Santo Agostinho, Bispo de Hipona |
O sermão dos pastores
I, 1 — Não é agora a primeira vez que ouvis dizer que toda a nossa esperança está em Cristo e que n'Ele está toda a nossa glória verdadeira. Esta é uma verdade evidente e familiar para vós que pertenceis ao rebanho d'Aquele que vigia e apascenta Israel. Mas porque há pastores a quem agrada o nome de pastores, mas não querem cumprir os deveres de pastores, consideremos o que lhes diz o Senhor pela boca do Profeta. Escutai vós com atenção, ouçamos nós com temor.
2 — “A palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos: Filho do homem, profetiza contra os pastores de Israel e diz aos pastores de Israel”. Acabamos de ouvir esta leitura que nos foi proclamada, e por isso quero falar-vos um pouco sobre ela. Deus me ajude a dizer coisas verdadeiras, porque não pretendo expor ideias próprias. Porque se vos propusesse ideias pessoais, também eu seria daqueles pastores que, em vez de apascentar as ovelhas, se apascentam a si mesmos; mas se é d'Ele o que dizemos, então é Ele que vos apascenta por intermédio de mim. “Eis o que diz o Senhor Deus: ai dos pastores de Israel, que se apascentam a si mesmos! Porventura não é o seu rebanho que os pastores devem apascentar”? É como se dissesse: “Os pastores não se devem apascentar a si, mas as ovelhas”. Essa é a primeira acusação contra estes pastores: apascentam-se a si mesmos e não o rebanho. Quem são os que se apascentam a si mesmos? Aqueles de quem o Apóstolo afirma: “Todos procuram os seus próprios interesses e não os de Jesus Cristo”.
Ora bem. Nós, a quem o Senhor, pela sua misericórdia infinita e não por mérito nosso, colocou neste lugar de tão grande responsabilidade — e de que havemos de dar rigorosas contas — devemos distinguir claramente duas coisas: somos cristãos e somos bispos. Somos cristãos para nosso proveito, somos bispos para vosso proveito. Pelo facto de sermos cristãos, devemos pensar na nossa salvação; pelo facto de sermos bispos, devemos preocupar-nos com a vossa.
E há muitos que, sendo cristãos e não bispos, chegam até Deus, percorrendo um caminho mais fácil e progredindo nele tanto mais expeditamente quanto menor é o peso da responsabilidade que suportam. Nós, porém, devemos dar contas a Deus pela nossa própria vida, como cristãos; mas, além disso, devemos dar contas a Deus pelo exercício do nosso ministério, como pastores. Se vos digo isto é para que, compadecendo-vos, oreis por nós. Chegará o dia em que tudo será submetido a juízo. Aquele dia, embora esteja ainda longe para o mundo, para cada homem é o último da sua vida. Deus quis manter oculto um e outro: o dia em que há-de chegar o fim do mundo, e o dia em que há-de chegar o final da vida para cada um dos homens. Desejas não temer esse dia oculto? Prepara-te antes que chegue. Visto que os bispos foram chamados para que cuidem daqueles de que estão à frente, não devem procurar nesse ministério a sua própria utilidade, mas a daqueles a quem servem. O bispo que se regozija em sê-lo, que busque a sua própria honra e olhe somente para as suas comodidades, apascenta-se a si mesmo e não às ovelhas. A estes se dirige a palavra do Senhor.
Escutai agora vós como ovelhas de Deus, e considerai como Deus vos constituiu com segurança, de modo que sejam quem forem aqueles que presidem — sejamos nós quem sejamos — Aquele que apascenta Israel vos sustentará. Deus não abandona as Suas ovelhas, pelo que os maus pastores expiarão as penas merecidas e as ovelhas receberão o prometido.
II, 3 — Vejamos então o que diz a palavra divina, que não poupa ninguém, aos pastores que se apascentam a si mesmos e não as ovelhas: “Bebeis o leite, vestis-vos com a lã e matais as ovelhas mais gordas, mas não apascentais o meu rebanho. Não fortaleceis as ovelhas débeis, não tratais as que estão doentes, não curais as que estão feridas; não reconduzis a ovelha tresmalhada, não procurais a que anda perdida; mas a todas tratais com crueldade e violência. E as minhas ovelhas dispersaram-se por falta de pastor”.
Dos pastores que se apascentam a si mesmos e não as ovelhas, diz-se aqui o que eles fazem e o que não fazem. Que fazem eles? “Bebeis o leite e vestis-vos com a lã”. Também o Apóstolo diz: “Quem planta uma vinha e não come do fruto dela? Quem apascenta um rebanho e não se alimenta com o leite do rebanho”? Aqui se compreende que o leite do rebanho representa os bens que o povo de Deus oferece para sustentar a vida temporal dos seus prelados. Era disto precisamente que falava o Apóstolo nas palavras que vos recordei.
4 — Se bem que o Apóstolo tivesse preferido viver do trabalho das suas mãos para não ter de tomar o leite das suas ovelhas, afirmou no entanto que tinha o direito de receber este leite, como determinara o Senhor ao dizer: “Os que anunciam o Evangelho vivam do Evangelho”; e noutro lugar afirmou que outros apóstolos como ele usaram deste direito, não usurpado, mas devido. Ao renunciar a este seu direito, ele foi além da sua obrigação, mas não exigiu que os outros fizessem o mesmo. Talvez ele esteja representado no que se diz do bom samaritano que levou à estalagem o homem ferido e disse: “Se gastares algo mais, dar-to-ei quando voltar”.
Que mais diremos sobre estes pastores que não exigem o leite do rebanho? Devemos afirmar que são mais misericordiosos que os outros, ou melhor, que desempenham mais generosamente o dever pastoral da misericórdia. Podem fazê-lo e fazem-no. Louvem-se estes e não se condenem os outros. Com efeito, o próprio Apóstolo não procurava donativos; mas desejava que as ovelhas, isto é, os fiéis, dessem o seu fruto e não fossem estéreis e inúteis.
Quando, em certa altura, Paulo se encontrava em grande necessidade, preso pela confissão da verdade, foram-lhe enviados pelos irmãos alguns bens para socorrer a sua indigência. Ele respondeu-lhes, agradecendo com estas palavras: “Fizestes bem em socorrer-me nas minhas necessidades. Todavia, eu aprendi já a contentar-me em todas as circunstâncias em que me encontro. Tanto sei viver na abundância como na penúria. Tudo posso n'Aquele que me conforta. Apesar disso, fizestes bem em ter-me socorrido na minha grave situação”.
Mas para mostrar o que mais lhe interessava naquela boa obra, para não ser daqueles que se apascentam a si mesmos e não as ovelhas, dá-lhes a entender que não se alegra tanto pela ajuda que recebeu, como pelo bem que eles realizaram. Que lhe interessava nesta boa ação deles? “Eu não procuro o dom material — diz ele — o que procuro é que aumente o fruto para vosso proveito; não para que eu seja saciado, mas para que vós não fiqueis sem merecimento”.
5 — Portanto, aqueles que não podem fazer como Paulo, vivendo com o trabalho das suas mãos, recebam o leite das suas ovelhas, isto é, recebam dos fiéis o necessário para o seu sustento, mas não esqueçam a debilidade do rebanho. Não procurem o seu próprio interesse, para não darem a impressão de que anunciam o Evangelho por necessidade ou interesse próprio; o seu procedimento deve fazer compreender que se preocupam apenas em preparar a luz da palavra e da verdade para iluminar os homens, como está escrito: “Estejam cingidos os vossos rins e as vossas lâmpadas acesas”; e noutro lugar: “Não se acende uma Lâmpada para a colocar debaixo do alqueire, mas sobre o candelabro, para iluminar a todos os que estão em casa. Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus”.
Se acendes uma lâmpada na tua casa, não vais deitando azeite para que não se apague? Mas se a lâmpada em que deitas o azeite não alumia, não merece ser colocada sobre o candelabro, mas imediatamente quebrada. Portanto, o que recebemos para poder viver deve aumentar a nossa caridade para saciar os outros. Não como se o Evangelho fosse um bem rentável como cujo preço se pagasse o alimento àqueles que o anunciam. Vender assim o Evangelho seria vender por vil preço uma coisa de valor incomparável. Embora recebam do povo o necessário para o seu sustento, a recompensa pelo seu trabalho esperem-na do Senhor. O povo nunca poderá recompensar devidamente aqueles que por caridade lhe ministram o Evangelho. A melhor recompensa que podem esperar os pregadores do Evangelho é a salvação daqueles que os escutam.
Que é que se censura nos pastores? De que são acusados? De beberem o leite das ovelhas e de se vestirem com a sua lã, descuidando o interesse do rebanho. Buscavam, portanto, os seus próprios interesses e não os de Jesus Cristo.
III, 6 — Depois de vos termos explicado o que significa “beber o leite”, vejamos agora o que quer dizer “vestir-se com a lã”. Quem oferece leite oferece alimento; e quem oferece lã oferece honras. Estas são as duas coisas que procuram alcançar do povo aqueles que se apascentam a si mesmos e não as ovelhas: prover às suas necessidades e receber honras e louvores.
Com razão se entende que o vestuário representa aqui uma forma de honra, porque as vestes servem para cobrir a nudez. De facto, todo o homem é frágil, e portanto são frágeis os vossos pastores. Aqueles que vos governam são homens semelhantes a vós. Como vós têm um corpo, comem, dormem e levantam-se do sono; como vós nasceram e um dia morrerão. Se considerais o que eles são por si mesmos, reconhecereis que são simplesmente homens. Mas se os cobris de honras, é como se cobrísseis a sua fragilidade.
7 — Vede como Paulo considera a honra que recebia do povo santo de Deus, quando diz: “Recebestes-me como a um anjo de Deus. Posso até testemunhar que, se fosse possível, teríeis arrancado os vossos olhos para mos dar”. Mas apesar de ser tão grande a honra que lhe prestaram, deixou porventura de repreender os seus erros para não perder essa honra e esses louvores? Se assim procedesse, teria sido um daqueles pastores que se apascentam a si mesmos e não as ovelhas. Nesse caso, diria consigo mesmo: “Que me importa a mim? Cada um faça o que quiser; o meu sustento está garantido, a minha honra está salva; tenho leite e tenho lã; é o que me basta. Cada um vá para onde puder”. Então para ti está tudo em ordem se cada um for para onde puder? Prescindindo mesmo da tua função de bispo e considerando-te apenas como simples fiel, devias recordar que “se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele”.
Por isso o Apóstolo, depois de lhes ter recordado o modo como se comportaram com ele, para que não parecesse que já se tinha esquecido da honra que lhe prestaram, dá testemunho que o receberam como a um anjo de Deus e de que, se fosse possível, até arrancariam os próprios olhos para lhos dar. Mas apesar disso, ele aproxima-se da ovelha doente e infectada, para curar a chaga sem poupar a infecção. E assim lhes fala: “Porventura tornei-me vosso inimigo por vos ter dito a verdade”? Portanto, ele recebeu o leite das ovelhas, como há pouco recordámos, e vestiu-se com a lã das ovelhas, mas não descuidou o bem do rebanho. Não buscava os seus interesses, mas os de Jesus Cristo.
8 — Longe de nós esteja o dizer: “Vivei como quiserdes, estai tranquilos, Deus não castiga ninguém; basta que tenhais a fé cristã. Não castiga aquele que redimiu, não castiga aqueles por quem derramou o Seu Sangue. E se quiserdes deleitar o vosso espírito com os espetáculos públicos, ide tranquilos. Que tem isso de mal? Ide, celebrai tranquilos também esta festa, da qual participa toda a cidade, entre a alegria dos comensais e dos que creem que se alegram com os festins públicos, quando na realidade se perdem. A misericórdia de Deus é grande e tudo perdoa. Coroai-vos de rosas antes que murchem. Na casa do vosso Deus celebrareis quando quiserdes. Saturai-vos e enchei-vos de vinho na companhia dos vossos. Foi para isto que se vos deram as criaturas: para que gozeis delas. Deus não as deu aos pagãos e ímpios tirando-as a vós”. Se aconselhássemos tudo isto, talvez tivéssemos mais gente conosco; talvez alguns ao ouvir-nos pensem que não falamos sabiamente; poderiam ser poucos aqueles a quem ofenderíamos, e regozijar-nos-íamos assim com uma grande multidão. Se disséssemos isto, não proclamando a palavra de Deus, não pregando a palavra de Jesus Cristo, mas a nossa própria, seriamos pastores que se apascentam a si mesmos e não as ovelhas.
IV, 9 — Quando o Senhor disse o que estes pastores fazem, disse também o que não fazem. Ao males que sofrem as ovelhas são grandes e largamente difundidos. Muito poucas são as ovelhas sadias e bem alimentadas, isto é, aquelas a quem não falta o alimento da verdade e se apascentam abundantemente com dons de Deus. Mas os maus pastores nem sequer estas ovelhas poupam. Como se fosse pouco descuidarem-se das doentes e das débeis, das que se desgarraram e andam perdidas, também matam, quanto deles depende, as que estão fortes e de boa saúde. E se estas vivem, é só pela misericórdia de Deus que vivem; porque os maus pastores tudo fazem para as matar. Dirás: “Como é que as matam”? Vivendo mal, dando-lhes mau exemplo. Não sem razão foi dito àquele servo de Deus, que era um dos membros mais eminentes do Supremo Pastor: “Apresenta-te a ti mesmo, para com todos, como exemplo de boas obras”. E também: “Sê modelo dos fiéis”.
Com efeito, mesmo a ovelha forte, ao ver que o pastor habitualmente vive mal, afastando o seu olhar dos caminhos do Senhor e fixando-se apenas nos critérios humanos, começa a pensar em seu coração: “Se o meu superior vive assim, quem sou eu para seguir um caminho diferente”? É assim que o pastor mata a ovelha forte. E se mata a ovelha forte, que fará ele das outras? Que fará este pastor que, em vez de fortalecer as ovelhas débeis, dá a morte, com o seu exemplo, àquelas que encontra sadias e fortes?
Eu vos declaro e repito: há ovelhas que apesar disso vivem, apoiadas somente na palavra do Senhor, recordando as palavras que ouviram do mesmo Senhor: “Fazei o que eles vos dizem, mas não o que eles fazem”. No entanto, aquele que vive mal na presença do povo, quanto dele depende, mata os que observam o mau exemplo da sua vida. Não se iluda pelo facto de aquela ovelha não estar morta. Ela vive, sem dúvida, mas ele é um homicida.
É como o caso de um homem sensual que olha para uma mulher com intenções pecaminosas; embora ela permaneça casta, ele comete pecado de luxúria. É verdadeira e clara palavra do Senhor a este respeito: “Aquele que olhar para uma mulher para a desejar, já cometeu adultério no seu coração”. Não entrou nos seus aposentos, mas pecou no íntimo do seu coração.
De modo semelhante, quem vive mal perante aqueles que lhe foram confiados, quanto dele depende, mata também os fortes. Quem o imita, morre; quem não o imita, vive. Mas quanto dele depende, leva-os ambos à morte. É o que diz o Senhor: “Matais as ovelhas gordas e sadias e não apascentais o meu rebanho”.
V, 10 — Já ouvistes o que fazem o maus pastores. Vede agora o que não fazem: “Não fortaleceis as ovelhas débeis, não tratais as que estão doentes, não curais as que estão feridas, não reconduzis as que se desgarraram, não procurais as que se perderam”; e imolais, assassinais, “matais as fortes e sadias”.
Se uma ovelha está doente, isto é, se tem um coração doente, pode sucumbir nas tentações, sobretudo se não está vigilante e preparada. Neste caso, o pastor negligente não diz à ovelha do seu rebanho: “Filho, se queres servir a Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a tentação”. Quem assim fala, fortalece o que é débil e torna-o forte, para que, tendo abraçado a fé, não ponha a sua esperança nas prosperidades deste mundo. Porque se for habituado a pôr a sua esperança nas prosperidades deste mundo, essas mesmas prosperidades o vão corrompendo de tal modo que, ao sobrevirem as adversidades, perturba-se, ou talvez sucumba totalmente.
Quem assim procede não edifica sobre pedra firme, mas sobre a areia. “Ora a pedra era Cristo”. Por isso os cristãos devem imitar os sofrimentos de Cristo e não andar em busca de delícias. Fortalece-se o que é débil quando se lhe diz: “Conta com as tentações deste mundo; mas de todas elas te livrará o Senhor, se d'Ele não se afastar o teu coração. Foi para confortar o teu coração que Ele veio a este mundo e por ti quis padecer e morrer; por ti sujeitou-Se aos escarros e foi coroado de espinhos; por ti recebeu opróbrios e finalmente morreu numa cruz. Tudo isto Ele sofreu por ti; e tu, nada. Tudo isto quis sofrer, não para Seu próprio proveito, mas pensando somente em ti”.
11 — Que espécie de pastores são esses que, para não desgostarem os seus ouvintes, não só deixam de os preparar para as tentações eminentes, mas até lhes prometem a felicidade deste mundo, felicidade que Deus nem sequer ao próprio mundo prometeu? O Senhor anunciou tribulações sobre tribulações para este mundo até ao fim dos tempos, e tu pretendes que o cristão possa viver sem tribulações? Precisamente porque é cristão, terá de sofrer ainda mais neste mundo.
Diz o Apóstolo: “Todos os que querem viver piedosamente em Cristo sofrerão perseguições”. Agora tu, pastor insensato, que procuras os teus interesses e não os de Jesus Cristo, deixas que Ele diga: “Todos os que querem viver piedosamente em Cristo sofrerão perseguições”; e por tua conta vais dizendo: “Se viveres piedosamente em Cristo, terás tudo em abundância. E se não tens filhos, hás-de tê-los e poderás alimentá-los com abundância, sem que nenhum deles te morra”. É este o teu processo de construir? Repara no que fazes e onde constróis. Estás a construir sobre areia. “Virão as chuvas, transbordarão os rios, soprarão os ventos e investirão contra essa casa; e ela cairá e será grande a sua ruína”.
Retira da areia a tua construção, edifica sobre a pedra; quem deseja ser cristão tenha o seu fundamento em Cristo. Considere os sofrimentos humilhantes de Cristo; olhe para Aquele que, sem pecado, pagou o que não devia; escute a palavra da Escritura que lhe diz: “O Senhor castiga aquele que reconhece como filho”. Portanto, prepare-se para ser castigado ou renuncie a ser reconhecido como filho.
Diz a Escritura: “O Senhor castiga aquele que reconhece como filho”. E tu dizes: “Talvez para mim haja uma exceção”? Recorda, porém, que se és excluído do castigo, és excluído do número dos filhos. “Então — dirás tu — Ele castiga absolutamente todos os filhos”? sem dúvida castiga todos os Seus filhos, como castigou também o Seu Filho Unigénito. Aquele Filho Unigénito, igual ao Pai “pela Sua condição divina”, o Verbo pelo Qual todas as coisas foram feitas, não tinha possibilidade de ser provado ou castigado. E no entanto, para não ficar sem castigo, revestiu-Se de um corpo. Ora se Deus não poupou o Seu Filho Unigénito que não conhecera o pecado, pensas que deixará sem castigo o filho adoptivo e pecador? O Apóstolo diz que fomos chamados à adopção. E de facto recebemos a adopção filial, para sermos herdeiros com o Filho Unigénito, para sermos sua herança, como diz o salmo: “Pede-Me e dar-te-ei as nações como herança”. Deus no-l'O dá como exemplo nos Seus sofrimentos.
12 — Mas, evidentemente, para que o débil não caia nas tentações futuras, nem deve ser iludido com falsas esperanças, nem aterrorizado com excessivos temores. Deves dizer-lhe: “Prepara a tua alma para a tentação”. E se ao ouvir estas palavras, ele começa a vacilar, a estremecer e a retroceder, deves recordar-lhe também: “Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças”. Anunciar e predizer os sofrimentos futuros é dar força a quem é débil; prometer a misericórdia de Deus, que assegura a vitória sobre todas as tentações, é curar as feridas daquele que está excessivamente atemorizado.
Há de facto alguns que, ao ouvirem falar das provações que hão-de suportar, preparam com maior empenho as suas armas e até têm sede de beber este cálice. Parece-lhes insuficiente a medicina comum dos fiéis e fortalecem-se para a glória do martírio. Há outros, porém, que ao ouvirem falar das provações futuras que necessariamente os cristãos têm de suportar, e das quais só estão isentos os que não querem ser verdadeiramente cristãos, perdem a coragem e vacilam.
A estes oferece-lhes o conforto medicinal, cura a ovelha ferida. Diz: “Não temas, não te abandonará nas tentações Aquele em Quem acreditaste. Deus é fiel, não deixará que sejas tentado acima das tuas forças. Não é uma afirmação minha; é o Apóstolo que o diz, e acrescenta: “Quereis uma prova de que Cristo fala em mim”? Portanto, quando ouves estas palavras, ouves o próprio Cristo, ouves Aquele Pastor que apascenta Israel, em nome do Qual foi dito: “Destes-nos a beber copioso pranto, com medida”. O que diz o Apóstolo — “Não permite que sejais tentados acima das vossas forças” — di-lo também o Profeta ao falar de um pranto “com medida”. Não abandones, portanto, Aquele que te corrige e exorta, atemoriza e consola, fere e cura a ferida”.
VI, 13 — “Não fortaleceis as ovelhas débeis, nem tratais as doentes”. Isto diz o Senhor aos maus pastores, aos falsos pastores, aos pastores que procuram os seus interesses e não os de Jesus Cristo, que recebem o leite e a lã das ovelhas, mas não têm cuidado do rebanho, nem fortalecem as ovelhas débeis.
Entre o doente e o débil ou enfermo, isto é, não firme — embora também se chamem enfermos ou débeis os doentes — pode notar-se uma diferença. É certo que estas ideias que nos esforçamos por distinguir, poderíamos certamente explicá-las com maior diligência e, sem dúvida, melhor o faria qualquer outro que tivesse alcançado uma luz espiritual mais abundante. Mas para que não vos sintais defraudados, vou dizer-vos o que penso quanto ao sentido que sugerem estas palavras da Escritura.
Débil é aquele de quem se teme que sucumba na tentação; doente é aquele que padece alguma paixão que o impede de seguir o caminho de Deus e aceitar o jugo de Cristo.
Pensai nesses homens que querem viver bem, que se decidiram já a viver dignamente, mas ainda não estão tão dispostos a sofrer o mal como a praticar o bem. Ora a fortaleza cristã deve levar-nos não só a praticar o bem, mas também a suportar o mal. Portanto, aqueles que desejam sinceramente praticar boas obras, mas não querem ou não podem suportar os sofrimentos, são realmente débeis. E aqueles que se entregam à vida mundana, cativos das más paixões, e não praticam boas obras, esses estão doentes e inválidos e são incapazes de realizar qualquer boa ação precisamente por causa da sua doença.
Assim estava a alma daquele paralítico que não pôde ser levado até junto do Senhor; e aqueles que o transportaram abriram o teto, e por ali o introduziram na casa onde o Senhor Se encontrava. Para conseguires o mesmo nas almas dos homens, também tu deves abrir o teto e colocar na presença do Senhor a alma paralítica, isto é, imobilizada nos seus membros inválidos, vazia de boas obras, mas cheia de pecados e enfraquecida pela doença das suas paixões. Portanto, se todos os membros estão imobilizados e há realmente uma paralisia interior, para ires ter com o médico — talvez o médico esteja dentro de ti e não dás pela Sua presença; seria este um sentido oculto nas Escrituras — se queres descobrir-Lhe o que está oculto, abre o teto e coloca diante d'Ele o paralítico.
Aos que não fazem nada disto nem se preocupam com fazê-lo, ouvistes a advertência que eles ouvem: “Não fortaleceis as ovelhas doentes, não curais as que estão feridas”. Como já dissemos, a ovelha é ferida pelo terror das tentações; e o pastor pode dar-lhe a medicina que cura essas feridas, recordando-lhe aquelas palavras de conforto: “Deus é fiel, e não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças; mas no tempo da tentação dar-vos-á forças para o vencer”.
VII, 14 — “Não reconduzis as ovelhas que se desgarraram, não procurais as que andam perdidas”. Encontramo-nos neste mundo entre as mãos de ladrões e os dentes de lobos furiosos; por isso, ante estes perigos vos pedimos que não deixeis de orar. Além disso, há ovelhas que são rebeldes. Se procuramos os que se extraviaram por sua culpa e para sua perdição, dizem que nada temos com isso e respondem-nos: “Que quereis de nós? Porque nos procurais”? E não compreendem que a razão por que os procuramos e queremos salvar é precisamente o facto de andarem errantes e perdidos. “Se estou no erro — dizem-nos — se me perco, que te importa a ti; porque me procuras”? Justamente por que estás no erro, quero levar-te ao bom caminho; porque andas perdido, quero encontrar-te.
“Eu quero andar assim errante — replicam — quero andar assim perdido”. Queres andar assim errante, assim perdido? Mas, com mais força ainda, não o quero eu. Digo-te claramente: quero ser importuno. Porque ressoam aos meus ouvidos as palavras do Apóstolo: “Prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente”. Oportunamente para quem? Inoportunamente para quem? Oportunamente para quem quer ouvir, inoportunamente par quem não quer ouvir. Porque quero ser inoportuno, não hesito em dizer-te: “Tu queres errar, tu queres perder-te, mas não o quero eu. Não o quer principalmente Aquele que me faz tremer. Se eu quisesse também o teu erro e perdição, repara no que Ele diz, ouve como Ele me adverte: ‘Não reconduzis as ovelhas que se desgarraram, não procurais as que andam perdidas’. Hei-de ter mais medo de ti do que d'Ele? “Todos nós devemos comparecer perante o tribunal de Cristo”. Não tenho medo de ti. Não podes derrubar o tribunal de Cristo e erigir o tribunal de Donato.
Hei-de reconduzir quem se extravia, hei-de procurar quem anda perdido. Quer queiras quer não, é isso que farei. E ainda que, ao procurar-te, os espinhos das silvas me rasguem a pele, passarei pelas veredas mais estreitas, saltarei todas as sebes e correrei por toda a parte, enquanto me der forças o Senhor que me faz tremer. Hei-de reconduzir quem se extravia, hei-de procurar quem anda perdido. Se não queres que eu sofra, não te extravies, não andes perdido.
15 — E não basta quanto sofro ao ver-te errante e perdido. Muito temo que venha a chegar a matar as ovelhas fortes e sadias se te abandono a ti. Repara no que se segue: “E matais as ovelhas fortes e sadias”. Se eu for negligente em procurar o que se extravia e perde, também o que é forte e sadio sentirá a tentação de se extraviar e perder. Desejo lucros exteriores, mas temo mais os danos interiores. Se me mostrasse indiferente perante o teu extravio, o que é forte, ao ver isto, pensará que é uma coisa sem importância passar à heresia. Se não te procuro a ti que te perdeste, quando aparecer alguma comodidade no mundo que justifique a mudança, dir-me-á a ovelha forte que está perto de se perder: “Deus está aqui e está ali; que mais faz? Isto é obra de homens conflituosos; Deus pode adorar-se em toda a parte”. Se por acaso lhe disser algum donatista: “Não te darei a minha filha se não tomas o meu partido”, será necessário que ele pense e diga: “Se nada houvesse de mal em pertencer ao partido destes, os nossos pastores não diriam tantas coisas contra eles, não se preocupariam tanto com o seu extravio”. Mas se deixamos de o dizer e nos calamos, dirá o contrário: “Certamente, se fosse coisa reprovável pertencer ao partido de Donato, falariam contra ele, refutá-lo-iam, esforçar-se-iam por os vencer. Se estivessem transviados, reconduzi-los-iam; se se perdessem, buscá-los-iam”. Não é por acaso, pois, que depois de ter dito: “matastes a ovelha gorda”, acrescenta concluindo: “acabastes com a forte”. Isto seria uma repetição senão fosse pelo que antes dissemos: “Não reconduzistes a extraviada, e não procurastes a que estava perdida”, e assim fazendo “matastes a forte”.
VIII, 16 — Portanto, escutai o que se diz de seguida acerca destes pastores negligentes e maus: “As minhas ovelhas dispersaram-se por falta de pastor, convertendo-se em presa para todos os animais do campo”. Os lobos devoram-nas, arrebatam-nas os leões rugindo, quando as ovelhas não estão unidas ao seu pastor. Mesmo que o pastor esteja presente, se este age mal não é verdadeiro pastor. Assim se juntam a pastores que não são pastores, que se apascentam a si mesmos, não as ovelhas. A consequência disto é um desvio mortal, pois entregam-se a animais predadores que desejam saciar-se com a sua morte. Assim são os que se alegram com os extravios de outros: animais que se alimentam de mortos.
17 — “Espalharam-se por todos os montes e colinas”. Os animais que procedem dos montes e das colinas são o orgulho terreno e a soberba do mundo. Exaltou-se a soberba de Donato e criou um partido. Parmeniano, que o seguiu, consolidou o erro. O primeiro é o monte, o segundo a colina. Qualquer autor de um erro, inchando com a soberba da terra, promete a todas as ovelhas um repouso e bons pastos. E às vezes encontram ali as ovelhas pastos que têm a sua origem na chuva divina, não na dureza do monte. Também eles têm Escrituras e Sacramentos, mas estes não pertencem ao monte; e mesmo que se encontrem nele, é mau permanecer ali. Espalhados por montes e colinas, abandonam o rebanho, abandonam a unidade e os redis defendidos contra lobos e leões. Que Deus as chame para que saiam dali, que Ele próprio as chame. E agora mesmo O ouvistes chamar: “Espalharam-se por todos os montes e colinas”, quer dizer, por causa de estarem cheias da soberba terrena.
Há também montes bons: “Levanto os meus olhos para os montes, donde me virá o auxílio”. Mas percebe que a tua esperança não está nos montes: “O meu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra”. Não penses que ofendes os montes santos quando dizes: “o meu auxílio vem para mim, não dos montes, mas do Senhor que fez o céu e a terra”. Isto também to dizem os próprios montes, pois era como um monte aquele que clamava: “Ouvi que há cismas entre vós, e que cada um de vós diz: “Sou de Paulo, eu de Apolo, eu de Cefas, eu de Cristo”. Levanta os olhos para este monte, escuta o que diz, mas não te deixes ficar nele; senão, escuta o que diz em seguida: “Acaso foi Paulo que foi crucificado por vós”? Portanto, depois de teres levantado os olhos para os montes, donde te vem o auxílio, quer dizer, para os escritores das Escrituras Sagradas, põe a tua atenção naquele que, com todas as suas forças, com todos os seus ossos, clama: “Senhor, quem é semelhante a Vós”? E assim poderás dizer tranquilo, sem ofensa alguma aos montes, que “o meu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra”; então não só te corroborarão os montes, mas também te amarão e fortalecerão mais; se tornares a por neles a tua esperança, entristecer-se-ão. Um anjo, que mostrava ao homem muitas coisas divinas e maravilhosas, foi adorado por este, como que elevando os olhos para o monte; mas o anjo, orientando-o para Deus, disse: “Não faças isso! Adora a Deus, pois eu sou Seu servo como tu e os teus irmãos”.
18 — “Espalharam-se por todos os montes e colinas, dispersaram-se por toda a face da terra”. Que significa: “Dispersaram-se por toda face da terra”? Quer dizer que se deixaram atrair pelas coisas terrenas, por tudo o que brilha à face da terra; e só isso amam e procuram. Não querem morrer, não querem aquela morte em que a sua vida se esconde em Cristo. “Dispersaram-se por toda a face da terra” porque amam os bens terrenos e andam errantes por toda a face da terra. Nem todos os hereges estão em toda a terra, mas em toda ela há hereges; uns aqui, outros ali, mas não faltam em nenhum lugar. Nem eles mesmos se conhecem: há uma seita em África, outra heresia no Oriente, outra no Egito, outra na Mesopotâmia, para dar alguns exemplos. Encontram-se em diversos lugares; uma só mãe, a soberba, os gerou a todos, como também uma só mãe, a nossa Igreja Católica, gerou todos os fiéis cristãos, que vivem no mundo inteiro.
Não é de admirar que a soberba gere a divisão, como a caridade gera a unidade. A nossa mãe, a Igreja Católica, com o Pastor que nela vive, procura por toda a parte os que andam errantes, fortalece os débeis, cura os doentes, trata os feridos. Vela por todos, embora os hereges não se conheçam diretamente uns aos outros; mas ela conhece-os a todos, porque está junto de todos. Por exemplo, em África existe o partido de Donato, não o dos eunomianos, e juntamente com eles está ali a Igreja Católica.
Ela é como a videira que foi crescendo e se propagou por toda a parte; aqueles hereges, porém, são como sarmentos inúteis, que a foice do agricultor tem de cortar por causa da sua esterilidade, não para amputar a videira mas apenas para a podar. Aqueles sarmentos ficam no mesmo lugar onde caíram ao serem cortados. A videira, porém, vai crescendo por todo o lado e conhece não só os sarmentos que nela permaneceram, mas também os que foram cortados e ficaram junto dela. Ela reconduz os extraviados, pois referindo-se aos sarmentos cortados, também diz o Apóstolo: “Poderoso é Deus para os enxertar de novo”. Portanto, quer lhes chames ovelhas que se desgarraram do rebanho, quer lhes chames sarmentos que foram cortados da videira, Deus é tão poderoso para reconduzir as ovelhas como para enxertar de novo os sarmentos, porque Ele é o Pastor supremo e o verdadeiro Agricultor. “Dispersaram-se por toda face da terra, e ninguém se interessa por elas, ninguém as procura”, quer dizer, nenhum daqueles meus pastores se interessa por elas, nenhum pastor humano as procura.
IX, 19 — “Por isso, pastores, escutai a palavra do Senhor: pela Minha vida, diz o Senhor Deus”. Vede como começa. É como um juramento que faz o próprio Deus, tomando a Sua vida por testemunho: “Pela Minha vida, diz o Senhor”. Os pastores morreram mas as ovelhas estão seguras, pela vida do Senhor. “Pela Minha vida, diz o Senhor Deus”. Quais foram os pastores que morreram? Os que procuravam os seus interesses e não os de Jesus Cristo. Mas haverá outros pastores, que não procurem os seus interesses mas os de Jesus Cristo? Há certamente. Eles encontram-se e não faltam nem faltarão.
Vejamos o que diz o Senhor quando jura pela Sua vida; talvez diga que há-de tirar as ovelhas aos maus pastores, que se apascentam a si mesmos e não as ovelhas, e dar-lhes-á bons pastores, que apascentem as ovelhas e não a si mesmos. “Pela Minha vida, diz o Senhor Deus; as minhas ovelhas converteram-se presa para todos os animais ferozes, porque não têm pastor”. De novo fala do Pastor, antes e agora; não diz: “porque não há pastores”. Para tais ovelhas, que andam extraviadas para seu mal e para seu mal perdidas, não há Pastor, e mesmo que esteja presente (visto que, se estiver presente, há luz) não é luz para os cegos. “E os pastores não procuraram as minhas ovelhas; alimentaram-se a si mesmos e não as minhas ovelhas”.
20 — “Por isso, pastores, escutai a palavra do Senhor”. Mas que escutais, pastores? “Diz o Senhor: Eu enfrentarei os pastores e reclamarei as minhas ovelhas das suas mãos”.
Ouvi e aprendei, ovelhas de Deus: Deus reclama as Suas ovelhas aos maus pastores e pede contas de as terem levado à morte. Com efeito, Ele diz noutro lugar por meio do mesmo Profeta: “Filho do homem, eu te constituí sentinela na casa de Israel. Quando ouvires a palavra da Minha boca, hás-de adverti-los da Minha parte. Se Eu disser ao pecador: “Vais morrer”, e tu não lhe falares para que ele se afaste do mau caminho, ele morrerá por causa da sua maldade, mas Eu perdir-te-ei contas do seu sangue. Mas se advertires o pecador para que se afaste do seu caminho e ele não se converter, ele morrerá por causa do seu pecado, mas tu salvarás a tua alma”. Que é isto, irmãos? Vedes como é perigoso calar? O pecador morre e morre justamente; morre na sua impiedade e no seu pecado, a negligência o levou à morte. De facto, ele poderia ter encontrado o Pastor da vida, que diz: “Pela Minha vida, diz o Senhor”. Mas não o fez, porque não foi advertido pela voz daquele que foi constituído chefe e sentinela precisamente para o advertir. Por isso aquele morrerá com toda a justiça, mas também este será condenado com toda a justiça. Se, porém — continua o Senhor — tu disseres ao pecador: “vais morrer, porque te ameaça a espada do Senhor”, e ele nada fizer por evitar a espada que está iminente, e a espada realmente cair sobre ele e o matar, morrerá ele no seu pecado, mas tu salvarás a tua alma. Por isso, a nossa obrigação é advertir e não nos calarmos; vós, porém, ainda que nos calássemos, tendes o dever de ouvir as palavras do Pastor na Santa Escritura.
X, 21 — Vejamos agora, como era minha intenção, se Ele retira as ovelhas aos maus pastores e as confia aos bons pastores. Vejo, de facto, que Ele retira as ovelhas aos maus pastores, quando diz: “Eu enfrentarei os pastores e reclamarei as minhas ovelhas das suas mãos; não permitirei que apascentem mais as Minhas ovelhas e lese deixarão de ser pastores que se apascentam a si mesmos”. Eu disse-lhes que apascentassem as Minhas ovelhas, mas eles apascentam-se a si mesmos e não as Minhas ovelhas. Por isso, “não permitirei que apascentem mais as Minhas ovelhas”.
Como os afasta Ele, para que não apascentem mais as Suas ovelhas? Afasta-os quando diz: “Fazei o que eles dizem, mas não o que eles fazem”, que é como se dissesse: “Dizem as Minhas palavras, mas procedem segundo os seus interesses”. Podia ter dito: “Fazei tranquilamente o que fazem; a eles condená-los-ei por viverem mal, mas a vós perdoar-vos-ei, porque seguistes os vossos chefes”. Se tivesse dito isto, repito, teria aterrorizado os maus pastores, que se apascentam a si mesmos e não as ovelhas. Mas Ele infunde assim temor não só ao cego que guia, mas também ao cego que o segue; não é dito que cai na fossa apenas o cego que conduz, e não aquele que o segue, mas sim que “se um cego guia outro cego, ambos caem na fossa”. Por isso adverte as ovelhas, dizendo-lhes: “... ‘Fazei o que eles dizem mas não o que eles fazem’. E assim, quando não fazeis o que fazem os maus pastores, não são eles que vos apascentam; quando fazeis o que eles dizem, sou Eu que vos apascento. Proclamam os Meus preceitos e não os cumprem”.
Dizem alguns: “Seguimos os nossos bispos tranquilamente”; é algo que costumam dizer frequentemente os hereges, quando são convencidos pela verdade manifesta: “Nós somos ovelhas; eles darão conta de nós”. Certamente darão má conta da vossa morte. O mau pastor dará má conta da morte da ovelha maligna. Porventura vive a ovelha quando se apresenta a sua pele? Recrimina-se o pastor por ter descuidado a ovelha transviada, devido ao que caiu nos dentes do lobo e foi devorada. De que lhe aproveita mostrar a pele marcada? O pai de família reclama a vida da ovelha, e é nesta ocasião que o mau pastor lhe apresenta a pele, dando conta somente da pele. Poderá mentir o pastor? Via-o desde o alto Quem depressa o julgará: contar-lhe-á as palavras e os atos, e vê também os seus pensamentos. O mau pastor apresenta a pele da ovelha morta: “Anunciei-lhe as Tuas palavras, mas não quis segui-las; esforcei-me para que não se desviasse do rebanho, mas não me obedeceu”. Se diz isto proferindo a verdade — e Deus sabe se diz a verdade — dá boa conta da ovelha má; se, pelo contrário, Deus vê que descuidou a ovelha desviada, que não procurou a que estava perdida, de que lhe serve ter encontrado a pele para a apresentar? Devia tê-la reconduzido ao rebanho, para não ter que mostrar a pele da ovelha morta. Se, pois, não deu boa conta quem a procurou quando estava extraviada, que contas dará quem a extraviou? Isto é aquilo que ouço: se o bispo da Igreja Católica não dá boa conta da ovelha, se não a procurou quando se desviou do rebanho de Deus, que contas há-de dar o bispo herege que não só não a reconduziu do extravio, mas antes o impulsionou?
22 — Mas vejamos, segundo disse, de que forma aparta Deus as ovelhas dos maus pastores. Já o disse antes: “Fazei o que dizem, mas não façais o que fazem”. Não eles que vos apascentam, mas Deus; queiram ou não os pastores, para chegar ao leite e à lã, têm de anunciar a palavra de Deus. Diz o Apóstolo àqueles que dizem coisas boas e praticam o mal: “Tu que pregas que não se deve roubar, roubas”. Escuta aquilo que é pregado, não roubes; não imites o que rouba. Se quiseres imitar o ladrão, ele te ultrapassará com a sua manha; dá-te veneno e não alimento. Mas se escutas que diz algo, não da sua colheita, mas da de Deus, vê bem, pois também o Senhor diz que “não se podem colher uvas das silvas nem figos dos abrolhos”; mas não deves, de certa maneira, caluniá-l'O, dizendo: “Senhor, não me amparaste, porque não se podem colher uvas das silvas, e noutro lugar me disseste a propósito de alguns: “Fazei o que dizem mas não façais o que fazem”; ora, isto quer dizer que os que agem mal são silvas; como queres então que colha a uva da palavra destas silvas”? Ele responderá: “Aquela uva não é produto das silvas; o que acontece é que, por vezes, o sarmento se enrola na sebe, brotando as uvas no meio das silvas espessas; mas a sua raiz não está na raiz daquelas. Se tens fome e não tens de onde as tirar, mete a mão com cuidado para não te ferires nas silvas, quer dizer, para não imitar as ações dos maus; colhe assim a uva que jaz no meio das silvas, mas que é fruto da videira. O alimento abundante virá até ti, mas para as silvas está reservado o tormento do fogo”.
XI, 23 — “Arrancarei de suas mãos e de seus dentes as minhas ovelhas, e não serão mais pasto seu”. O mesmo é dito no Salmo: “Não sabem todos os que praticam a iniquidade que devoram o Meu povo como quem come pão”? “Já não serão mais pasto seu, porque isto diz o Senhor Deus: Eis-Me aqui Eu mesmo”. Afastei as ovelhas dos maus pastores intimando-as a que não façam o que eles fazem, que não ajam as incautas e despreocupadas ovelhas como eles, maus pastores. Que dizer? A quem se dará o que aos maus se retirou? Aos pastores bons, talvez? Não é isso que está dito. Que diremos, irmãos? Será que não há pastores bons? Não se diz noutro lugar das Escrituras: “Dar-lhes-ei pastores segundo o Meu coração, que as apascentarão com disciplina”? Assim como não dá aos bons pastores as ovelhas que tira aos maus — como se não houvessem pastores bons — assim diz: “Aceitá-las-ei Eu”? Ele tinha dito a Pedro: “Apascenta as Minhas ovelhas”. Que pensar então? Quando se entregaram a Pedro as ovelhas, o Senhor não disse: “Eu apascentarei as Minhas ovelhas, pelo que não o deves fazer”, mas pelo contrário, foi dito: “Pedro, amas-Me? Apascenta as Minhas ovelhas”. Porventura porque agora já não temos Pedro entre nós — já foi recebido no descanso dos apóstolos e dos mártires — não há ninguém a quem o Senhor das ovelhas possa dizer com confiança: “Apascenta as Minhas ovelhas”? Talvez, obrigado pela necessidade, desça do céu para exercer o ofício de apascentar as suas ovelhas, por não ter a quem as entregar e por não as querer deixar abandonadas? Assim parece, pois é dito: “Isto diz o Senhor Deus: “Eis-Me aqui Eu mesmo”“, quer dizer, Aquele a Quem dizíamos: “Vós que conduzis José como um rebanho”, o povo estabelecido no Egito. Israel, espalhado já entre os povos, é o próprio José, do qual sabeis que foi levado para o Egito, vendido pelos irmãos. Cristo também foi vendido pelos judeus: dentre os apóstolos, foi Judas quem O vendeu. Começando Cristo a estar entre os gentios, ali foi honrado, ali cresceu o Seu povo, não o abandonando o seu Pastor. Está dito: “Despertai o Vosso poder e vinde salvar-nos”; Ele faz isto agora e continuará a fazê-lo, e diz: “Eu mesmo procurarei as Minhas ovelhas, e as visitarei, como um pastor visita o seu rebanho”. Os maus pastores não se preocuparam, não as resgataram com o seu sangue. “Como um pastor visita o seu rebanho durante o dia”; em que dia? “Quando hajam tempestades e nuvens”, isto é, chuvas e trevas. As chuvas e as trevas são o extravio no mundo, uma grande obscuridade que surge dos apetites dos homens e uma grande névoa que cobra a terra. É difícil que no meio destas trevas se não extraviem as ovelhas, mas o Pastor não as abandona, antes as procurando através das trevas com Seu olhar aguçado, sem que a obscuridade O impeça de as ver. Ele vê-as, e chama a ovelha transviada em qualquer lugar onde ela esteja, para que se cumpra o que diz o Evangelho: “As Minhas ovelhas escutam a Minha voz e seguem-Me; entre todas procurarei as que são Minhas, reuni-las-ei de todos os lugares onde se desgarraram no dia das chuvas e da tempestade”. Justamente quando for mais difícil encontrá-las é que Eu as encontrarei.
24 — “Arrancá-las-ei de entre os povos e as reunirei dos vários países; hei-de reconduzi-las à sua terra e apascentá-las nas montanhas de Israel”. As montanhas de Israel são as páginas da Escritura divina. Apascentai-vos nela se quereis apascentar-vos em segurança. Tudo quanto nela encontrais, saboreai-o bem; tudo o que encontrais fora dela, rejeitai-o. Para não vos perderdes no meio do nevoeiro, ouvi a voz do Pastor, e reuni-vos nos montes da Santa Escritura. Aí estão as delícias do vosso coração, aí nada é venenoso, nada é prejudicial; são as pastagens fertilíssimas dos montes de Israel. Vinde, ovelhas sãs, vinde vós somente, e apascentais-vos nas pastagens sadias dos montes de Israel.
“E ao longo das ribeiras e em todos os prados da terra”. Dos montes que vos mostrámos brotaram os rios da pregação evangélica, quando “a Sua voz se fez ouvir por toda a terra” e, através destes rios da pregação evangélica, espalharam-se por toda a terra os prados férteis e abundantes, onde podem apascentar-se os rebanhos do Senhor.
“Apascentá-las-ei em boas pastagens e terão o seu redil nos altos montes de Israel”, isto é, encontrarão um lugar onde possam descansar e dizer: “Estamos bem aqui; é verdade o que nos disseram, não nos enganaram”. E descansarão na glória de Deus, que será o seu redil. “E dormirão”, isto é, “descansarão em agradáveis delícias”.
25 — “E terão abundantes pastagens nos montes de Israel”. Já vos falei dos montes de Israel, que são aqueles montes benéficos para onde levantamos os olhos e donde nos vem o auxílio. Mas “o nosso auxílio vem do Senhor que fez o céu e a terra”. Por isso, para que não puséssemos toda a nossa esperança naqueles montes, depois de dizer: “Apascentarei as Minhas ovelhas nos montes de Israel”, acrescentou imediatamente: “Eu mesmo apascentarei as Minhas ovelhas”. Por conseguinte, levanta os teus olhos para os montes, donde te virá o auxílio, mas espera somente n'Aquele que diz: “Eu mesmo apascentarei”, porque o teu auxílio “vem do Senhor que fez o céu e a terra”.
26 — “E fá-las-ei descansar, diz o Senhor Deus”. Mas para as fazer descansar com o que é que Se preocupou antes? Eis que Ele o diz logo em seguida: “Isto diz o Senhor Deus: “Procurarei a que se perdeu, chamarei a que se desviou, ligarei a ferida, fortalecerei a débil e guardarei a que é forte”“. Tudo coisas que não faziam os maus pastores, que se apascentavam a si mesmos, não as ovelhas. O Senhor não diz: “Estabelecerei outros pastores que façam isto”, mas sim: “Eu mesmo o farei, pois não confiarei as Minhas ovelhas a nenhum outro”. Estai tranquilos, irmãos; vós, que sois ovelhas, confiai. Somos nós os que temos de temer, como se nos faltasse o Bom Pastor.
XII, 27 — E termina assim: “Eu as apascentarei com justiça”. Vede como só Ele pode apascentar o rebanho com justiça. De facto, qual é o homem que pode julgar o homem? A terra está cheia de juízos temerários. Aquele de quem perdêramos toda a esperança, de um momento para o outro converte-se e torna-se o melhor de todos. E aquele em quem tanto confiávamos, dum momento para o outro falha e torna-se o pior de todos. Nem o nosso temor é constante, nem o nosso amor é estável.
O que é hoje cada homem, dificilmente o sabe o próprio homem. E se de algum modo ele sabe o que é hoje, não sabe o que será amanhã. Só Deus apascenta com justiça, dando a cada um o que precisa: isto a uns, aquilo a outros, a cada qual o que lhe convém, porque Ele sabe o que deve fazer. Portanto, só Ele apascenta com justiça.
28 — Segundo o profeta Jeremias, “clamou a perdiz, reuniu ovos que não pôs, amontoando riquezas, mas sem juízo”. Ao contrário desta perdiz que amontoou as suas riquezas sem juízo, este Pastor apascenta sabiamente. Porque foi a perdiz néscia? Porque reuniu aquilo que não gerou. Porque é sábio o Pastor? Porque cria o que Ele próprio gerou. Falo do Bom Pastor. Os pastores bons ou não existem ou estão ocultos. Se não os há, porque perdemos tempo? Se estão ocultos, porque não se fala deles? Na imagem daquela perdiz alguns dos nossos antecessores e comentadores da Escritura viram simbolizado o diabo, que reúne o que não gerou. Ele não é criador, mas imitador, amontoando nesciamente as suas riquezas. A ele não lhe importa se alguém se extravia desta ou daquela forma: quer é que todos se extraviem, seja por que erros forem. E quantas heresias, e tão diferentes, existem! E tantos erros! Ele deseja que os homens se percam em qualquer deles, não importa; o diabo não diz: “Sejam donatistas ou arianos”. Seja aqui, seja ali, pertencem-lhe a ele, que reúne nesciamente: “Se adora aos ídolos, é meu; se permanece na superstição dos judeus, é meu; se abandona a unidade por esta ou aquela heresia, é meu”. Reúne injustamente ao amontoar as suas riquezas.
E que se segue? “Na metade dos seus dias abandoná-la-ão, e no seu fim será néscia”. Eis que chega Aquele que congrega de todas as pastes as Suas ovelhas; e eis que na metade dos seus dias, o mau pastor, antes do que esperava e pensava, vê-se abandonado pelas ovelhas, surgindo como um néscio no seu fim. Porque é que nos seus primeiros dias aparecia como sábio e nos últimos aparecerá como néscio? Escutai, irmãos. Por vezes, na Escritura, diz-se sabedoria em lugar de astúcia, num sentido figurado, não no próprio. É assim que se diz: “Onde está o sábio, onde está o douto, onde está o investigador das coisas deste mundo? Não tornou Deus néscia a sabedoria deste mundo”? Esta perdiz, este dragão, esta serpente mostrou-se aparentemente sábia quando, por meio de Eva, enganou Adão. Acreditou Adão que ela dizia a verdade, estimando que lhe dava um bom conselho; acreditou nela em vez de acreditar em Deus. Segundo o costume das Escrituras — pois não nos importa o que dizem os gramáticos deste mundo — fala-se da sabedoria em sentido abusivo e mau, e isso pode ser comprovado no mesmo livro: “Era a serpente a mais sábia de todos os animais”. Este animal, o mais sábio de todos, é considerada astuta e hábil a enganar. Logo, já não se lhe dá crédito. Devemos dizer-lhe: “Renunciamos a ti; basta que, incautamente, nos tenhas enganado da primeira vez”. Deste modo, pois, será néscia nos seus últimos dias; serão descobertas as suas fraudes, e por isso mesmo deixará de existir. Nos seus últimos dias será néscio quem reuniu o que não gerou e amontoou riquezas sem juízo. Ao contrário deste, o nosso Redentor apascenta sabiamente.
29 — Pensemos num herege qualquer. Ainda que não seja irmão do diabo, certamente que é seu ajudante e filho. Também a ele lhe chamamos perdiz e animal dado a contendas. Os caçadores sabem que esta ave pode ser caçada pela sua ânsia de lutar. Os hereges lutaram contra a verdade logo desde o momento em que se separaram. Agora dizem: “Não queremos lutar”, porque já estão capturados. Não têm que mais dizer senão: “Não quero lutas”. Oh cativo! Sem dúvida eras tu que nos primeiros tempos da tua separação nos acusavas de “traditores” [traidores], condenavas os inocentes, procuravas o tribunal do Imperador, não te submetias ao juízo dos bispos, sempre que eras vencido voltavas a apelar, diante do próprio Imperador litigavas afanosamente! Reunias o que não havias gerado, Onde está agora a tua dura cerviz? Onde está a tua língua? Onde está o teu silvo, oh serpente? Certamente que nos teus últimos dias te tornaste néscio, te atemorizaste por não seres sábio. Já não queres julgar aquilo que está certo, nem sequer o teu erro, nem a verdade. Mas Cristo apascenta-te com justiça; Ele distingue as Suas ovelhas das que não são Suas. Diz o Senhor: “As Minhas ovelhas ouvem a Minha voz e seguem-Me”.
XIII, 30 — Aqui vejo todos os bons pastores identificados com o Bom Pastor. Não faltam pastore.
Santo Agostinho de Hipona.
Fonte: http://patristicabrasil.blogspot.com.br
Tradução: Seminário de Sintra (Portugal).
Visto em: http://espelhodejustica.blogspot.com.br/2013/03/santo-agostinho-o-sermao-dos-pastores.html
Não revisado pelo blog!
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