fantasia, por revelação ou aviso misterioso; tratar a Deus Nosso Senhor com uma confiança néscia e pueril e sem o respeito que inculca a infinita distância entre o Criador e a criatura. Fujamos, pois, destas e semelhantes corrupções diabólicas para que se logre em nosso espírito a medicinal e divina virtude da Oração e Sacramentos.
23. Quando entras em tentação, é bom remédio para não cair nela representar na imaginação que vês diante de ti a Cristo na forma em que foi mostrado ao povo, coroado de espinhos, cheio de sangue e feridas, com gesto humilde e lastimoso; e que voltando para ti seus divinos olhos, te diz: Filho, não me ofendas; Filho, não me craves mais esse espinho; não me açoutes outra vez; não escolhas antes a Barrabás do que a mim, que te amo de coração; olha que te mereço grande amor, porque sou teu Deus, teu Criador e Salvador; vê que te perdes, se me desprezas; não me desprezes, que sou teu Deus e Senhor. Resiste a esse mau pensamento, que eu te ajudarei e te pagarei como quem sou, todo o trabalho que puseres em guardar a tua alma e a minha honra.
24. No coração do homem que não tem em si o Espírito Santo, está presente o demônio; e desde ali procura, quanto pode, impedir-lhe que atenda a qualquer coisa que possa remover este seu cativeiro. Porém, se o homem está em graça de Deus, o demônio sai, e anda por fora ao redor do corpo como nuvem caliginosa, procurando destruir o seu bem, e fazer com que sinta a alma, por via dos membros, o cheiro dos deleites. E este circuito e entradas e saídas do demônio, as sentem alguns a quem Deus as quer manifestar ao menos no sentido do tato. Porque enquanto o soldado de Cristo anda nesta campanha da vida mortal, sempre sua liberdade é metida em vários exames sobre qual é o bem que ama; se o transitório, se o eterno; e quanto o ama. Mas se alguém é tão valoroso, que ainda em vida morre de todo a si, então se faz totalmente casa do Espírito Santo. Porque enquanto nossos membros servem a algum deleite sem ser regulado pela vontade de Deus, o senhor do pecado e contratador das negaças dele conserva o seu direito para infestar o corpo humano e fazer dele seu covil. Mas aos Santos, anda-lhes muito ao longe; e, se chega, é com especial licença de Deus e maior tormento seu. Quem lê, aproveite-se.
25. A alguns já proveitos na Oração, o demônio se chega, e com seus dedos invisíveis lhes apalpa e move o cérebro, de sorte que represente admirável luz e grandezas incomparáveis. E como o exercitante acha que está orando quietamente, e não sente vagueações, nem movimentos feios, suspeita que logra estado de Oração muito avantajada e que tem presente algum misterioso símbolo das coisas divinas. E, entretanto, o inimigo lhe petisca faíscas de vanglória, por então não conhecida. Porém, se a alma é humilde e temente e busca a Deus só por Deus em pureza de Fé e espírito, o Anjo bom se chega, e com sua palavra faz parar esta operação de erro e concerta o cérebro de sorte que sirva à verdade e não à falácia.
26. Emprega freqüentemente, com afeto amoroso e compassivo, os olhos corporais em alguma imagem bem feita de um Crucifixo, pedindo ao Senhor que a imprima no seu interior. E quando já tiveres hábito de a achar pintada na fantasia sempre que quiseres imaginar nela, terás aí um seguro porto para te acolher quando sentires tentações contra a castidade, mansidão, ou qualquer outra virtude. E assim que te faças presente à imaginação aquelas Chagas, e as beijes, e te escondas nelas e lhe peças amparo; verás como a tentação se dissipa.
27. O espírito de carpimento é uma das mais ocultas e danosas tentações do demônio. Porque em vez de nos levantarmos das nossas ruínas com presteza e soltura, e ir andando o caminho de Deus com alegria, como pudermos; nos embebemos em carpir e lamentar nossas misérias, soterrando-nos na pusinanimidade e desconfiança de podermos andar. E em vez de rendermos a Deus muitas graças por tudo, nos amesquinhamos e entristecemos, como se nada nos dera, nem quisesse dar. E em lugar de conservarmos a serenidade de espírito necessária para a iluminação divina, nos turbamos com pensamentos de aflição, e não admitimos a doutrina de consolação com que os Padres espirituais nos querem dar alento. Oh, quanto melhor está a estas almas o cuidarem como Deus é bom e misericordioso, do que o cuidarem como elas são imperfeitas e miseráveis!
28. Por que procura o demônio com tanta ânsia e instância causa para que nossos corpos se manchem com maus sonhos, trabalhando nisto noites inteiras; se experimenta que da nossa parte não costuma haver consentimento, senão antes merecimento na resistência? As causas parecem ser estas: 1a. Tem o inimigo esperança de lucrar ao menos algum realzinho procedido de advertência semiplena, ou resistência frouxa; 2a. Dá a provar o cálice de Babilônia para que a experiência dele inquiete depois a imaginação e memória, que estão muito perto da vontade; e faz como o mercador que desenvolve o pano, ainda que se não venha a conchavar na compra; 3a. Pretende fazer vitupério e contumélia à alma, como um inimigo lança de noite às portas de outro imundices, por se não poder vingar dele; 4a. Intenta amedrontar e desviar os Sacerdotes, ou almas escrupulosas, da sagrada Comunhão no seguinte dia; como se mostra do que S. Pedro Celestino escreveu de si mesmo na vida que se achou na cela, quando saiu para o Sumo Pontificado [Andano tom. 25, Biblioteca dos Padres]. 5a. Perturba a muitas consciências com a dúvida de se houve, ou não, consentimento; 6a. Usa das nossas superfluidades para os fins que se podem ler nos Autores que tratam das abominações dos magos e bruxas. Pelo contrário, os fins que Deus Nosso Senhor leva em largar estas licenças a nosso inimigo, ele os conhece; nós podemos considerar que são estes: 1o. Castigar algumas soberba ou vanglória nossa, ou algum pensamento imundo frouxamente resistido, ou alguma rebeldia da vontade contra a de nossos superiores; como se o Senhor dissesse: Olha, que te deixarei cair manifestamente, se te não emendas; 2o. Humilhar nosso orgulho, dando-nos a conhecer por experiência nossa vileza e fragilidade; 3o. Diminuir em nossos corpos o inimigo humor, que nos impugna e solicita; 4o. Desafervorar a sanha do demônio, em quem, por aquela vingança se aplaca algum pouco a febre da ira, com que deseja o nosso dano; 5o. Exercitar-nos a pedir e procurar o precioso dom da perfeita castidade. E outros fins, que nós não alcançamos.
29. Quando te sentes entrado de tristeza, juntamente com azedia de coração e tumulto de pensamentos e tenções contra os próximos e desalentos e desconfianças do próprio aproveitamento, faz três coisas: 1o. Crer, decerto, que o espírito maligno se chegou e te assombra; 2o. Ver que importa muito não deixar possuir-te dessa tentação, porque é um nordeste seco e frigidíssimo, que corta e queima todo o verdor e flores da alma; 3o. Pegar logo, ou mental, ou vocalmente de vários Salmos, ou quaisquer outros louvores de Deus, indo descorrendo por suas perfeições e benefícios; e continuar com a paz e pausa, que puderes, ainda que seja contra vontade, e sem gosto sensível. Porque não poderá o inimigo sustentar muito tempo esta música, a seus ouvidos odiosíssima.
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Tirado do livro "Luz e Calor", do Pe. Manuel Bernardes.
Visto em: http://www.permanencia.org.br/drupal/node/49.
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