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segunda-feira, 1 de julho de 2013

Discurso sobre a ditadura

Juan Francisco María de la Salud Donoso Cortés y Fernández Canedo
I Marquês de Valdegamas

Discurso pronunciado pelo Marquês de Valdegamas*, na Câmara dos deputados de Madri, em 4 de janeiro de 1849.

Senhores,

O longo discurso pronunciado ontem pelo senhor Cortina, e ao qual vou responder, considerando-o sob um ponto de vista restrito, em consideração às suas vastas dimensões, foi apenas um epílogo: o epílogo dos erros do partido progressista, os quais, por sua vez, são apenas outro epílogo: o epílogo dos erros inventados há três séculos, e que perturbam hoje aproximadamente todas as sociedades humanas.

Começando seu discurso, o senhor Cortina confessou, com a boa fé que o distingue e que realça tanto seu talento, que ele mesmo algumas vezes veio a se perguntar se seus princípios não seriam falsos e suas ideias desastrosas, as vendo sempre na oposição e nunca no poder. Eu diria à Sua Senhoria: por menos que se refletisse nisso, sem dúvida isso se transformará em certeza. Suas ideias não estão no poder, e estão na oposição precisamente porque elas são ideias de oposição, e não ideias de governo. Ideias infecundas, senhores, ideias estéreis, desastrosas, que temos de combater até que elas sejam sepultadas em sua sepultura natural, aqui, sob estas abóbadas, ao pé dessa tribuna.



Fiel às tradições do partido do qual ele é o líder e que ele representa; fiel, digo, às tradições desse partido desde a Revolução de fevereiro, o senhor Cortina colocou em seu discurso três coisas que eu chamaria de inevitáveis. A primeira é o elogio desse partido, elogio fundamentado sobre uma exposição de seus méritos passados; a segunda é a memória de suas queixas presentes; a terceira, o programa ou a exposição de seus serviços futuros.

Senhores da maioria, venho aqui defender vossos princípios; mas não esperem de mim o menor elogio: vocês são os vitoriosos, nada convém tanto à fronte do vencedor do que uma coroa de modéstia.

Não esperem de mim também que eu fale de vossas queixas: vocês não devem se vingar das ofensas pessoais, mas sim daquelas que os traidores fizeram à sociedade e ao trono, à sua rainha e à sua pátria. Não farei a enumeração de vossos serviços. Com qual intuito faria isso? Para que a nação os conhecessem? A nação não se esqueceu disso.

O senhor Cortina, vocês não se esqueceram, senhores, dividiu seu discurso em duas partes. Sua Senhoria tratou da política exterior do governo, e chamou política exterior de uma elevada importância para a Espanha, os acontecimentos chegados de Paris, de Londres e de Roma. Também abordarei essas questões.

O honorável orador abordou em seguida a política interior; e a política interior, tal como o senhor Cortina a tratou, se divide em questão de princípios e questão de fatos, questão de sistema e questão de conduta. Pelo órgão dos ministros das relações exteriores e do interior, que tem cumprido essa tarefa com sua eloquência de costume, o ministério respondeu sobre a questão de fatos e sobre a questão de conduta, assim como lhe cabia responder, tendo todos os dados para isso. A questão de princípios permaneceu quase intacta: só tratarei dela, mas, se o congresso me permite, tratá-la-ei a fundo.

Qual é o princípio do senhor Cortina? Ei-lo, se analisei bem seu discurso. Na política interior, a legalidade: tudo pela legalidade, tudo para a legalidade, a legalidade sempre, a legalidade em toda circunstância, a legalidade em toda ocasião. E eu, que acredito que as leis são feitas para as sociedades, e não as sociedades para as leis, digo: A sociedade, tudo pela sociedade, tudo para a sociedade, a sociedade sempre, a sociedade em toda circunstância, a sociedade em toda ocasião.

Quando a legalidade basta para salvar a sociedade, a legalidade; quando ela não basta, a ditadura. Essa palavra formidável, senhores, - ela é menos do que a palavra revolução, a mais formidável de todas, - essa palavra formidável foi pronunciada aqui por um homem que todo mundo conhece, e que seguramente não é da estirpe da qual se geram os ditadores. Quanto a mim, sinto-me nascido para entendê-los, mas não para imitá-los. Duas coisas me são impossíveis: condenar a ditadura, e exercê-la. Incapaz de governar, reconheço isso com toda sinceridade, altivamente e nobremente, não poderia em consciência aceitar o governo; não poderia isso sem colocar a metade de mim mesmo em guerra com a outra metade, meu instinto com minha razão, minha razão com meu instinto.

Da mesma forma, senhores, chamo como testemunhas disso todos aqueles que me conhecem: ninguém aqui, nem fora daqui, pode dizer que eu tenha caminhado no caminho da ambição onde se apresenta a loucura. Mas todo mundo me encontrará, todo mundo me encontrou no caminho da modéstia dos bons cidadãos; e, quando meus dias tiverem terminado, eu descerei no túmulo sem levar o remorso de ter faltado com o dever de defender a sociedade barbaramente atacada, ou o gosto amargo, e para mim insuportável, da dor de ter feito o mal a um homem.

Digo, senhores, que a ditadura, em certas circunstâncias, em umas circunstâncias dadas, como aquelas, por exemplo, onde estamos, é um governo tão legítimo, tão bom, tão vantajoso quanto qualquer outro, um governo racional que pode se defender tanto em teoria quanto em prática. Vejam, com efeito, o que é a vida social.

A vida social, como a vida humana, é composta da ação e da reação, do fluxo e do refluxo de algumas forças que invadem e de certas forças que resistem.

Tal é a vida social, tal é também a vida humana. Ora, as forças invasoras, que chamamos de doenças no corpo humano, e com outro nome no corpo social, ainda que elas sejam essencialmente a mesma coisa, têm dois estados. Em um, elas estão espalhadas aqui e acolá na sociedade e são representadas apenas por uns indivíduos; no outro, no estado de doença aguda, elas se concentram mais e são representadas por associações políticas. Pois bem, digo que as forças resistentes, só existindo no corpo humano e no corpo social para afastar as forças invasoras, devem ser necessariamente proporcionais ao estado presente dessas. Quando as forças invasoras estão disseminadas, as forças resistentes fazem isso também; elas estão disseminadas no governo, nas autoridades, nos tribunais, em uma palavra, em todo o corpo social; mas as forças invasoras se concentrando em associações políticas, então, necessariamente, sem que ninguém possa impedi-las, sem que ninguém tenha o direito de impedi-las, as forças resistentes se concentram em uma única mão. Eis a teoria clara, luminosa, indestrutível, da ditadura.

E essa teoria, que é uma verdade na ordem racional, é um fato constante na ordem histórica. Citem-me uma sociedade que não tenha tido ditadura; citem-me uma. Vejam, logo, o que se passava na democracia de Atenas, o que se passava na Roma aristocrática. Em Atenas, o poder soberano estava nas mãos do povo, e se chamava ostracismo; em Roma, ele estava nas mãos do senado, que o delegava a uma personagem consular, e que se chamava, como entre nós, ditadura. Vejam as sociedades modernas; vejam a França em todas as suas vicissitudes. Não falarei da primeira República, que foi uma ditadura gigantesca, sem limites, repleta de sangue e de horrores. Falo de uma época posterior. Na Carta da Restauração, a ditadura tinha se refugiado, ou, como queiram, tinha procurado um asilo no artigo 14; na Carta de 1830, ela se encontrava no preâmbulo. E na República atual? Não digamos nada disso: O que ela é, senão a ditadura sob o nome de República?

O senhor Galvez Cagnero citou aqui, muito mal, a propósito, a Constituição inglesa. Precisamente, senhores, a Constituição inglesa é a única no mundo onde a ditadura não seja de direito excepcional, mas de direito comum. E a coisa é clara. Em todas as circunstâncias, em todas as épocas, o Parlamento tem, quando ele deseja, o poder ditatorial; pois, no exercício de seu poder, ele não reconhece outro limite senão aquele de todos os poderes humanos, a prudência. Ele pode tudo, e é nisso que constitui o poder ditatorial; ele pode tudo, exceto transformar uma mulher em homem ou um homem em mulher, dizem seus jurisconsultos. Ele tem o poder de suspender o habeas corpus... ele pode mudar a constituição; ele pode mudar mesmo a dinastia; ele tem o direito de oprimir as consciências: em uma palavra, ele pode tudo. Quem viu em um tempo qualquer, senhores, uma ditadura mais monstruosa?

Provei que a ditadura é uma verdade na ordem teórica, e um fato na ordem histórica. Agora, eu vou mais longe: se as conveniências me permitem, poder-se-ia dizer que a ditadura é também um fato na ordem divina.

Deus deixou aos homens, até certo ponto, o governo das sociedades humanas, e se reservou exclusivamente o governo do universo. Deus governa o universo, se assim posso falar e se podemos, em um assunto tão elevado, empregar as expressões da língua parlamentar, Deus governa o universo constitucionalmente. Bem! senhores, isso me parece da maior clareza, da maior evidência. O universo é governado por algumas leis precisas, indispensáveis, que chamamos causas segundas. Que são essas leis, senão leis análogas àquelas que chamamos de fundamentais nas sociedades humanas?

Ora, senhores, se por relação com o mundo físico Deus é o legislador, como alguns homens são legisladores, ainda que de um modo diferente, por relação com as sociedades humanas, Deus sempre governa com essas leis, que Ele impôs a si mesmo em sua eterna sabedoria, e às quais Ele sujeitou a todos nós? Não, senhores; pois por vezes Ele manifesta sua vontade soberana diretamente, claramente e explicitamente, quebrando essas leis que Ele se impôs a si mesmo, e desviando o corpo natural das coisas. Ora, quando Deus age assim, não poderíamos dizer, se a língua humana pudesse se aplicar às coisas divinas, que Ele age ditatorialmente?

Isso prova, senhores, quão grande é a loucura de um partido que se imagina poder governar com menos meios do que Deus, e se proíbe o meio, por vezes necessário, da ditadura. Sendo assim, a questão reduzida aos seus verdadeiros termos não consiste em saber se a ditadura é sustentável, ou se, em certas circunstâncias, ela é boa; mas sim se tais circunstâncias não advieram ou ocorreram para a Espanha? Eis o ponto mais importante e aquele sobre o qual vou concentrar exclusivamente minha atenção. Para isso, só imitarei todos os oradores que me precederam nessa tribuna, só terei que lançar um olhar sobre a Europa, inicialmente, e, em seguida, sobre nosso país.

A Revolução de fevereiro adveio, senhores, como advém a morte, de forma imprevista. Deus tinha condenado a monarquia francesa. Em vão essa instituição tinha se transformado profundamente para se acomodar às circunstâncias e aos tempos: isso não lhe serviu de nada; sua condenação foi definitiva, e sua perda inevitável. A monarquia do direito divino terminou com Luís XVI sobre o patíbulo; a monarquia da glória acabou com Napoleão em uma ilha; a monarquia hereditária acabou com Carlos X no exílio; e com Luís-Filipe acabou a última de todas as monarquias possíveis, a monarquia da prudência. Triste e lamentável espetáculo como este, de uma instituição tão venerável, tão antiga, tão gloriosa, que não pôde defender nem o direito divino, nem a legitimidade, nem a prudência, nem a glória!

Quando a grande notícia dessa revolução chegou à Espanha, ficamos todos consternados, aterrorizados. Nada era comparável à nossa consternação, ao nosso espanto, salvo o espanto e a consternação da monarquia vencida. Estou errado: havia uma consternação e um espanto maiores que os da monarquia vencida, os da república vitoriosa. Ainda hoje mesmo, dez meses após seu triunfo, pergunte-lhe como ela venceu, por que ela venceu, por quais forças ela venceu, e ela só saberá lhes responder: E por quê? Porque não foi a república que venceu: a república foi apenas o instrumento de vitória de um poder mais alto.

Esse poder, sua obra uma vez começada, destruiu a monarquia com um átomo de república; os senhores acreditam, senhores, que ele não poderá, se isso for conveniente e necessário aos seus fins, derrubar por sua vez a república com um átomo de império ou um átomo de monarquia? Essa revolução foi o assunto de grandes comentários sobre suas causas e sobre seus efeitos em todas as tribunas da Europa, e particularmente na tribuna espanhola, e tenho admirado com qual ligeireza deplorável se tratam, aqui e toda parte, causas profundas que conduzem a tais agitações. Aqui, como em alhures, só se atribui às revoluções as faltas dos governos; esquecem-se de que as catástrofes universais, imprevistas, simultâneas, são sempre providenciais; pois, senhores, tais são as características que distinguem as obras de Deus das obras do homem.

Quando as revoluções apresentam esses sintomas, estejam certos de que elas vêm do céu, e que elas vêm pela falta e para o castigo de todos. Querem, senhores, saber a verdade, toda a verdade sobre as causas da última revolução francesa? Pois bem, a verdade é que em fevereiro tinha chegado o dia da grande liquidação de todas as classes da sociedade com a Providência, e que nesse dia terrível todas foram encontradas falidas. Sim, nesse dia, sua liquidação ocorreu com a Providência, e todas, repito, se encontraram falidas. Digo mais, a república em sim, no dia de sua vitória, se declarou também em bancarrota. A república tinha dito que ela vinha estabelecer no mundo o reino da liberdade, da igualdade e da fraternidade, três dogmas que não vêm da república, mas sim do Calvário. Pois bem, senhores, o que ela fez depois? Em nome da liberdade, ela tornou necessário, ela proclamou, ela aceitou a ditadura. Em nome da igualdade, sob o título de republicanos de outrora, de republicanos do amanhã, de republicanos de nascimento, ela inventou um tipo de democracia aristocrática e uma espécie de brasões ridículos. Enfim, em nome da fraternidade, ela restaurou a fraternidade pagã, a fraternidade de Etéocles e de Polinices; e seus irmãos se estrangularam uns aos outros nas ruas de Paris, na batalha mais sangrenta que os séculos jamais viram nos muros de uma cidade. A esta república, que se chamou a república das três verdades, eu desminto: ela é a república das três blasfêmias, a república das três mentiras.

Abordemos agora as causas dessa revolução. O partido progressista sempre tem as mesmas causas para tudo. O senhor Cortina nos disse ontem que há revoluções porque há ilegalidades, e porque o instinto dos povos a excitam de um modo uniforme e espontâneo contra os tiranos. O senhor Ordax Avecilla nos tinha dito antes: Os senhores querem evitar as revoluções, deem pão aos famintos. Eis aqui, em toda a sua profundidade, a teoria do partido progressista: as causas da revolução são, de uma parte, a miséria, de outra, a tirania. Essa teoria, senhores, é contrária, completamente contrária à história. Peço que me citem um exemplo de uma revolução empreendida e conduzida ao fim por povos escravos ou por povos famintos. As revoluções são a doença dos povos ricos, dos povos livres. O mundo antigo era um mundo onde os escravos compunham a maior parte do gênero humano: citem-me a revolução que esses escravos fizeram.

Tudo o que eles puderam fazer foi fomentar algumas guerras servis: mas as revoluções profundas sempre foram a obra de aristocracias opulentas. Não, senhores, o germe das revoluções não está na escravidão, não está na miséria; o germe das revoluções está nos desejos da multidão super-excitada pelos tribunos que a exploram em seu proveito. Vocês serão como os ricos, tal é a fórmula das revoluções socialistas contra as classes médias. Vocês serão como os nobres, tal é a fórmula das revoluções das classes médias contra as massas nobiliárias. Vocês serão como os reis, tal é a fórmula das revoluções das classes aristocráticas contra os reis. Enfim, senhores: vocês serão como deuses, tal é a fórmula da primeira revolta do primeiro homem contra Deus. Desde Adão, o primeiro rebelde, até Prudhon, o último ímpio, tal é a fórmula de todas as revoluções.

O governo espanhol, esse era seu dever, não quis que essa fórmula tivesse sua aplicação na Espanha; ele não a quis ainda menos porque a situação interior não era das mais tranquilizadoras: e era para ele uma necessidade prestar atenção contra as eventualidades do interior assim como contra as eventualidades de fora. Para agir de outra forma, ter-lhe-ia sido necessário que ele desconhecesse completamente o poder dessas correntes magnéticas que partem dos impulsos de infecção revolucionária e vão contaminar tudo no mundo.

Eis em poucas palavras qual era a situação interior. A questão política não estava, nunca esteve e ainda não está completamente resolvida: as questões políticas, nas sociedades tão agitadas pelas paixões, não são resolvidas facilmente. A questão dinástica não estava acabada; pois, ainda que nessa questão sejamos os vitoriosos, não obtemos ainda a resignação do vencido, o que é o complemento da vitória. A questão religiosa se encontrava em muito mal estado. A questão dos casamentos estava, todos os senhores sabem disso, apodrecida. Eu pergunto, senhores; supondo, como já provei, que em certas circunstâncias dadas a ditadura seja legítima, vantajosa, estamos ou não estamos em tais circunstâncias? Se não estamos, digam-me quais circunstâncias mais graves foram produzidas no mundo. A experiência veio demonstrar que os cálculos do governo e as previsões dessa câmara não tinham sido mal fundamentadas. Todos vocês sabem disso, senhores, passarei rapidamente sobre esse assunto, porque detesto tudo o que pode alimentar as paixões, não nasci para isso: todos vocês sabem que a República foi proclamada em Madri por tiros de carabina; todos vocês sabem que eles tinham ganhado uma parte da guarnição de Madri e de Sevilha; todos vocês sabem que sem a resistência enérgica, ativa, do governo, a Espanha inteira, desde as colunas de Hércules até os Pirineus, de um mar ao outro, teria sido apenas um lago de sangue. E isso não teria sido somente na Espanha! Os senhores sabem quais males teriam se espalhado no mundo se a revolução tivesse triunfado? Ah, senhores! quando se pensa nessas coisas, não se pode impedir de exclamar que o ministério que soube resistir e vencer tem, pois, o mérito da pátria.

Essa questão veio se complicar com a questão inglesa. Antes de abordar essa última, o congresso me permitirá expor algumas ideias gerais que me parecem úteis nessa discussão.

Sempre acreditei, senhores, que, para os governos e para os povos, como para os indivíduos, a cegueira é um sinal de perdição. Acredito que Deus sempre começa por cegar aqueles que Ele quer perder; que Ele coloca a perturbação em sua cabeça para que eles não vejam o abismo que Ele coloca sob seus passos. Aplicando essas ideias à política geral, seguida há alguns anos pela Inglaterra e pela França, posso dizer aqui que há muito tempo eu predisse grandes desgraças e catástrofes.

É um fato histórico, um fato reconhecido, um fato incontestável, de que a missão providencial da França é de ser o instrumento da Providência para a propagação das novas ideias, seja políticas, seja religiosas ou sociais. Nos tempos modernos, três grandes ideias invadiram a Europa: a ideia católica, a ideia filosófica, a ideia revolucionária. Ora, nesses três períodos, a França sempre se fez homem para propagar essas ideias. Carlos Magno foi a França feita homem para propagar a ideia católica; Voltaire foi a França feita homem para propagar a ideia filosófica; Napoleão foi a França feita homem para propagar a ideia revolucionária.

Ademais, acredito que a missão providencial da Inglaterra é de manter o justo equilíbrio moral do mundo, servindo de contra-peso perpétuo à França. A França é como o fluxo, a Inglaterra é como o refluxo do mar. Suponham por um momento o fluxo sem o refluxo, os mares transbordariam sobre todos os continentes; suponham o refluxo sem o fluxo, os mares desapareceriam da terra. Suponham a França sem a Inglaterra, e veríamos o mundo se mover apenas por convulsões: a cada dia apareceria uma nova constituição, a cada hora uma nova forma de governo. Suponham a Inglaterra sem a França, o mundo vegetaria para sempre sob a carta de João Sem Terra, esse tipo imóvel de todas as constituições britânicas. Que significa, então, a co-existência dessas duas poderosas nações? Ela significa o progresso contido pela estabilidade, a estabilidade vivificada pelo progresso.

Pois bem, senhores, há alguns anos, apelo à história contemporânea e às vossas memórias, essas duas grandes nações perderam a memória de suas tradições, a consciência de sua missão providencial. A França, no lugar de espalhar no mundo as ideias novas, pregou por toda parte o statu quo: o statu quo na França, o statu quo na Espanha, o statu quo na Itália, o statu quo no Oriente. E a Inglaterra, no lugar de pregar a estabilidade, pregou por toda parte a revolta: na Espanha, em Portugal, na França, na Itália e na Grécia. O que resultou disso? O que forçosamente deveria resultar: que cada uma das duas nações, desempenhando um papel que nunca tinha sido o seu, jogou muito mal. A França quis se transformar de diabo em pregador, a Inglaterra de pregador em diabo.

Tal é, senhores, a história contemporânea; mas para falar apenas da Inglaterra, pois é somente dela que tenho que me ocupar nesse momento, Deus vigia para não fazer cair sobre ela, como Ele fez sobre a França, as catástrofes que ela tem merecido por suas faltas! Nenhuma falta é comparável àquela da Inglaterra, que apóia por toda parte os partidos revolucionários. Infelizmente! ela não sabe que no dia do perigo, esses partidos, com um instinto mais claro que o seu, se voltarão contra ela? Isso já não aconteceu? E isso deveria acontecer, senhores; pois todos os revolucionários do mundo sabem que, quando as revoluções se tornam sérias, quando as nuvens se acumulam, quando o horizonte se obscurece, quando as ondas sobem, o navio da revolução não tem outro piloto senão a França.

Tal foi a política seguida pela Inglaterra, ou para melhor dizer, por seu governo e seus agentes durante a última época. Não quero tratar esta questão, disse e repito: graves considerações me desviam disso. A consideração do bem público, inicialmente; pois, devo declarar isso aqui solenemente: eu desejo a aliança mais íntima, a união mais completa, entre a nação espanhola e a nação inglesa. Admiro e respeito essa nação, a mais livre e a mais poderosa talvez que existe sobre a terra, a mais digna de ser poderosa e livre. Não queria, portanto, contaminar essa questão por minhas palavras, nem colocar o menor obstáculo às negociações ulteriores. Outra consideração ainda me determina a não tratar essa questão. Para tratá-la, seria obrigado a falar de um homem do qual, mais ainda que o senhor Cortina, tenho sido amigo; ora, não posso ir com ele tão longe quanto com o senhor Cortina: a honra só me permite o silêncio.

Tratando dessa questão, o senhor Cortina, que ele me permita lhe dizer isso com franqueza, experimentou uma espécie de vertigem; ele se esqueceu que ele está, onde ele estava e que nós estamos. Orador do parlamento, ele se acreditou advogado; falando diante dos deputados, ele acreditou falar diante dos juízes; dirigindo-se a uma assembleia deliberativa, ele acreditou se dirigir a um tribunal; tratando um grande assunto político e nacional, ele acreditou pleitear um processo; isso é um processo, sem dúvida, mas um processo entre duas nações. Ora, senhores, é conveniente ao senhor Cortina se fazer advogado da parte adversa da nação espanhola? Que coisa! senhores, é isso por acaso que se chama de patriotismo? Isso realmente é ser patriota? Ó! não. Os senhores sabem o que é que é ser patriota? Ser patriota, senhores, é amar, é odiar, é sentir, como amo, como odeio, como sinto nossa pátria.

Eu disse, senhores, que passaria ligeiramente sobre essa questão; eu passei.

O secretário do congresso (Lafuente Alcantara) - A hora fixada pelo regulamento tendo passado, perguntamos ao congresso se ele quer prolongar a sessão.

O congresso decide que a sessão continuará.

O marquês de Valdegamas - Senhores, nem as circunstâncias interiores, que eram tão graves, nem as circunstâncias exteriores, que eram tão complicadas e tão perigosas, nada pode adocicar a oposição dos honoráveis deputados que se sentam sobre esses bancos - E a liberdade? Eles nos dizem. O que! a liberdade não está acima de tudo? Não devemos respeitar ao menos a liberdade individual, e ela não foi sacrificada? - A liberdade, senhores! Eles conhecem o princípio que eles proclamam e o nome que eles pronunciam, aqueles que pronunciam essa palavra sagrada? Eles conhecem o tempo em que eles vivem? O ruído das últimas catástrofes não chegou até os senhores? O que! vocês não sabem que a esta hora a liberdade morreu? Os senhores não assistiram, como eu, em espírito, à sua dolorosa paixão? Os senhores não a viram perseguida, zombada, perfidamente atingida por todos os demagogos do mundo? Os senhores não a viram arrastar sua angústia sobre as montanhas da Suíça, sobre as margens do Sena, sobre as bordas do Reno e do Danúbio, e sobre a costa do Tibre? Os senhores não a viram subir ao Quirinal, que foi seu Calvário?

Senhores, essa palavra faz tremer: a liberdade morreu! Ela não ressuscitará, senhores, nem no terceiro dia, nem no terceiro ano, nem, talvez, no terceiro século! Vocês se assustam com a tirania que sofremos? Vocês se assustam com pouco: vereis logo algo diferente. E aqui, senhores, eu vos suplico para gravar minhas palavras em vossa memória, pois o que eu vou lhes dizer, os acontecimentos que eu vou lhes anunciar, devem, em um futuro mais ou menos próximo, mas que não pode estar distante de nós, se realizar literalmente.

A causa de todos os vossos erros, senhores (o orador se dirige aos deputados da esquerda), é que vocês ignoram a direção da civilização e do mundo. Vocês acreditam que a civilização e o mundo avançam quando o mundo e a civilização recuam. O mundo caminha a passos largos para a constituição de um despotismo, o mais gigantesco e mais destruidor que os homens jamais viram. Eis para onde vão o mundo e a civilização. Para anunciar essas coisas, não preciso ser profeta; basta-me considerar o conjunto assustador dos acontecimentos humanos, somente por seu ponto de vista verdadeiro, das eminências católicas.

Há somente, senhores, duas repressões possíveis: uma interior, outra exterior; a repressão religiosa e a repressão política. Elas são de tal natureza que, quando o termômetro religioso se eleva, o termômetro da repressão baixa, e que, reciprocamente, quando o termômetro religioso baixa, o termômetro político, a repressão política, a tirania, sobe. Eis uma lei da humanidade, uma lei da história. E, para vos convencer disso, senhores, vejam o que era o mundo, vejam o que era a sociedade nos tempos anteriores à Cruz; digam o que se passava quando não havia repressão interior, repressão religiosa. A sociedade então se compunha apenas de tiranos e de escravos. Citem-me um único povo desta época onde não houvesse escravos e tirania? Eis um fato incontestável e incontestado, eis um fato evidente. A liberdade, a liberdade verdadeira, a liberdade de todos e para todos, veio ao mundo apenas com o Salvador do mundo; eis aqui ainda um fato incontestado, um fato reconhecido, mesmo pelos socialistas. Sim, os socialistas confessam isso; eles chamam Jesus de um homem divino; eles fazem mais, eles se dizem os continuadores de Jesus. Seus continuadores, grande Deus! Eles, esses homens de sangue e de vingança, continuadores dAquele que viveu apenas para fazer o bem, que abriu a boca apenas para abençoar, que fez prodígios apenas para libertar os pecadores do pecado, os mortos da morte; que, no espaço de três anos, realizou a maior revolução cujo mundo tenha sido testemunha, e isso sem ter derrubado outro sangue senão o seu!

Prestem, eu vos imploro, vossa atenção em mim; eu vou lhes colocar diante do paralelismo mais maravilhoso que a história nos oferece. Vocês viram que no mundo antigo que, enquanto que a repressão religiosa era tão baixa quanto possível, pois não existia nenhuma, a repressão política subiu ao grau extremo, porque ela subiu até à tirania. Pois bem, com Jesus Cristo, lá onde nasceu a repressão religiosa, desapareceu completamente a repressão política. Isso é tão verdadeiro, que, Jesus Cristo tendo fundado uma sociedade com seus discípulos, essa sociedade foi a única que tinha existido sem governo. Entre Jesus Cristo e seus discípulos não havia outro governo senão o amor do Mestre pelos discípulos, e o amor dos discípulos pelo Mestre. Vocês veem, portanto, que quando a repressão interior era completa, a liberdade era absoluta.

Sigamos o paralelismo. Eis os tempos apostólicos, que eu estenderei, pois isso convém tanto ao desígnio que me proponho, desde os tempos apostólicos propriamente ditos, até a época onde o cristianismo subiu ao Capitólio, sob o reino de Constantino, o Grande. Nesse tempo, senhores, a religião cristã, ou seja, a repressão religiosa interior, estava em seu apogeu; mas, apesar disso, aconteceu o que acontece em todas as sociedades compostas de homens; começou a se desenvolver um germe, algo como um germe de licença e de liberdade religiosa. Pois bem, senhores, observem o paralelismo: a esse princípio de contração no termômetro religioso corresponde um princípio de ascensão no termômetro político. Não há ainda governo, o governo ainda não é necessário; mas já é preciso um germe de governo. Pelo fato, na sociedade cristã de então, não havia verdadeiros magistrados, mas havia juízes árbitros e amigáveis compositores, que são o germe do governo. Havia realmente somente isso; os cristãos dos tempos apostólicos não tinham procedimentos e nem se dirigiam aos tribunais: suas contestações eram julgadas por árbitros. Observem, senhores, como o governo cresce com a corrupção.

Chegam os tempos feudais. Nesta época, a religião ainda está em seu apogeu, mas até certo ponto viciada pelas paixões humanas. O que acontece então no mundo político? Que um governo real e efetivo já seja necessário, mas que, contudo, basta o mais fraco. Em consequência, a monarquia feudal se estabelece, a mais fraca de todas as monarquias.

Sigam sempre o paralelismo: Eis o século dezesseis. Então, com a grande reforma luterana, com esse grande escândalo político e social, ao mesmo tempo em que religioso, com esse ato de emancipação intelectual e moral dos povos, coincidem as seguintes instituições. Em primeiro lugar, no mesmo instante, monarquias feudais se tornam absolutas. Vocês acreditam, senhores, que uma monarquia, que um governo, não podem ser mais absolutos. Pois bem, era preciso que o termômetro da repressão política subisse ainda mais, porque o termômetro religioso continuava a cair: e o termômetro político subiu mais alto. O que se fez de novo? Os exércitos permanentes. E vocês sabem o que são os exércitos permanentes? Para saber isso, basta saber o que é um soldado: um soldado é um escravo de uniforme. Assim, portanto, vocês sabem que, quando a repressão religiosa baixa, a repressão política sobe, e ela sobre até ao absolutismo, e mesmo o mais alto. Não bastava aos governos ser absolutos; eles demandaram e obtiveram o privilégio de ter ao serviço de seu absolutismo um milhão de braços.

Mas isso não foi tudo: foi necessário que o termômetro político continuasse a subir, porque o termômetro religioso continuava a descer; ele subiu ainda mais. Que nova instituição foi então criada? Os governos disseram: temos um milhão de braços, e isso não nos basta; precisamos de algo mais, precisamos de um milhão de olhos: e eles tiveram a polícia. Esse não foi o último progresso: o termômetro político e a repressão política deveriam subir ainda mais, porque, apesar de tudo, o termômetro religioso ainda caia; eles subiram. Não foi suficiente para os governos ter um milhão de braços, ter um milhão de olhos; eles queriam ter um milhão de ouvidos: e eles tiveram a centralização administrativa, pela qual todas as reclamações, todas as queixas, vinham acabar no governo.

Pois bem, senhores, isso não bastou; o termômetro religioso baixando sempre, seria preciso que o termômetro político subisse mais alto. E ele subiu. Os governos disseram: para reprimir, não temos suficiente um milhão de braços, um milhão de olhos, um milhão de ouvidos, precisamos de mais ainda; precisamos do privilégio de estarmos ao mesmo tempo presentes em todos os pontos de nosso império. E eles obtiveram esse privilégio: o telegrama foi inventado.

Tal era, senhores, o estado da Europa e do mundo quando o primeiro bramido da última revolução veio nos anunciar de que não há ainda despotismo suficiente sobre a terra, porque o termômetro religioso permanece abaixo de zero. E agora, de duas, uma...

Eu prometi falar hoje francamente, e manterei minha palavra.

Pois bem, de duas, uma: ou a reação religiosa vem, ou ela não vem. Se há reação religiosa, vocês verão logo como, na medida em que o termômetro religioso subir, o termômetro político começará a cair naturalmente, espontaneamente, sem esforço algum, nem dos povos nem dos governos nem dos homens, até que ele marque o dia temperado da liberdade dos povos. Mas se, ao contrário, e isso é grave; pois bem, eu digo que, se o termômetro religioso continuar a baixar, não vejo mais até onde iremos. Não vejo isso, senhores, e não posso pensar nisso sem terror. Considerem as analogias que eu vos expus, e pensem nesta questão: se nenhum governo era necessário quando a repressão religiosa estava em seu apogeu, agora que a repressão religiosa não existe mais, que governo bastará para reprimir? Todos os despotismos não serão impotentes?

Senhores, não coloquei o dedo sobre a ferida? Sim! Tal é a questão para a Espanha, para a Europa, para a humanidade, para o mundo.

Observem uma coisa, senhores. No mundo antigo a tirania foi feroz e implacável; e, no entanto, essa tirania era materialmente limitada, todos os Estados eram pequenos e as relações nacionais eram impossíveis de todo ponto; por consequência, na antiguidade, não pôde haver tirania em uma grande escala, senão a de Roma. Mas hoje, quanto as coisas mudaram! As vias estão preparadas para uma tirania gigantesca, colossal, universal, imensa; tudo está preparado para isso. Observem bem, já não há mais resistências nem morais nem materiais. Não há mais resistências materiais: os barcos a vapor e as estradas de ferro suprimiram as fronteiras, e o telegrafo elétrico suprimiu as distâncias. Não há mais resistências morais: todos os espíritos estão divididos, todos os patriotismos morreram. Digam-me, pois, se eu tenho razão ou não em me preocupar com o futuro próximo do mundo; digam-me se, tratando essa questão, não trato da verdadeira questão.

Uma única coisa pode mudar a catástrofe, uma única: não a evitaremos dando mais liberdade, mais garantias, novas constituições; nós a evitaremos se trabalharmos, cada um segundo suas forças, para provocar uma reação salutar, uma reação religiosa. Ora, senhores, essa reação é possível? Sim. Mas é provável? Respondo com a mais profunda tristeza: não creio que isso seja provável. Eu vi, eu conheci muitos homens que, após se afastarem da fé, voltaram para ela; infelizmente nunca vi povo que tenha voltado à fé depois de vê-la perdida.

Se tivesse me restado alguma esperança, os últimos acontecimentos de Roma a teriam destruído. E aqui eu vou dizer duas palavras sobre essa questão que o senhor Cortina também tratou.

Não há expressão para qualificar os acontecimentos de Roma. Como os senhores os chamariam? Deploráveis? Todos aqueles que eu citei também são; os acontecimentos de Roma são mais do que isso. Os senhores os chamariam de horríveis? Eles estão, senhores, acima mesmo do horror.

Havia em Roma - e não existe mais - sobre o trono mais eminente, o homem mais justo, o mais evangélico da terra. O que Roma fez desse homem justo, desse homem evangélico? O que ela fez, essa cidade onde reinaram os heróis, os Césares e os Pontífices? Ela trocou o trono dos pontífices pelo trono dos demagogos. Rebelde a Deus, ela caiu sob a idolatria do punhal. Eis o que ela fez. O punhal, senhores, o punhal demagógico, o punhal sujo de sangue, eis hoje o ídolo de Roma. Eis o ídolo que derrubou Pio IX! Eis o ídolo que bandos de caraíbas prometem pelas ruas! Eu disse caraíbas? Disse errado: os caraíbas são ferozes, eles não são ingratos!

Resolvi, senhores, falar francamente, e falarei. Digo que é necessário que o rei de Roma retorne para Roma, ou que em Roma, por mais que desagrade ao senhor Cortina, não fique pedra sobre pedra.

O mundo católico não pode consentir, e ele não consentirá, com a destruição virtual do cristianismo somente por uma cidade, entregue à uma loucura frenética. A Europa civilizada não pode consentir, e ela não consentirá, que se arruíne o edifício da civilização européia, derrubando sua cúpula. O mundo não pode consentir, e ele não consentirá, que em Roma, a cidade santa, se realize  o advento ao trono de uma nova e estranha dinastia, a dinastia do crime. E que não digam, senhores, como disse o senhor Cortina, como dizem, em seus jornais e em seus discursos, os deputados que se sentam sobre esses bandos (da esquerda), que há aí duas questões, uma temporal, a outra espiritual, e que a questão foi entre o príncipe temporal e seu povo; que o pontífice ainda existe. Duas palavras sobre esta questão, duas palavras que explicarão tudo.

Sem dúvida alguma, o poder espiritual é o principal do papa: o poder temporal, o acessório; mas esse acessório é necessário. O mundo católico tem o direito de exigir que o oráculo infalível de seus dogmas seja livre e independente; e o mundo católico só pode ter a certeza de que seu chefe espiritual é independente e livre quando esse líder é soberano; só o soberano não depende de ninguém. Por consequência, senhores, a questão de soberania, que é por toda parte uma questão política, é, ademais, em Roma, uma questão religiosa; o povo, que pode ser soberano por toda parte, não pode sê-lo em Roma; as assembleias constituintes que podem existir em todos os demais países, não podem existir em Roma; em Roma, não pode haver outro poder constituinte além do poder constituído. Roma, senhores, e os Estados pontifícios não pertencem a Roma; eles não pertencem também ao papa; eles pertencem ao mundo católico. O mundo católico os reconheceu ao papa, para que ele fosse livre e independente, e o próprio papa não pode se despojar desta soberania, desta independência.

Termino, senhores, pois o Congresso deve estar muito cansado, e eu também. Francamente, devo declarar que não posso me ouvir mais, porque estou indisposto, e foi um prodígio que eu tenha podido falar; mas disse o principal do que eu tinha a dizer.

Após ter tratado as três questões exteriores que o senhor Cortina tratou, chego, para concluir, à questão interior. Desde o princípio do mundo até esse dia, discute-se a questão de saber qual sistema vale mais, para evitar as revoluções e as agitações, o das concessões ou o da resistência; mas o que era uma questão desde o primeiro ano da criação até o ano da graça de 1848, não é mais hoje, ela está resolvida; e se meus sofrimentos me permitissem, eu lhes mostraria isso fazendo uma revisão de todos os acontecimentos desde fevereiro até esse dia. Contentar-me-ei em recordar dois. Na França, - e esse será meu primeiro exemplo, - a monarquia, que não resistiu, foi vencida pela república, que mal tinha forças para se mover; e a república, que mal tinha forças para se mover, suplantou o socialismo, porque ela resistiu.

Em Roma, - e esse é o outro exemplo que quero citar, - o que aconteceu? Vocês não tinham aqui vosso modelo? Digam-me, se vocês tivessem sido pintores e se vocês tivessem desejado pintar o modelo de um rei, vocês não teriam tomado os traços de Pio IX? Pio IX quis ser, como seu divino mestre, magnífico e generoso; ele encontrou proscritos, e lhes estendeu a mão e os devolveu à sua pátria; ele encontrou reformistas, e ele lhes concedeu reformas; ele encontrou liberais, e ele lhes deu a liberdade: cada uma de suas palavras foi um benefício. E agora, respondam-me, senhores, suas ignomínias não igualam seus benefícios, se elas não os ultrapassam? Diante desse resultado, senhores, a questão do sistema de concessões não é uma questão resolvida?

Tratava-se aqui de escolher entre a liberdade e a ditadura, e não haveria discordância. Quem, com efeito, podendo possuir a liberdade, iria se prosternar diante da ditadura? Mas tal não é a questão. De fato, a liberdade não existe na Europa: os governos constitucionais que a representavam nesses últimos tempos são hoje, quase por toda parte, apenas vigas sem solidez, esqueletos privados de vida. Recordem-se, senhores, da Roma dos imperadores. Nessa Roma existem ainda todas as instituições republicanas, os ditadores onipotentes, os tribunos invioláveis, as famílias senatoriais, os cônsules eminentes: tudo isso existe; só falta uma coisa, e há somente uma em demasia: o que há em demasia, é um homem; o que falta, é a república.

Pois bem, senhores, tais são, em quase toda a Europa, os governos constitucionais; e, sem pensar nisso e sem saber, o senhor Cortina nos demonstrou isso outro dia. O senhor Cortina não nos dizia que ele prefere, e com razão, o que diz a história ao que dizem as teorias? Eu apelo à história. O que são, senhores, esses governos com suas maiorias legislativas, sempre vencidas pelas minorias turbulentas; com seus ministros responsáveis, que não respondem nada; com seus reis invioláveis, sempre violados? Assim, senhores, a questão, como eu disse, não é entre a liberdade e a ditadura; se ela estivesse entre a liberdade e a ditadura, eu votaria pela liberdade, como todos vocês que ocupam esse recinto. A questão, ei-la, e eu concluo: trata-se de escolher entre a ditadura da insurreição e a ditadura do governo; nessa alternativa, eu escolhi a ditadura do governo, como menos pesada e menos vergonhosa.

Trata-se de escolher entre a ditadura que vem de baixo e a ditadura que vem do alto: eu escolhi a que vem do alto, porque ela vem de regiões mais puras e mais serenas. Trata-se de escolher, enfim, entre a ditadura do punhal e a ditadura do sabre: eu escolhi a ditadura do sabre, porque ela é mais nobre. Votando, senhores, nos dividiremos sobre essa questão, e, ao nos dividirmos, seremos consequentes conosco mesmo. Vocês, senhores (da esquerda), vocês votam, como sempre, pelo mais popular, e nós, senhores (da direita), como sempre, pelo mais salutar.


(*) Donoso-Cortés, Juan Francisco Maria (1809-1853) Marquês de Valdegamas. Pensador contra-revolucionário espanhol. Formado em direito e diplomata. Começa como liberal, apoiante da regente Maria Cristina contra o carlismo, como se expressa nas primeiras obras, ainda marcadas pelos chamados doctrinaires. Secretário da regente quando esta se encontra refugiada em Paris (1840-1843). Muda de posição a partir de 1849, quando era embaixador em Berlim (desde 1848). Volta para Paris a partir de 1850, onde publica o Discurso sobre Europa (1850) e, sobretudo o Ensayo sobre el Catolicismo, el Liberalismo y el Socialismo (1851) que o torna célebre. Aqui vê o socialismo como uma espécie de Anticristo, assumindo uma visão apocalíptica, profetizando a ascensão da Prússia, a decadência da França e a emergência do eslavismo. Propõe como solução o regresso à autoridade secular e supra-estatal do Papa. Desdenha do liberalismo dos burgueses, definidos como uma classe discutidora. Considerado o fundador do conservadorismo antidemocrático e antiliberal, contrariamente à perspectiva de Burke e dos conservadores britânicos. Defende a infalibilidade legal do soberano. Influencia os modelos de Napoleão III, do boulangismo e de Maurras. Carl Schmitt vai considerá-lo um sucessor espiritual dos grandes inquisidores católicos. A partir dele, eis que, na Europa latina, o conservadorismo perdeu as raízes que o ligavam a certo regeneracionismo liberal e à moderação cartista, assumindo uma postura contra-revolucionária, adversa do tradicionalismo consensualista, pelo que se retomam as sendas providencialistas de Bossuet, Maistre e Bonald.

·Memoria sobre la Situacion Actual de la Monarquia - 1832.
·Lecciones de Derecho Político - 1836-1837.
·Principios Constitucionales - 1837.
·Discurso sobre la Dictadura - 1849.
·Discurso sobre Europa - 1850.
·Essai sur le Catholicisme, le Libéralisme et le Socialisme - Paris, versão original em francês, Paris, 1851 (cfr. 3ª ed., Ensayo sobre el Catolicismo, el Liberalismo y el Socialismo Madrid, Ediciones Espasa-Calpe, 1973).
·Obras Completas - Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1946, em dois tomos.

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