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quinta-feira, 8 de agosto de 2013

CONTO DA MORTE

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Define-se a morte: o efeito produzido pelo ato da alma que se retira do corpo; Recessus animae a corpore.
Deus não criou a morte. Ela é, como disse Milton, filha de Satanás e do pecado. Conhecemos esta terrível e lamentável história. Deus tinha criado o homem imortal como os anjos (Sb 2, 23); a odiosa presunção, sugerida por Satanás aos nossos primeiros pais, de se igualar ao próprio Deus, que acabava de lhes dar o ser, foi miseravelmente acolhida; e a morte, com tudo o que ela carrega, foi o castigo desta rebelião.

A terra fora feita para o homem. Ela foi amaldiçoada; e as sementes malignas produzidas pelo pecado, com as doenças e os sofrimentos, alteraram a obra da criação. Os espinhos e os venenos tornaram-se as chagas e o fel da terra; e a morte estendeu seu cetro sobre tudo o que cobria o globo. Desde então, diz Joseph de Maistre:

"No vasto domínio da natureza viva, reina uma violência manifesta, uma espécie de raiva prescrita que arma todos os seres uns contra os outros, in mutua funera. A contar que saias do reino insensível, encontrareis o decreto da morte violenta escrito sobre as próprias fronteiras da vida. Já no reino vegetal, começa-se a sentir sua lei. Desde a imensa catalpa até a mais humilde gramínea, quantas plantas morrem, e quantas são mortas! Mas a partir do momento em que entreis no reino animal, a lei universal da morte toma, subitamente, uma medonha evidência. Uma força, ao mesmo tempo escondida e palpável, se mostra continuamente ocupada em colocar em evidência o princípio da vida por meios violentos. Em cada grande divisão da espécie animal, ela escolheu certo número de animais que ela encarregou de devorar os outros. Assim, há insetos presas, peixes presas, aves presas, répteis presas e quadrúpedes presas. Não há um instante qualquer onde o ser vivo não seja devorado por outro.

    Acima dessas numerosas raças de animais, está colocado o homem, cuja mão destrutiva não poupa nada do que vive. Ele mata para se alimentar; ele mata para se vestir; ele mata para se adornar; ele mata para se defender; ele mata para atacar; ele mata para se instruir; ele mata para se divertir; ele mata por matar. Esse rei, soberbo e terrível, precisa de tudo, e nada lhe resiste. Ele sabe quanto a cabeça do tubarão ou do cachalote lhe fornecerá de barris de óleo; seu alfinete aguilhoa, sobre o cartão dos museus, a elegante borboleta que ele surpreendeu durante o voo no topo do monte Branco ou do Chimboraço; ele empalha o crocodilo; ele embalsama o colibri; à sua ordem, a cascavel vem morrer no licor conservador que deve mostrá-la intacta aos olhos de um longo séquito de observadores. O cavalo que carrega seu mestre na caça do tigre, se pavana sob a pele desse mesmo animal. O homem pede tudo: ao cordeiro, suas entranhas para fazer retinir sua harpa; à baleia, suas barbas para sustentar o espartilho da jovem virgem; ao lobo, seu dente mais mortífero, para polir as obras mais leves da arte; ao elefante, seus marfins para adornar o brinquedo de uma criança. Suas mesas estão cobertas de cadáveres... Mas esta lei se deterá ao homem? Não, sem dúvida. Contudo, qual ser exterminará aquele que extermina todos? Ele; é o homem que está encarregado de degolar o homem(1)." 
O ilustre escritor expõe, em seguida, como esta carnificina da humanidade ocorre pela guerra, inevitável fatalidade que a queda produziu. 

Mas nesta lei da morte, a alma foi poupada. O arrependimento pode elevá-la, na expiação, até reconquistar, nos céus, os tronos dos anjos caídos. O próprio Deus, em sua misericórdia, se engajou no resgate do primeiro crime que nos infectou a todos; e, quando o sacrifício infinito da Redenção regenerou a humanidade, a morte perdeu sua honra.

A vida, todavia, permanece um combate. Contudo, suas lutas são coroadas no Céu; e não se pode dizer em vão que a morte dos santos é preciosa diante de Deus(2). Uma voz, vinda do Céu, pronunciou estas palavras: "Bem aventurados os mortos que morrem fiéis ao Senhor(3)!"

Também os santos suspiram, como São Paulo, após a libertação.

Em face da morte, que nos oprime com grandes tormentos, os santos deram curso frequentemente aos seus cantos de alegria. Que nos seja permitido traduzir aqui algumas estrofes do cântico de São Francisco de Assis agonizando, pois ele era poeta, como São Tomás de Aquino e como todos aqueles cujo coração queimava de amor por Deus: 
"Louvado seja Deus, meu Senhor, por todas suas criaturas! especialmente por nosso irmão, o sol, que nos dá o dia e a luz. Radiante e belo em seus esplendores, ó meu Deus! Ele é vossa imagem!

Louvado seja Deus, meu Senhor, por nossa irmã, a lua e pelas estrelas! É Ele quem as formou no céu, tão brilhantes e tão límpidas!

Louvado seja Deus, meu Senhor, por nosso irmão, o vento, pelo ar nublado ou sereno, por todos os tempos pelos quais ele dá subsistência à todas as criaturas!

Louvado seja Deus, meu Senhor, por nossa irmã, a água, que é humilde e útil, preciosa e casta!

Louvado seja Deus, meu Senhor, por nosso irmão, o fogo, pelo qual, iluminas as trevas, e que é belo, forte e poderoso!

Louvado seja Deus, meu Senhor, por nossa irmã, a terra, que, por sua ordem, nos sustenta e nos alimenta, produzindo os frutos, as flores e as ervas!

Louvado seja Deus, meu Senhor, naqueles que perdoam por seu amor! e naqueles que suportam o sofrimento e a tribulação! Felizes aqueles que perseveram na paz; eles serão coroados pelo Altíssimo.

Louvado seja Deus, meu Senhor, por nossa irmã, a morte, da qual nenhum homem vivo pode escapar! Ela é boa. Ela nos retira do exílio; ela nos devolve à nossa pátria.

Ai daqueles que morrem no pecado mortal!

Felizes aqueles que repousam, Senhor, fiéis à vossas santas vontades! A segunda morte, que é a única verdadeira, não os atingirá jamais."(4)

 

São João Cristóstomo deixou, sobre a morte, um longo e admirável discurso, do qual citaremos uma passagem: 
"Perturbai-vos, diz ele, em ver o corpo que colocamos sob a terra se corromper, apodrecer e se reduzir a um pouco de poeira e de cinzas; e vos deixais abater a este pensamento. Mas, todavia, se algum de vós se decide por reedificar sua casa que caiu em ruínas, o que ele faz? Ele começa por se retirar dela, depois ele a derruba e dispersa os detritos; ele a reconstrói em seguida mais magnificamente e mais bela. Incomodai-vos em deixar por um momento vossa morada, quando sabeis que a possuireis tão logo elevada segundo vossos desejos? Pois bem, é o que Deus faz convosco. Quando Ele quer demolir esta casa de barro, que chamamos nosso corpo, e que está por toda parte fendida, Ele começa por retirar, daí, nossa alma; mas Ele a fará reentrar, um dia, toda gloriosa, em outro edifício, celeste e divino, como diz São Paulo. 
Se possuíeis uma estátua de bronze deteriorada, desfigurada, degradada, para lhe dar sua beleza primeva, vós a mandarias novamente para a fornalha. Porém o dono da fundição só vos entregaria no entanto uma estátua de bronze. Ao contrário, quando vosso corpo é lançado na tumba, como em uma fornalha, ele deve sair daí radiante de luz; e no lugar de um corpo mortal e corruptível, Deus vos dará um corpo imortal e de uma clareza que não se extinguirá jamais."
Entretanto, infelizmente!, não somos santos. Materiais e medrosos, nossos artistas, quando se encarregam de nos traçar a morte, só nos oferecem sempre um esqueleto. É a morte do bruto; não é mesmo a morte pagã. Deste corpo, que foi habitado por um sopro divino, que teve a honra de carregar uma alma feita à imagem de Deus, que também recebeu seu Deus, se ele foi habitado por uma alma cristã, só nos apresenta uma carcaça disforme.

Quer estes ossos áridos sejam os detritos infortunados de um condenado, ou os restos augustos de um santo, eles têm, no entanto, um efeito, eles nos levam ao pensamento da morte, que rejeitamos em demasia; e não nos é difícil de aí acrescentar os dogmas da ressurreição.

A consciência é uma sentinela que não se cala. No aspecto do esqueleto, ela recorda, àqueles que querem bem entender, como eles devem viver para evitar a segunda morte. Ai daqueles que creem satisfazê-la, remetendo o exame de sua vida a um outro tempo! O tempo, como diz Fénelon, só nos é dado por segundos, e ninguém está seguro da hora que está diante dele.

Contudo, quando a morte se apresenta, o doente exclama e se queixa; ele dirá que ele foi enganado. La Fontaine pode lhe responder:

A morte não surpreende o sábio;
Ele está sempre pronto para partir;

Eis o prelúdio da admirável fábula da Morte e o Agonizante, primeira do livro oito; e eis o resumo firme e conciso de um dos mais belos sermões de Bourdaloue.


Deus, com efeito, nos adverte a cada instante desta condição inevitável de nossa estadia sobre a terra, não somente pelo espetáculo dos funerais, que passam todos os dias sob nossos olhos, e pela decomposição, as fendas e as ruínas que a velhice, os acidentes, as doenças, que os excessos acumulam ao nosso redor, mas ainda pelo sono, que é o noviciado da morte e um aprendizado diário.
Uma das maiores chagas de nossa natureza decaída é o medo, que nos domina sob milhares de formas. Se estudeis um pouco essa fraqueza, o medo é um filho da morte, um filho que, mais do que qualquer outro objeto, remonta com assombro diante de sua mãe.

Se o homem tivesse permanecido inocente, o nome do medo seria tão desconhecido quanto o da morte.
O sono, que revelou a alma pelos sonhos, antes que o magnetismo a tivesse, por assim dizer, tornado palpável, deve ensinar que nossa alma é luz, enquanto que nosso corpo é trevas. Aquele, portanto, que caminha diante de Deus não deve temer a morte, que rompe os laços de sua alma.
Mas o desejar dócil da morte é bom apenas para aqueles que suspiram depois de sua reunião ao bem supremo, e que combateram os bons combates. Não é bom desejar a morte por desgosto da vida, por covardia diante dos fardos que ela impõe, por aflições materiais; e aqueles que vão mais longe, cometendo suicídio, matam sua alma ao mesmo tempo em que matam seu corpo, e entregam, à segunda morte, que dura eternamente, esta alma criada para a segunda vida.


Citamos aqui um memorável fragmento de um dos belos sermões do abbé de Beauvais, um dos esplendores do púlpito cristão no último século:
"Os pensamentos dos mortais são tímidos, diz o Espírito de Deus, no livro da Sabedoria. Durante a vida, a alma, encerrada no corpo, só pode ver a verdade através dos órgãos espessos dos sentidos; e seu progresso é detido pelo peso da massa corruptível que a cerca. Porém, no momento, tão assustador para a natureza, em que o homem parece morrer, assim, liberta da prisão do corpo e dos laços dos sentidos, tal como um cativo livre de suas correntes, assim, a alma começa a gozar de si mesma, de toda sua inteligência e de sua sensibilidade. Não, o homem viveu apenas a metade durante sua vida mortal; a morte é o nascimento do homem à verdadeira vida(10).
Como não posso representar o espanto da alma, e a revolução que ela experimenta no momento em que, livre das sombras da mortalidade, ela percebe o primeiro raio de luz eterna e o espetáculo desconhecido do mundo invisível, das multidões inumeráveis de novas naturezas que aparecem ao seu olhar; os espíritos celestes, os anjos de trevas, as almas humanas que a precederam na eternidade; quando ela vê revelado todas as verdades, e aquelas que sua razão já tinha previsto, e aquelas que a fé lhe tinha indicado, e aquelas em que não se pode atingir agora o pensamento humano; quando ela percebe a majestade do Ser supremo, sua justiça, sua bondade, seu poder, sua imensidade, a verdade de suas ameaças e de suas promessas!
Todas as disputas do homem são esclarecidas; os mistérios são descobertos, a venda da fé cai. A alma não crê mais, ela vê; ela vê um Deus vingador ou remunerador, não mais como um enigma e através de uma nuvem, mas face a face, e tal como Ele é. Quão é, então, a consolação de uma alma que previu de longe os anos eternos! Quão doce repouso ela deve provar no instante onde, ainda perturbada pelas agonias de seu último combate, ela vê o mesmo Deus que ela crera sem vê-lo, o objeto de seu amor e o termo de sua esperança! Ela não chega a uma terra estrangeira; já lhe passara diante de si suas obras santas; seu coração avança com seu tesouro.
Porém, ó surpresa! ó terror de uma alma que duvidava deste futuro, ou que nunca se ocupava dele, e que só aprende, em sua entrada na região eterna, os mistérios terríveis da eternidade! Infeliz! Ela consumira toda sua vida em recolher as vãs riquezas, vãs honras, ou prazeres ainda mais vãos. Ela dormiu seu sono, diz o profeta, e, em seu despertar, tudo se apagou ao seu redor, como os fantasmas de um sonho. 
Desprovida de todos estes apoios, só lhe resta apenas a espera de um julgamento inexorável. Ó sonho funesto! Ó assombroso despertar!
Na entrada do império eterno se levanta o tribunal onde o juiz soberano chama as almas que a morte lhe envia a todo instante, de todas as partes do universo. Seus julgamentos não têm a lentidão dos julgamentos humanos. Com a mesma rapidez que se vê o relâmpago iluminar do oriente ao ocidente, ele penetra as ações dos homens, os julga, os condena ou os absolve. A "pele" mortal mal descansou na sepultura, o calor da vida parece ainda amimá-la, e já a alma atravessou o abismo imenso que parece separar um e outro mundo. Já ela é julgada, já repousa no seio de Deus; ou ela é precipitada para sempre no fundo do abismo, ou ela é relegada por um tempo na morada de dor e de expiação que a justiça de Deus, conjuntamente com sua clemência, colocou entre os infernos e os céus. Se os momentos se contassem ainda na eternidade, qual tempo seria necessário para operar esta incompreensível revolução? O indivisível instante do último suspiro.
Ó vós que habitais ainda sob o sol! Ainda alguns dias fugitivos, e ireis passar, vós mesmos, com a mesma rapidez, de vosso estado presente à uma nova existência, desse mundo conhecido, ao mundo invisível. Como pensar nisso a sangue frio, sem estremecer? Ides sofrer o mesmo julgamento e o mesmo sortilégio; e homens tão inquietos, se prevenindo por todos esses fúteis acontecimentos de uma vida fugitiva, podem esperar com esta fria segurança, o acontecimento fatal que vai logo fixar sua sorte eterna!..."
J. Collin de Plancy. Legendes de l'autre monde. Paris, Henri Plon.


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(1) As noites de São Petesburgo. Sétima entrevista.
(2) Pretiosa in conspectu Domini mors sanctorum ejus. Salmo CXV.
(3) Beati mortui qui in Domino moriuntur! Apoc. XIV.
(4) N.d.t.: Algumas traduções brasileiras apresentam pequenas divergências.
(5) Também a Igreja chama o dia da morte dos santos, seu dia natal, e, de preferência, sua sua festa natal (natalitia).


Visto em http://catolicosribeirao.blogspot.com.br/2012/09/conto-da-morte.html.
Editado em 08/07/2013, com a revisão efetuada pelo dono do blog de origem. 




Sobre "Novíssimos", leia mais aqui: http://farfalline.blogspot.com/2014/03/eclesiastico-novissimos-do-homem.html.


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