Edição de referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.
Sermão da Terceira Dominga da Quaresma
NA CAPELA REAL. ANO 1655
Cum ejecisset daemonium, locutus est mutus, et admiratae sunt turbae. [1]
As confissões em que o mudo fala e o demônio fica. Há homens que ainda depois de falar continuam mudos, porque falam no que dizem e são mudos no que calam. O pecado e a confissão de Arão.
Cum ejecisset daemonium, locutus est mutus, et admiratae sunt turbae. Hão de se confessar as confissões, como dizíamos, e as confissões que se hão de confessar são aquelas em que o mudo fala e o demônio fica. Mas, como pode ser, falando em termos de confissão, que o demônio fique, se o mudo fala? No material das palavras temos a resposta: Locutus est mutus: falou o mudo. Se ele falou, como lhe chamam mudo? Porque na confissão há homens que ainda depois de falar são mudos. Falam pelo que dizem e são mudos pelo que calam; falam pelo que declaram, e são mudos pelo que dissimulam; falam pelo que confessam, e são mudos pelo que negam. Fez o Batista aquela sua famosa confissão, posto que confissão em outro gênero, e diz o evangelista: Confessus est, et non negavit, et confessus est (Jo. I, 20): Confessou, e não negou, e confessou. – Notável duplicação de termos! Se tinha dito que confessou, por que acrescenta que não negou: Confessus est, et non negavit? E depois de dizer que confessou e não negou, por que torna a repetir que confessou: Confessus est, et non negavit, et confessus est? Não bastava dizer que confessou? Não: porque nem todo o confessar é confessar. Quem confessa e nega, não confessa; só confessa quem confessa sem negar. E porque João confessou e não negou, por isso diz o evangelista que confessou: Confessus est, et non negavit, et confessus est. Ah! quantas confissões negadas! Ah! quantas confissões não confessadas se absolvem sem absolvição neste sacramento! Virá o dia do Juízo, virá o dia daquele grande cadafalso do mundo: quantos se verão ali confessos e negativos, confessos e diminutos, confessos e não confessos, e por isso condenados?
Admirável coisa é ver muitos pecados como se fazem, e ouvir como se confessam! Vistos fora da confissão, e em si mesmos, são pecados e graves pecados; ouvidos na confissão, e com as cores de que ali se revestem, ou não parecem pecados, ou parecem virtudes. Seja exemplo, para que nos acomodemos ao lugar, o pecado e a confissão de um grande ministro.
Trataram os hebreus de ter um Deus, ou um ídolo, que em lugar de Moisés os guiasse pelo deserto. Vão-se ter com Arão, e dizem-lhe: Fac nobis deos, qui nos praecedant (Êx. 32, 1): Arão, fazei-nos um deus, ou uns deuses, que vão diante de nós. – Arão neste tempo era supremo ministro eclesiástico e secular, porque em ausência de Moisés ficara com o governo do povo, e como cabeça espiritual e temporal tinha dobrada obrigação de não consentir com os intentos ímpios dos idólatras, e de os repreender e castigar como um atrevimento tão sacrílego merecia, e de defender e sustentar a fé, a religião, o culto divino, e quando mais não pudesse, dar a vida, e mil vidas, em sua defesa. Isto é o que Arão tinha obrigação em consciência de fazer. Mas que é o que fez? Ide advertindo as palavras, porque todas importam muito para o caso. Respondeu Arão em consequência da proposta daquela gente, que fossem às suas casas, que tirassem as arrecadas das orelhas a suas mulheres, a suas filhas e a seus filhos, conforme o uso da Ásia, e que Ihas trouxessem todas: Tollite maures aureas de uxorum, filiorumque et fïliarum vestrarum, et afferte ad me. Trazidas as arrecadas, tomou-as Arão, derreteu o ouro, e feitas suas formas segundo a arte, fundiu e fez um bezerro: Quas cum Ille accepisset, formavit operefusorio, fecitque ex eis vitulum conflatibilem, – Tanto que apareceu acabada a nova imagem, aclamaram logo todos em presença de Arão, que aquele era o Deus que os tinha livrado do cativeiro do Egito. E por se não mostrar menos religioso, o sacerdote supremo: Aedificavit altare coram eo, et praeconis voce clamavit, dicens: Cras solemnitas Domini est: Edificou Arão um altar, pôs sobre ele o ídolo, e mandou lançar pregão por todos os arraiais, que no dia seguinte se celebrava a festa do Senhor, – chamando Senhor ao bezerro. Há ainda mais blasfêmias e mais indignidades? Ainda. Surgentesque inane, obtulerunt holocausta et hostias pacificas, et sedit populus manducare, et surrexerunt ludere. Amanheceu o dia soleníssimo, fizeram os sacerdotes muitos sacrifícios, seguiram-se aos sacrifícios banquetes e aos banquetes festas e danças; tudo em honra e louvor do novo deus. Até aqui, ao pé da letra, a primeira parte da história.
Pergunto agora: E se Arão houvesse de confessar este pecado, parece-vos que tinha bem que confessar? Pois assim aconteceu. Houve de confessar o seu pecado Arão, confessou-o, mas vede como o confessou, que é muito para ver e para aprender. Desceu Moisés do monte no mesmo ponto em que se estavam fazendo as festas, vê o ídolo, acende-se em zelo, argui a Arão de todo o sucedido: Quid tibi fecit hic populus, ut induceres super euro peccatum maximum? Que te fez este pobre povo, para o fazeres réu diante de Deus do maior de todos os crimes? – Confessou Arão a sua culpa, e confessou-a por estes termos: Tu nosti populum istum, quod pronus sit ad malum: Vós, senhor, sabeis que este povo é inclinado ao mal. Dixeruntque mihi: Fac nobis deos, qui praecedant nos: Disseram-me que lhes fizesse deuses a quem seguissem. – Agora vai a confissão. Ide-vos lembrando de tudo o que temos dito. - Quibus ego dixi: Quis vestrum habet aurum? Tulerunt, et dederunt mihi, et projeci illud in ignem, egressusque est hic vitulus: Perguntei quem tinha ouro? Foram-no buscar, e trouxeram-mo, e eu lancei-o no fogo, e saiu este bezerro. – Há tal confissão? Há tal caso no mundo? Vinde cá, Arão; estai a contas comigo diante de Deus. Vós não mandastes a todos estes homens (mandado lhe chama o texto: Fecit populus quae jusserat) vós não mandastes a todos estes homens que fossem buscar as arrecadas de ouro de suas mulheres, de suas filhas e de seus filhos, e que Ihas tirassem das orelhas, e vo-las trouxessem? Pois como agora na confissão dizeis que perguntastes somente quem tinha ouro: Dixi illis: Quis vestrum habet aurum? - Mais. Vós não tomastes o ouro, não o derretestes, não o fundistes, não o formastes e fizestes o bezerro: Formavit opere fusorio, fecitque vitulum conflatibilem? Pois como dizeis agora na confissão, que lançastes o ouro no fogo, e que o ídolo se fez a si mesmo, e não vós a ele: Projeci illud in ignem, egressusque est hic vitulus? Mais ainda. Vós não fabricastes o altar? Não pusestes nele o ídolo? Não lhe dedicastes dia santo? Não lhe chamastes Senhor? Não lhe fizestes, ou mandastes fazer sacrifícios, holocaustos, banquetes, jogos, festas? Pois como na confissão agora calais tudo isto, e não se vos ouve uma só palavra em matéria de tanto peso? Eis aqui como dizem os pecados com as confissões, e as confissões com os pecados! E assim confessou os seus o maior ministro eclesiástico e secular do povo de Deus.
Falou Arão no que disse, e foi mudo no que calou: Locutus est mutus. Mas notai que se fez grande injúria à pureza da confissão no que calou, muito maior injúria lhe fez no que disse, pelo modo com que o disse: porque no que calou, calou pecados; no que disse, fez de pecados virtudes. Que é que calou Arão? Calou o altar que levantara ao ídolo, a adoração que lhe dera, o nome do Senhor com que o honrara, os pregões, o dia solene, as ofertas, os sacrifícios, as festas, e sobretudo, abrir a primeira porta e dar princípio às idolatrias do povo de Israel, que duraram com infinitos castigos por mais de dois mil anos. São boas venialidades estas para se calarem na confissão? Pois isto é o que calou Arão. E que é o que confessou, ou como o confessou? O que confessou foi o seu pecado, mas o modo com que o confessou foi tão diverso que, sendo o maior pecado, parecia a maior virtude. De maneira que se Deus não tivesse revelado a Moisés o que passava, pudera Moisés por esta confissão de Arão, pô-lo no mesmo altar que ele tinha edificado. O que Arão disse a Moisés foram estas palavras formais: Dixi illis: Quis vestrum habet aurum; et tulerunt mihi, et projeci illud in ignem: Pediram-me que lhes fizesse um ídolo; perguntei-lhes se tinham ouro, trouxeram-no, e eu arremessei-o no fogo. - Olhai como referiu a história! Olhai como despintou a ação! Olhai como enfeitou o pecado! Pedir o ouro para fazer o ídolo, e derretê-lo, e fundi-lo, e formá-lo, e expô-lo para ser adorado, isso não era só concorrer para a idolatria, mas ser autor e dogmatista dela. E isto é o que fez Arão. Pelo contrário, pedir o ouro de que o povo cego queria se formasse o ídolo, e arremessá-lo no fogo, era pôr o fogo à idolatria, era abrasá-la, era queimá-la, era fazê-la em pó e em cinza. E isto é o que Arão confessou que fizera. Julgai agora se têm muito que confessar semelhantes confissões, e se são boas para lançar o demônio fora da alma, ou para o meter mais dentro. Falo da confissão de Arão: cada um examine as suas. Se as vossas confissões são como a de Arão, têm muito que condenar; se são como as do Batista, têm muito que louvar. Mas eu nem louvo com Marcela,[6] nem condeno com os fariseus; admiro-me somente com as turbas: Et admiratae sunt turbae.
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Notas:
[1] Depois de ter expelido o demônio, falou o mudo, e se admiraram as gentes (Lc. 11, 14).
[6] Marcela: Segundo a Tradição cristã, foi a mulher que exaltou a Mãe de Jesus no milagre da cura de um possesso (Luc. 11, 27).
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