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terça-feira, 3 de maio de 2016

A Escada do Claustro - a busca de Deus!

A Escada do claustro 



Carta de Dom Guigo[1], Cartuxo, ao Ir. Gervásio, sobre a vida contemplativa


I - Ao seu dileto irmão Gervásio, o Ir. Guigo: o Senhor seja o seu deleite.

Amar-te, irmão, é para mim uma dívida, pois foste tu que, primeiro, começaste a me amar. E sou obrigado a te responder, porque, anterior, tua carta me convida a escrever-te.

Proponho-me, assim, a te transmitir certas coisas que pensei sobre o exercício espiritual dos monges, a fim de que possas julgar e corrigir meus pensamentos a propósito de um assunto que tu melhor conheces por experiência, do que eu pela reflexão.

É justo que eu te ofereça, em primeira mão, as primícias do meu trabalho. Pois convém que colhas os primeiros frutos da recente plantação que, em louvável furto, subtraíste à servidão do Faraó e à mole servidão, e colocaste no exército em ordem de batalha, enxertando sabiamente na oliveira o ramo habilmente cortado da oliveira selvagem (cf. 81144,2; Ex 13,14; Ct 6,3.9 e Rm 11,17.24).


II - Os quatro degraus 


Um dia, ocupado no trabalho manual, comecei a pensar no exercício espiritual do homem. E eis que, de repente, enquanto refletia, se apresentaram a meu espírito quatro degraus espirituais: a leitura, a meditação, a oração, a contemplação.

Esta é a escada dos monges, que os eleva da terra ao céu. Embora dividida em poucos degraus, ela é de imenso e incrível comprimento, com a ponta inferior apoiada na terra, enquanto a superior penetra as nuvens e perscruta os segredos do Céu (cf. Gn 28,12).

Estes degraus, assim como são diversos em nome e em número, também se distinguem pela ordem e o valor.

Se alguém examina diligentemente suas propriedades e funções, o que produz cada um deles para nós, e como diferem e se hierarquizam entre si, achará pequeno e fácil por sua utilidade e doçura todo o trabalho e esforço que lhes dedicar.

A leitura é o estudo assíduo das Escrituras, feito com aplicação do espírito.

A meditação é uma ação deliberada da mente, a investigar com a ajuda da própria razão o conhecimento duma verdade oculta.

A oração é uma religiosa aplicação do coração a Deus, para afastar os males ou obter o bem.  

A contemplação é uma certa elevação da alma em Deus, suspensa acima dela mesma, e degustando as alegrias da eterna doçura.

Notada, assim, a descrição dos quatro degraus, resta-nos ver a função de cada um em relação a nós.



III - Qual a função de cada um dos citados degraus 

A leitura procura a doçura da vida bem-aventurada, a meditação a encontra, a oração a pede, a contemplação a experimenta.

Por isso, o Senhor mesmo diz: Buscai e encontrareis, chamai e se vos abrirá. Buscai lendo e encontrareis meditando, chamai orando e abrisse-vos contemplando. [2]

A leitura, de certo modo, leva à boca o alimento sólido, a meditação o mastiga e tritura, a oração consegue o sabor, a contemplação é a própria doçura que regala e refaz.

A leitura está na casca, a meditação na substância, a oração na petição do desejo, a contemplação no gozo da doçura obtida. Para que se possa ver isto de modo mais expressivo, suponhamos um exemplo entre muitos.


IV - A função da leitura 

À leitura, eu escuto: Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus (Mt 5,8).

Eis uma palavra curta, mas cheia de suaves sentidos para o repasto da alma. Ela oferece como que um cacho de uva. A alma, depois de o examinar com cuidado, diz em si mesma: "Pode haver aqui algum bem, voltarei ao meu coração e tentarei, se possível, entender e encontrar esta pureza. Pois é preciosa e desejável tal coisa, cujos possuidores são ditos bem-aventurados, e à qual se promete a visão de Deus, que é a vida eterna, e que é louvada por tantos testemunhos da Sagrada Escritura".

Desejosa de explicar mais plenamente a si mesma esta coisa, começa a mastigar e a triturar essa uva, e a põe no lagar, enquanto excita a razão a procurar o que é e como pode ser adquirida tão preciosa pureza.


V - A função da meditação 

Começa, então, diligente meditação. Ela não se detém no exterior, não para na superfície, apoia o pé mais profundamente, penetra no interior, perscruta cada aspecto.

Considera, atenta, que não se disse: Bem-aventurados os puros de corpo, mas, sim, "os puros de coração". Pois não basta ter as mãos inocentes de más obras, se não estivermos, no espírito, purificados de pensamentos depravados. Isto o profeta confirma por sua autoridade, ao dizer: Quem subirá o monte do Senhor? Ou quem estará de pé no seu santuário? Aquele que for inocente nas mãos e de coração puro (Sl 24,3-4).

Depois, ela considera quanto o próprio profeta deseja essa pureza, ao orar: Cria em mim, Ó Deus, um coração puro (Sl 51,12) e ainda: Se olhei a iniquidade no meu coração, o Senhor não me ouvirá (Sl 66,18).

A meditação pensa em como era o bem-aventurado Jó solícito por essa guarda, pois dizia: Fiz um pacto com os meus olhos para não pensar em nenhuma virgem (Jó 31,1). Eis como se dominava o santo homem, que fechava seus olhos para não ver o que é vão, evitando olhar imprudentemente o que depois desejaria contra a sua vontade.

Depois de ter refletido sobre esses pontos e outros semelhantes no que toca à pureza do coração, a meditação começa a pensar no prêmio:

Como seria glorioso e deleitável ver a face desejada do Senhor, mais bela do que a de todos os homens (Sl 45,3), não mais abjeta e vil (cf. Is 53,2), não mais tendo a aparência com que o revestiu sua mãe, mas envergando a estola da imortalidade, e coroado com o diadema que seu Pai lhe deu no dia da ressurreição e da glória, o dia que o Senhor fez (Sl 118,24).

Ela concebe que, nesta visão, haverá aquela saciedade esperada pelo profeta, ao dizer: Serei saciado quando aparecer a tua glória (Sl 17,15).

Vês quanto licor emanou daquela pequena uva, quanto fogo nasceu duma centelha, quanto se alargou na bigorna da meditação, este pequeno pedaço de metal: Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus!

Mas, quanto mais poderia alargar-se, se alguém experiente viesse ajudar!

Sinto como "é fundo o poço", mas não passo ainda de um noviço rude, que mal cheguei a tirar poucas gotas.

Inflamada por esses fachos, incitada por tais desejos, a alma começa a pressentir, quebrado o alabastro, a suavidade do unguento. Não é ainda o gosto, mas é já o cheiro.

Por esse, a alma compreende quão suave seria experimentar essa pureza, cuja meditação a faz saber quanta alegria ela dá. Mas que fará ela?

Ardendo no desejo de possuí-la, não encontra em si como a pode ter.

E quanto mais a procura, mais tem sede.

Enquanto se dá à meditação, sua dor aumenta, porque ainda não sente a doçura que a meditação mostra existir na pureza de coração, mas sem a dar.

Porque não cabe a quem lê nem a quem medita sentir tal doçura, se não recebe do alto (10 19,11) esse dom.  

Ler e meditar é comum tanto aos bons quanto aos maus, e os próprios filósofos pagãos encontraram, pelo exercício da razão, em que consiste, em suma, o verdadeiro bem.

Mas, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus (Rm 1,21) e, presumindo de suas forças, diziam: Venceremos graças à nossa língua, nossos lábios são nossos (Sl 12,5). Assim, não mereceram receber o que tinham podido ver. Perderam-se em seus pensamentos (Rm 1,21), e a sua sabedoria foi devorada (Sl 107,27)

A sabedoria deles tinha as suas fontes no estudo das ciências humanas, e não no Espírito de sabedoria, que é o único a dar a verdadeira sabedoria, isto é, a ciência saborosa que alegra e nutre, com inestimável sabor, a alma que a possui. É dela que foi escrito: A sabedoria não entrará na alma perversa (Sb 1,4).

Esta procede só de Deus. E como o Senhor deu a muitos a missão de batizar, mas guardou só para si o poder e a autoridade de perdoar os pecados pelo batismo, o que levou João a dizer, por antonomásia e de modo preciso: É ele que batiza, assim também podemos dizer: É ele que dá sabor à sabedoria, e faz saborosa a ciência da alma.

A palavra é dada a todos; a sabedoria do espírito, que o Senhor distribui a quem quer e quando quer (cf. 1 Cor 12,11), a poucos é dada.


VI - A função da oração 

Vendo, pois, a alma que não pode por si mesma atingir a desejada doçura de conhecimento e da experiência, e que quanto mais se aproxima do fundo do coração (Sl 64,7), tanto mais distante é Deus (cf. Sl 64,8), ela se humilha e se refugia na oração. E diz:  
Senhor, que não és contemplado senão pelos corações puros, eu procuro, pela leitura e pela meditação, qual é, e como pode ser adquirida a verdadeira doçura do coração, a fim de por ela conhecer-te, ao menos um pouco.
Eu buscava, Senhor, a tua face, a tua face Senhor, eu buscava (cf. Sl 27,8); meditei muito tempo em meu coração, e na minha meditação cresceu um fogo (cf. Sl 39,4) e o desejo de te conhecer ainda mais.
Quando me repartes o pão da Sagrada Escritura, na fração do pão te tomas. conhecido por mim (cf. Lc 24,35). E quanto mais te conheço, tanto mais desejo conhecer-te, não já na casca da leitura, mas no sabor da experiência.
Isto não peço, Senhor, por meus méritos, mas pela tua misericórdia.
Confesso-me indigna pecadora, mas até os cãezinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos (Mt 15,27).
Dá-me, pois, Senhor, o penhor da herança futura, uma gota ao menos da chuva celeste, para arrefecer a minha sede, pois ardo de amor (cf. Ct 2,5).


VII - Efeitos da contemplação 

Com essas e outras palavras, a alma inflama o seu desejo, mostra, assim, o que nela se fez, por arrebatamentos invoca o seu Esposo.

E o Senhor, cujos olhos são fixos nos justos e cujos ouvidos estão não só atentos às suas preces (cf. Sl 34, 16), mas presentes nelas, não espera a prece acabar. Pois, interrompendo o curso da oração, apressa-se a vir à alma que o deseja, banhado de orvalho da doçura celeste, ungido dos melhores perfumes.

Ele recria a alma fatigada, nutre a que tem fome, sacia a sua aridez, lhe faz esquecer tudo o que é terrestre, vivifica-a, mortificando-a por um admirável esquecimento de si mesma, e embriagando-a, sóbria a torna.

Como em certas funções carnais a alma se deixa a tal ponto vencer pela concupiscência, que perde o próprio uso da razão e o homem se toma todo carnal, assim, ao contrário, nessa contemplação superior, os movimentos carnais são de tal modo vencidos e absorvidos pela alma, que a carne não contradiz em nada ao espírito, e o homem se torna quase todo espiritual.


VIII - Sinais da vinda da graça 

Mas, Senhor, como descobrir quando realizas tudo isso, e qual é o sinal da tua vinda?

São, por acaso, os suspiros e as lágrimas os mensageiros e testemunhas da consolação e da alegria? Se assim é, estamos em presença duma nova antinomia [contradição] e de uma significação inusitada.

Qual é, com efeito, a relação entre consolação e suspiros, alegria e lágrimas? Se é que se podem chamar lágrimas estas lágrimas, e não antes, abundância transbordante do orvalho interior derramado do céu, indício da purificação interior, limpeza do homem exterior.

No batismo de crianças, a purificação do homem interior é figurada e significada pela ablução exterior. Aqui, ao contrário, a purificação exterior procede da ablução interior.

Ó felizes lágrimas, pelas quais são lavadas as manchas interiores, e as labaredas do pecado se apagam! Bem-aventurados os que assim chorais, porque rireis (cf. Mt 5,5).

Nessas lágrimas reconhece, ó alma, o teu Esposo, abraça o Desejado, embriaga-te em torrente de delícias, suga do seio da Consolação o leite e o mel. Estes são os maravilhosos presentinhos e consolos que teu Esposo te distribui e concede, isto é, tuas lágrimas e suspiros.

Ele te trouxe nessas lágrimas a poção sob medida, o pão de dia e de noite, aquele pão que confirma o coração do homem e é mais doce do que o favo de mel.

Ó Senhor Jesus, se são tão doces essas lágrimas que brotam da tua lembrança e do teu desejo, quão doce haverá de ser o gozo experimentado em tua visão manifesta!

Se é tão doce chorar por ti, quanto mais doce será gozar de ti?


Mas, por que exprimimos de público tais secretos colóquios? Por que me esforço por revelar em termos comuns essas inefáveis ternuras? Os que não as experimentaram, não as compreenderão. Eles as leriam mais claramente no livro da experiência, onde a unção divina ensina por si mesma (cf. l Jo 2,27).

De qualquer modo, porém, a letra exterior não aproveita ao leitor, pois a leitura da letra exterior é de pouco sabor, a não ser que uma explicação tire do coração o sentido interior.


IX - A graça se esconde 

Ó minha alma, prolonguei por muito tempo este discurso. Pois era bom para nós estar ali, e contemplar com Pedro e João a glória do Esposo, e ficar largo tempo com ele, se ele quisesse fazer ali não duas, nem três tendas (cf. Mt 17,4), mas uma só em que estaríamos juntos, e juntos nos deleitássemos.

Mas eis que já diz o Esposo, Deixa-me partir, pois já sobe a aurora (Gn 32,26), já recebeste a luz da graça e a visita que desejavas.


Dada, pois, a bênção e mortificado o nervo da coxa [com o cilício], e mudado o nome de Jacó para Israel (cf. Gn 32,25-32), o Esposo longamente desejado se retira por um pouco de tempo, depressa escapa.

Ele se arreda, tanto em relação à visita de que falei, quanto à doçura da contemplação. Mas permanece sempre presente, quanto à direção, à graça, à união.


X - Como a ocultação da graça coopera para o nosso bem 

Mas não temas, esposa, não desespere, não penses que és desprezada, se o Esposo te oculta por algum tempo a sua face. Tudo isso concorre ao teu bem (cf. Rm 8,28), e ganhas com a partida e com a vinda.

Ele veio para ti, e é também para ti que ele se afasta. Vem para a consolação, afasta-se por cautela, a fim de que a grandeza da consolação não te ensoberbeça, evitando que a presença contínua do Esposo, te leve a desprezar as companheiras e atribuas a consolação não à graça, mas à natureza.

Esta graça, o Esposo a concede quando quer e a quem ele quer, e não se possui como direito hereditário. É conhecido o provérbio que diz que a familiaridade excessiva gera o desprezo. Ele se afasta, pois, para não ser desprezado, se é demais assíduo, e para que, ausente, seja mais desejado, e desejado seja procurado com maior ardor, e longamente querido, seja, enfim, achado com maior alegria.

Além disso, se nunca faltasse essa consolação - que, em relação à futura glória a revelar-se em nós (cf. Rm 8,18) é enigmática e parcial - talvez julgássemos que temos aqui cidadania permanente e procuraríamos menos a futura.

Assim, para não tomarmos o exílio por pátria, o penhor pelo pleno valor, é que o Esposo vem de tempo em tempo, ora trazendo consolação, ora a substituindo pelo leito de doente (cf. 8141,4).

Ele permite que saboreemos por um pouco de tempo a sua doçura, mas antes que ela seja plenamente sentida, ele se esvai. Assim, voejando sobre nós de asas abertas, ele nos provoca a voar (cf. Dt 32,11), como se dissesse: Experimentastes um pouco da minha suavidade e doçura, mas, se quereis saciar-vos plenamente, correi atrás de mim ao odor dos meus perfumes (cf. Ct 1,3), levantai os corações para o alto onde estou à direita do Pai. Aí me vereis, não mais em figura e em enigma, mas face a face, e então, o vosso coração gozará plenamente, e o vosso gozo ninguém vos tirará (Jo 16,22).


XI - Com que cuidado a alma se deve comportar depois da visita da graça 

Mas, acautela-te, ó esposa. Quando o Esposo se ausenta, não vai para longe. Se não o vês, ele sempre te vê. Ele é cheio de olhos à frente e atrás (cf. Ez 1,18). Jamais podes fugir da sua vista. Tem junto de ti seus enviados, espíritos que são como que mensageiros muito sagazes, que vejam como te conduzes na ausência do Esposo, e te acusem diante dele se descobrirem em ti algum sinal de impureza e de leviandade.

Este Esposo é cheio de zelo. Se, acaso, acolheres um outro amante, ou te empenhas em agradar mais a um outro, ele logo se afasta de ti e se une a outras virgens fiéis. 

É delicado esse Esposo, é nobre, é o mais belo dos filhos dos homens (Sl 45,3), e assim, não quer ter uma esposa senão perfeitamente bela. Se ele vir em ti uma mancha, ou uma ruga, logo desvia o seu olhar.

Ele não suporta nenhuma impureza. Sê, pois, casta; sê reservada e humilde, para merecer a visita frequente do teu Esposo.

Temo que este discurso se tenha prolongado demais, mas a matéria abundante me obrigou a isto, assim como a sua doçura. Não prolonguei por minha espontânea vontade, foi o seu encanto que me arrastou sem sentir.


XII - Recapitulação do que foi dito 

Para que se possa ver melhor em conjunto o que foi dito em forma mais desenvolvida, vamos recapitulá-lo em resumo.

Assim como foi notado nos exemplos propostos, podes ver como os ditos degraus se ligam uns aos outros entre si. E como um precede a outro, tanto no tempo, como na casualidade.

Qual primeiro fundamento, vem a leitura. Ela fornece a matéria, e nos leva à meditação.

A meditação, por sua vez, perscruta com maior diligência o que se deve desejar, e, como que cavando, acha e mostra o tesouro. Mas, como não pode por si mesma obtê-lo, leva-nos à oração.

A oração, elevando-se a Deus com todas as suas forças, obtém o tesouro desejável, a suavidade da contemplação. 

Sobrevindo a contemplação, ela recompensa o trabalho dos três degraus referidos, embriagando a alma sedenta com o orvalho da doçura celeste.

A leitura é feita segundo um exercício mais exterior; a meditação, segundo uma inteligência mais interior; a oração, segundo o desejo; a contemplação passa acima de todo sentido.

O primeiro degrau é dos principiantes; o segundo, dos que progridem; o terceiro, dos fervorosos; o quarto, dos bem-aventurados.


XIII - Como os mesmos degraus são ligados uns aos outros 

Estes degraus são de tal modo ligados, e de tal forma servem uns aos outros, que os precedentes pouco ou nada aproveitam sem os seguintes, e os seguintes, por sua vez, nunca ou só raramente podem ser adquiridos sem os precedentes.

Que adianta, com efeito, ocupar o tempo em contínua leitura, percorrer os feitos e os escritos dos santos, se não esprememos o seu suco, mastigando e ruminando, e não o passamos até ao mais íntimo do coração, engolindo, a fim de, por eles, considerarmos diligentemente o nosso estado, e cuidarmos de praticar as obras daqueles cujos feitos queremos ler frequentemente?

Mas, como haveremos de cogitar estas coisas, ou como poderemos evitar que, meditando coisas erradas e vãs, se transgridam os limites constituídos pelos santos Pais, a não ser que sejamos antes instruídos a tal respeito pela leitura ou pelo ensino?

O ensino, de certo modo, se relaciona com a leitura, o que nos leva habitualmente a dizer que lemos para nós mesmos ou para os outros, mas também o que ouvimos dos mestres.

Igualmente, que vale ao homem ver pela meditação o que deve praticar, se não pode fazê-lo senão pelo auxilio da oração e pela graça de Deus? Porque todo dom excelente e todo dom perfeito vem de cima e desce do Pai das luzes (Tg 1,17).

Sem ele, nada podemos, ao passo que Ele faz em nós as obras, mas não sem nós. Pois somos cooperadores de Deus (1Cor 3,9), como diz o Apóstolo. Deus quer que lhe supliquemos, quer que abramos, à graça que vem e bate à porta, o seio da nossa vontade, e lhe demos o nosso consentimento.

O Senhor exigia esse consentimento da Samaritana, quando dizia: Chama o teu marido (Jo 4,16), como se dissesse: Quero te infundir a graça; aplica o teu livre arbítrio.

Dela exigia a oração: Se soubesses o dom de Deus, e quem é que te diz: Dá-me de beber, serias tu que lhe terias pedido a água viva (ib.1 O).

Inflamada, pois, pelo desejo, volta-se para a oração, dizendo: Senhor, dá-me desta água, a fim de que eu não tenha mais sede.  

Assim, portanto, a palavra do Senhor que ouvira e depois meditara, a incitou à oração.

Como haveria de tomar-se solícita na súplica, se antes, a meditação não a tivesse feito arder? Ou de que lhe serviria a precedente meditação, se a oração seguinte não obtivesse o que aquela lhe mostrara?

Para que seja, pois, frutuosa a meditação, é preciso que se lhe siga o fervor da oração, da qual é como um efeito a doçura da contemplação.


XIV - Consequências do que foi dito 

De tudo isso, podemos concluir que a leitura sem a meditação é árida, a meditação sem a leitura é errônea, a oração sem meditação é morna, a meditação sem oração é infrutífera.

A oração com fervor obtém a contemplação, mas a aquisição da contemplação é rara ou miraculosa sem a oração. 

Deus, com efeito, cujo poder não tem limites, e cuja misericórdia se estende a todas as suas obras, às vezes suscita das pedras filhos de Abraão (cf. Mt 3,9). É o que se dá quando força corações duros e rebeldes a querer. Ele é como o pródigo que, segundo se costuma dizer, "dá o boi com os chifres", quando vem sem ser chamado e se envolve sem ser procurado. 

Embora tenha isso acontecido a alguns, como a Paulo e alguns outros, não devemos, no entanto, tentar a Deus presumindo tais dons, mas fazer o que nos compete, isto é, ler e meditar a lei de Deus, e rogar-lhe que ajude a nossa fraqueza, e veja a nossa imperfeição. Ele próprio nos ensina a fazer assim, quando diz: Pedi e recebereis, procurai e achareis, batei e abrir-se-vos-á (Mt 7,7). Pois agora o reino dos Céus sofre violência, e são os violentos que dele se apoderam (Mt 11,12).

Eis, pois, que as distinções acima assinaladas permitem perceber as propriedades dos vários degraus, como se concatenam entre si, o que produz em nós cada um deles.

Feliz o homem que, tendo o espírito vazio de outros cuidados, deseja sempre passar e repassar por esses degraus. É aquele que, vendendo tudo que possui, compra o campo em que está escondido o tesouro desejável, que é recolher-se e ver como é suave o Senhor (cf. Sl 34,9).

Feliz, sim, aquele que, exercitado no primeiro degrau, bem atento no segundo, fervente no terceiro, alçado acima de si no quarto, se eleva cada vez mais forte, por essas subidas, até ver o Deus dos deuses em Sião (Sl 84,8).

Bem-aventurado é aquele, a quem é dado permanecer, ainda que por pouco tempo, nesse último degrau, e que pode dizer: Eis que sinto a graça de Deus, eis que contemplo com Pedro e João a sua glória no monte, eis que gozo com Jacó os abraços da bela Raquel.

Mas acautele-se ele depois de tal contemplação, para não cair nos abismos por uma queda desordenada, nem voltar, depois de tão grande visita, aos lascivos atos do mundo e às seduções da carne.

Como não pode a fraca ponta da mente humana sustentar mais longamente o esplendor da verdadeira luz, desça suavemente e com ordem algum dos três degraus pelos quais subira, e assim, alternadamente, ora em um ora em outro, demore segundo a moção do livre arbítrio e as circunstâncias de lugar e de tempo. A meu ver, ele estará tanto mais próximo de Deus, quanto mais longe do primeiro degrau. Como é, infelizmente, frágil e miserável a condição humana! 

Vemos, pois, abertamente, com o auxílio da razão e os testemunhos das Escrituras, que a perfeição da vida bem-aventurada está contida nestes quatros degraus, e que o homem espiritual deve estar sempre a exercitar-se neles.

Mas, quem é que guarda esse modo de viver, quem é ele, e nós o louvaremos? (Eclo 31,9). Querer, muitos querem, mas fazer é de poucos.

Queira Deus que sejamos desses poucos.


XV - Quatro causas que nos retraem dos referidos degraus 

São quatro as causas que, o mais das vezes, nos desviam desses degraus: uma necessidade inevitável, a utilidade duma boa ação, a fraqueza humana, a vaidade mundana.

A primeira é desculpável; a segunda é tolerável; a terceira é miserável; a quarta é culpável. E verdadeiramente culpável. A quem, por essa causa [vaidade mundana], é desviado do seu propósito, melhor seria não ter conhecido a graça de Deus, do que retroceder depois de conhecê-la. Que escusa terá do seu pecado? 

Não lhe poderá, acaso, Deus dizer, com razão: Que mais te devia fazer e não fiz? (cf. Is 5,4). Não existias e te criei. Tornaste-te servo do diabo e do pecado, e te redimi. Corrias com os ímpios ao redor do mundo, e te escolhi. Dei-te graça perante meus olhos e queria fazer em ti a minha habitação, e em verdade me desprezaste. Não jogaste para trás somente as minhas palavras, mas a mim mesmo, e andaste em busca das tuas concupiscências.

Mas, ó Deus bom, suave e manso, doce amigo, conselheiro prudente, ajuda forte, como é desumano e temerário aquele que te rejeita, e repele do seu coração um hóspede tão humilde e clemente! 

Ó infeliz e nociva troca, rejeitar o seu Criador e acolher pensamentos maus e prejudiciais, e entregar tão depressa a pensamentos impuros e ao espezinhar dos porcos até mesmo aquela câmara secreta do Espírito Santo, que é o fundo do coração, que pouco antes se dirigia às alegrias celestes!

Ainda estão quentes no coração os vestígios do Esposo, e já ali se intrometem desejos adulterinos.

É inconveniente e indecoroso para ouvidos que acabam de ouvir palavras que não é lícito ao homem falar (cf. 2Cor 12,4), entregar-se tão depressa a fábulas e a ouvir maledicências. E para olhos que acabam de ser batizados pelas lágrimas sagradas, de repente se voltar para ver vaidades. Para a língua que acaba de cantar um doce epitalâmio [Canto ou poema nupcial, em homenagem às bodas], e que tinha reconciliado o Esposo com a esposa por suas palavras inflamadas e persuasivas, e a introduzira no celeiro (cf. Ct 2,4), de novo se converter às conversas torpes, às leviandades, à urdidura de dolos, à maledicência.

Não nos aconteça, Senhor, mas, se acaso, por fraqueza humana, recairmos nisso, não desesperemos, mas de novo recorramos ao Médico clemente que levanta do pó o indigente e ergue o pobre do monturo (Sl 113,7). E Ele, que não quer a morte do pecador, voltará a nos curar e salvar.

Já é tempo de pôr fim a esta carta. Oremos todos ao Senhor que no presente enfraqueça, para nós, os impedimentos que nos retraem da sua contemplação; no futuro, nos liberte inteiramente deles, levando-nos, mediante os referidos degraus, cada vez mais fortes, a vermos o Deus dos deuses em Sião (Sl 84,8). Ali, os eleitos não experimentarão mais gota a gota, nem intermitentemente, a doçura da contemplação. Pois terão, em incessante torrente de gozo, a alegria que ninguém tirará, e a paz imutável, a paz nEle.

E tu, Gervásio, meu irmão, se do alto te for dado um dia ascender ao cume desses degraus, lembra-te de mim e ora por mim, quando for bem para ti.

Assim, o véu puxe o véu (cf. Ex 26,33), e aquele que escuta, diga: Vem! (Ap 22,17).

 
SCALA CLAUSTRALIUM, de Guigo II

Tradução de D. Timóteo A. Anastásio, O.S.B, antigo Abade do Mosteiro de São Bento. Bahia (BRASIL).


Notas:

1. Guigo II (†1188) foi o nono sucessor de São Bruno como prior do deserto de Chartreuse, de 1174 até 1180. Faleceu em 1188.[voltar ao texto]
2. São João da Cruz, nos seus “Ditos de luz e de amor”, no nº 156, reproduz assim este texto de Guigo: “Procurai lendo e encontrareis meditando; chamai orando e abrir-vos-ão contemplando” (Ed.Vozes. Petrópolis,1996, p.108). Desse modo, o santo faz alusão breve aos passos da Lectio Divina monástica. 

Visto em: http://www.chartreux.org/pt/textos/escada-claustro.php.


     
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