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sexta-feira, 23 de agosto de 2013

HUGO DE SÃO VÍTOR: Sobre a Natividade da Virgem Maria

OS MAIS BELOS SERMÕES DE HUGO DE SÃO VÍTOR

Hugo de São Vitor
(1096 - 11 fev. 1141)

SERMONES CENTUM


Prólogo

Irmãos caríssimos, a Escritura nos testemunha que a palavra de Deus é "lâmpada para os nossos passos e luz para os nossos caminhos". Salmo 118, 105.

Devemos, pois, entregar-nos todos ao estudo das Sagradas Escrituras por todos os meios que nos forem possíveis, pela leitura, pela meditação, pela escuta, pelo ensino e pela escrita, e isto principalmente nós, que somos companheiros de claustro, que renunciamos ao tumulto dos negócios e para cá viemos para atender apenas à tranquilidade da contemplação. De sua virtude a bem aventurada Maria, irmã de Marta, nos oferece um exemplo muitíssimo evidente, pois dela, sentada aos pés do Senhor com os ouvidos atentos, bem diversamente de sua irmã muito ocupada com uma diversidade de afazeres, lemos que, em sua sede pelas palavras que lhe dizia, o próprio Senhor foi testemunha de haver escolhido a melhor parte, exemplo louvável e admirável de virtude que muitos desprezam. Entre estes encontramos alguns que em outro tempo foram capazes de compreender a alegria que emana das Escrituras por um entendimento que lhes havia sido dado do Céu; no entanto, agora ouvimos terem caído em uma tal enormidade de vícios e imundície de costumes que as suas almas desgostaram-se da Palavra de Deus a ponto de abominar este alimento espiritual, aproximando-se assim das portas da morte. Estes devem ser considerados hoje mais como estando entre os Egípcios do que entre os Israelitas, e mais entre os cidadãos de Babilônia do que entre os de Jerusalém. Vemos, porém, a outros que, pelo empenho de seu estudo, com o auxílio da graça de Cristo, abandonaram uma vida de depravação e alcançaram tanta bondade na virtude e tão grande honestidade nos costumes que em sua luz podemos conhecer mais claramente ter sido realizado o que estava escrito no Salmo: "Enviou o Senhor a sua Palavra,  e os curou,  e os livrou de sua ruína". Salmo 106, 20.


Que todos nós, portanto, sejamos exortados ao estudo da Palavra de Deus. Sejam exortados também, aqueles que a conhecem mais profundamente, ao seu ensino. Aqueles que a conhecem menos sejam exortados à sua escuta, mas que em todos nós se verifique o que havia sido profetizado por Isaías, quando disse: "Será varejada a oliveira, e ficarão umas poucas azeitonas, e alguns rabiscos. Estes, porém, levantarão a sua voz, e cantarão louvores. Por isto, glorificai ao Senhor em sua doutrina". Is. 24, 13-15.

Em outra ocasião já tive a oportunidade de reunir para vós alguns dos ensinamentos que florescem no verdejante campo das divinas escrituras. Nos sermões que se seguem desejo agora propor-vos algo através do que possais exercitar o vosso entendimento. Deveis, porém, saber que não devemos entregar-nos em todo o nosso tempo apenas ao estudo, pois, segundo Salomão, "Todas as coisas tem o seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu segundo o termo que a cada uma foi prescrito". Ec. 3,1.

Há, portanto, um tempo para estudar, e há um tempo para meditar. Há um tempo para investigar a verdade para que se enriqueça o entendimento, há um tempo para exercitar a virtude para sanar os nossos afetos, e há também um tempo para praticar a boa obra para que se auxilie o próximo. Há um tempo para orar e um tempo para cantar, há um tempo para assistir ao ofício divino e um tempo para dedicarmos a qualquer outra coisa necessária. De todas estas coisas, como uma abelha que retira o seu mel de flores diversas, devemos colher para nós a doçura de uma suavidade interior, para que possamos consumar, através de uma vida santa, o favo de uma melíflua justiça.  






SERMO IV

Sobre a Natividade da Virgem Maria


"Ave, Estrela do Mar"

Irmãos caríssimos, o mundo presente é um mar. À semelhança do mar, ele fede, incha, é falso e instável. Fede pela luxúria, incha pelo orgulho, é instável pela curiosidade. Faz-se necessário, pois, irmãos caríssimos, possuir um navio e as coisas que pertencem ao navio se quisermos atravessar sem perigo um mar tão perigoso. Importa que tenhamos um navio, um mastro, uma vela e duas traves entre as quais se estende a vela, uma trave superior e uma trave inferior, assim como um sinalizador ao alto pelo qual possamos avaliar a direção do vento. Devemos possuir cordas, remos, leme, âncora e a comida que nos for necessária. Tenhamos também uma rede, com a qual possamos pescar algum peixe. Vejamos, porém, o que todas estas coisas significam.

O navio significa a fé, que em Abraão teve início como em sua primeira tábua. Com Isaac e Jacó o navio aumentou consideravelmente. Depois deles o navio passou a crescer com a propagação das dez tribos. Quanto maior o número dos que criam, tanto mais se dilatava o navio da fé. Mais ainda se dilatou em seguida, após a passagem do Mar Vermelho, recebendo os filhos de Israel a Lei de Deus e multiplicando-se na terra prometida. Vindo depois Cristo e padecendo pelo gênero humano, ouviu-se em toda a terra o som da pregação apostólica, e este navio muito se dilatou com a multidão dos povos que nele entravam. No tempo do Anticristo, esfriando-se a caridade de muitos, excluir-se-ão os falsos fiéis e o navio será acabado na sua parte superior e mais estreita. E assim como em Adão foi colocada na proa a primeira tábua da fé, assim o último justo será na popa a sua última tábua.

Certamente todos aqueles que, desde o início, atravessaram proveitosamente o mar do tempo presente, todos aqueles que escaparam de seus perigos, todos os que alcançaram o porto da salvação, todos eles navegaram no navio da fé, e foi por ele que realizaram a travessia.

Pela fé Abel ofereceu a Deus uma hóstia mais agradável do que Caim, pela qual obteve o testemunho de sua justiça e pela qual, já falecido, ainda falava. Pela fé Henoc agradou a Deus, e foi transladado. Pela fé Noé construiu uma arca para a salvação de sua casa. Pela fé, ao ser chamado, Abraão obedeceu dirigir-se ao lugar que lhe haveria de ser dado. Pela fé Sara, a estéril, recebeu a capacidade de conceber. Pela fé Isaac abençoou cada um de seus filhos. Pela fé José, ao morrer, lembrou-se do retorno dos filhos de Israel à terra prometido, e lhes ordenou para lá transportarem os seus ossos. Pela fé Moisés foi escondido ao nascer. Pela fé negou ser filho da filha do Faraó. Pela fé celebrou a Páscoa. Pela fé os filhos de Israel atravessaram o Mar Vermelho. Pela fé se derrubaram os muros de Jericó. E que mais ainda direi? O dia não será suficiente para falar dos santos da antiguidade que pela fé venceram reinos, operaram a justiça, alcançaram as promessas. Destes alguns fecharam as bocas dos leões, como Daniel. Outros extinguiram o ímpeto do fogo, como os três jovens; outros convalesceram de sua enfermidade, como Jó e Ezequias; tornaram-se fortes na guerra, como Josué e Judas Macabeu; por meio de Elias e Eliseu algumas mulheres receberam de volta seus falecidos que ressuscitaram. Outros foram cortados, não aceitando serem livrados da morte temporal em troca da transgressão da Lei, como os sete irmãos cujo martírio lemos no Segundo Livro dos Macabeus. Outros foram apedrejados como Jeremias no Egito e Ezequiel na Babilônia; foram cortados, como Isaías; mortos pela espada, como Urias e Josias, ou andaram errantes, como Elias e outros eremitas (Heb. 11, 4-38). E todos estes, e muitos outros, atravessaram pela fé os perigos do mundo presente, e foram encontrados provados pelo testemunho da fé.

As tábuas deste navio são as sentenças das Sagradas Escrituras, e para sua fabricação algumas destas tábuas nos são trazidas pelo Velho Testamento e outras pelo Novo. Os pregos, pelos quais se unem estas tábuas, isto é, pelos quais se unem estas sentenças, são os escritos dos santos, pelos quais são colocadas em concordância as coisas contidas em ambos os testamentos. Estas tábuas são cortadas pelo estudo e aplainadas pela meditação.

O mastro, que se dirige para o alto, significa a esperança, pela qual nos erguemos à busca e ao conhecimento das coisas celestes, conforme está escrito: "Buscai as coisas do alto, não vos interesseis pelas terrenas, pensai nas coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus Pai". Col. 3, 1-3.

A vela é a caridade, que se estende para a frente, para a direita e para a esquerda. Estende-se para a frente pelo desejo das coisas futuras; para a direita pelo amor dos amigos, para a esquerda pelo amor dos inimigos. As duas traves superior e inferior significam a razão e a sensualidade; a superior é a razão, e a inferior é a sensualidade. A caridade deve firmar-se superiormente pela razão, na qual deve permanecer imovelmente presa; inferiormente, porém, deve ficar presa mas movendo-se, pois por ela deve exercitar-se na boa obra. É assim que é feito no navio material, porque a trave superior não se move, mas sim a trave inferior.

O sinalizador superior do vento significa o discernimento dos espíritos. Para isto o sinalizador, ou o que quer que o substitua, é colocado sobre o mastro, para que através dele se distinga o vento ou a direção de onde ele sopra. Deste sinalizador, isto é, do discernimento dos espíritos, foi escrito: "Examinai os espíritos, para ver se são de Deus". I Jo. 4, 1. E também: "A outro é dado o discernimento dos espíritos". I Cor 12, 10.

As cordas são as virtudes, a humildade, a paciência, a compaixão, a modéstia, a castidade, a continência, a constância, a mansidão, a bondade, a prudência, a fortaleza, a justiça, a temperança. Estas cordas, isto é, as virtudes, devem pelo seu exercício ser sempre estendidas para que por elas possa firmar-se o mastro da nossa esperança. De fato, não há mastro da esperança que possa manter-se firme se estiver ausente o exercício das virtudes.

Seguem-se os remos, que saem do navio e mergulham nas águas, os quais significam as boas obras, que procedem da fé e se estendem às águas, isto é, aos próximos. As águas são os povos, que tem suas origens pelo nascimento, fluem pela mortalidade, e refluem pela morte. Devemos, porém, ter estes remos não apenas à direita, para que não façamos o bem apenas àqueles que nos fazem o bem, mas também à esquerda, para que façamos o bem àqueles que nos fazem o mal, conforme está escrito: "Fazei bem aos que vos odeiam". Mt. 5, 44. E também: "Se o teu inimigo tem fome,  dá-lhe de comer;  se tem sede, dá-lhe de beber". Rom. 12, 20.

O leme, pelo qual se dirige o navio, significa o discernimento pelo qual somos conduzidos em frente, de modo que não nos dissipemos à direita pela prosperidade, nem sucumbamos à esquerda pela adversidade. A nossa âncora é a humildade, que é lançada para baixo e pela qual nosso navio se estabiliza, para que não ocorra que, soprando o vento das sugestões diabólicas e agitando-se o mar de nossos pensamentos nosso navio se rompa e afunde nas profundezas. O navio de nossa fé deve, portanto, tornar-se firme e estável pela humildade, para que no tempo da tentação embora não possa se entregar a um livre curso, possa permanecer firme em seu lugar.

Devemos ter nosso alimento pelo estudo das Escrituras. Os maus não apetecem este manjar, conforme está escrito: "Sua alma aborrecia todo alimento, e chegaram às portas da morte". Salmo 106, 18.

Ele é dado aos bons, conforme está escrito: "Enviou a sua palavra para curá-los, para livrá-los da ruína". Salmo 106, 20.

A rede significa a pregação. Devemos utilizá-la sem cessar, para poder com ela pescar os homens submersos nas ondas do mundo presente e, retirando-lhes as escamas dos pecados, prepará-los para Nosso Senhor Jesus Cristo. Devemos também, conforme o costume dos marinheiros, cantar as canções do mar pela modulação do louvor divino, conforme nos diz o Salmista: "Bendirei o Senhor em todo o tempo, o seu louvor estará sempre na minha boca". Salmo 33, 1.

Depois de tudo isto, porém, ainda será necessário para nós a ação do vento, que significa a inspiração do Espírito Santo, para que por ela nos dirijamos ao porto da tranquilidade, ao médico da salvação, à terra prometida, à casa da eternidade. O Senhor nos dará o vento pela inspiração de seu Espírito, conforme está escrito: "Toda dádiva excelente e todo dom perfeito vem do alto e desce do Pai das luzes". Tiago 1, 17.

As luzes são os dons; o Pai das luzes é o autor, o doador e o distribuidor destes dons. O dom perfeito significa os dons da graça. Ele, que nos deu os demais bens, seja os que nos vem pela natureza, seja os que nos são dados pela graça, nos dará também o vento favorável, isto é, o Espírito Santo.

Para que, porém, irmãos caríssimos, possamos atravessar este mar com proveito, saudemos frequentissimamente a Estrela do Mar, isto é, a bem aventurada Maria, e invoquemo-la saudando-a dizendo: "Ave, Estrela do Mar".

Segundo o costume dos marinheiros, ergamos sempre nossas preces à bem aventurada Maria, assim como ao seu Filho. Seja ela para nós uma mãe espiritual, por meio de Jesus, fruto de seu ventre, o qual, nascido dela e por nós entregue, é Deus, e reina feliz, pela vastidão dos séculos que hão de vir. Amém.


CONTINUA.... 


HUGO DE SÃO VÍTOR
Traduzidos do original latino da obra `Sermones Centum' constante na Patrologia Latina de Migne vol. 177 pgs. 899-1210


Índice
Prólogo
Sermo 4 - Sobre a Natividade da Virgem Maria.
Sermo 23 - Aos Sacerdotes reunidos em Sínodo.
Sermo 39 - Sobre a Cidade Santa de Jerusalém, segundo o sentido moral.
Sermo 56 - Sobre a Alma Obediente, segundo a história do Livro de Rute.
Sermo 57 - Sobre os Prelados e os Doutores da Igreja, segundo o mesmo Livro de Rute.
Sermo 60 - Sobre todos os Santos.
Sermo 61 - Sobre a Obra dos Seis Dias.
Sermo 70 - Sobre o dia de Pentecostes.
Sermo 84 - Sobre a perfeição e as alegrias da Igreja militante e triunfante, por ocasião da festa de Santo Agostinho.
Sermo 88 - Sobre o Mandamento do Amor.
Sermo 95 - Sobre a Mesa da Proposição descrita em Êxodo, em louvor das Sagradas Escrituras.
Sermo 100 - Por ocasião da festa da Santa Cruz.

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Vide mais artigos sobre a Natividade da Virgem Maria: http://farfalline.blogspot.com/2016/09/o-assunto-e-festa-da-natividade-da-Virgem.html


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