Para muitos de nossos contemporâneos, o caráter essencial do estilo gótico reside no emprego da ogiva. A ogiva foi empregada no Oriente, mas a encontraremos em diversos outros lugares, e nada se opõe a que ela tenha nascido espontaneamente na França. Em todo caso, a estrutura dos monumentos góticos é bem diferente daquelas dos edifícios árabes. Por outro lado, ela não é essencialmente a arte gótica. É verdade que nenhum sistema da arquitetura fez uso tão aberto e, sobretudo, tão judicioso deste elemento: o arco quebrado, sendo o mais poderoso e, por consequência, o mais econômico de todos os arcos, impunha seu emprego na construção de edifícios que tendiam a realizar a suprema riqueza das formas no meio de uma grande penúria de meios econômicos.
Mas o arco quebrado não gerou o gótico; em vão perceberemos ogivas nos pesados monumentos da Renascença; eles não seriam góticos por isso.
O gótico não é subserviente à ogiva: ele admite todos os demais arcos, o semi-circular, o abatido, o arco asa de padeiro e mesmo o arco em ferradura, se bem que este aqui seja um absurdo em seu princípio e de um efeito ridículo. Tomemos, por exemplo, Saint-Eustache de Paris, tirando o portal, que é uma infâmia moderna, observemos o corpo da igreja. Ali se procurará em vão o traço da ogiva: as grandes baies[1] laterais são arcos abatidos com reforços, como os do gótico flamejante. Todo o resto está em semi-circulares graciosos, sobretudo no coroamento dos pilares de uma maravilhosa leveza que suportam uma rica abóbada. Quem poderia duvidar por um instante que tudo isso não seja gótico?
Em Saint-Sulpice, tirando o portal, que tem somente o mérito de ser monumental, apesar da infeliz fisionomia das torres, o corpo do edifício, em belo semi-circulo, é uma construção do sistema gótico, como o plano primitivo da própria igreja, que lhe dá sua leveza de construção e sua perfeita adaptação ao serviço. Em Saint-Nicolas-des-Champs, há outra coisa: o ante-corpo é ogival, mas o coro e a abside são em semi-circulo com colunas unidas ou embutidas. Isso não impede o monumento de ser gótico em seu conjunto.
A ogiva é, portanto, uma característica do estilo gótico. O plano geral da catedral com sua alta e longa nave, seus corredores e suas capelas tão favoráveis ao exercício do culto e ao desenvolvimento do sentimento religioso, é um dos méritos dos edifícios góticos. Notre-Dame não serviu de modelo para a maior parte das outras catedrais. Há exceções. No início, não se faziam capelas laterais; o Midi possui belíssimas catedrais sem corredores, a de Beauvais é um segmento em círculo: Essas diferenças não suprimem o caráter gótico da obra. É verdade, portanto, que o gótico levou à mais alta perfeição o plano da catedral, mas ele recebeu do românico tal princípio, e por isso ele achega ao bizantino.
Uma igreja românica ou bizantina, grega ou romana, pode adotar o plano das catedrais góticas: o Sagrado-Coração de Montmartre será uma prova desta verdade.
Uma característica mais especial, e que o gótico inventou, é o arcobotante, que é tão somente um membro, mas personificado em um novo sistema. O contraforte das igrejas românicas, esse pilar massivo engajado na parte exterior da muralha, bastaria para manter construções de uma elevação medíocre; contudo, para resistir à pressão proveniente da prodigiosa elevação das abóbadas da nave gótica que ele apoiava, o contraforte deveria tomar uma grande distância, se constituindo em massas enormes, deselegantes, cujo peso teria contrastado com o aspecto elegante e leve do edifício; eles teriam terminado, diz Viollet-Leduc, por custar mais caro que o próprio edifício. Essa combinação engenhosa (arcobotante) deve ser vista como a obra-prima da arte nova: ela é de tal poder que, se ela não fosse sabiamente manejada, ela produziria a ruína em sentido inverso e lançaria o muro no interior, no coro e na nave; seu emprego exigia, portanto, uma grande habilidade, bem como a perfeita apreciação das leis do equilíbrio. Entretanto, é preciso notar que o arcobotante só era um expediente, pouco constituindo o caráter essencial do estilo.
A construção desses membros é muito custosa, bem como sua manutenção. Além disso, eles encobrem o entorno da construção, e até mesmo servem como separação das capelas laterais. Disso, perguntamos: qual é então o caráter essencial do gótico? Residiria ele, por acaso, nos ornamentos graciosos dos decoradores? Contudo, esses ornamentos vieram de todas as partes: do grego, do árabe, do romano e da imaginação frequentemente licenciosa dos artistas. O suporte é redondo, quadrado, em losango, entrelaçado; os capitéis são planos, cúbicos, cilíndricos; os baixos relevos de todas os tipos, ou podem não existir; as nervuras, a pedra angular, os tímpanos[2], as gárgulas, tomando as formas mais bizarras. Mas o que importa? É outra coisa que dá ao estilo gótico o aspecto elegante e grave, leve e solene, que faz dele o tipo sem rival do monumento religioso.
O caráter incontestável do estilo gótico reside nos procedimentos de sua estrutura, em seu próprio princípio: é o equilíbrio artificial resultante da oposição calculada das forças e dos elementos. Qualquer que seja o tipo da abóbada, ogiva ou semi-círculo; a forma dos suportes interiores e exteriores, coluna ou pilar, o equilíbrio calculado é seu meio, e a tal ponto que as abóbadas e os membros suportados reforcem os suportes que os sustentam.
É por aí que o estilo gótico obtém sua ousadia inacreditável, sua leveza, sua superioridade. Os outros estilos originaram este princípio de construção, e quando eles o adotaram, a partir de então, eles praticaram o gótico sem sabê-lo.
A proporção do vácuo é realmente considerável, a nave e o coro tão elevados, os suportes tão reduzidos à sua mais simples expressão. O romano exagerou a largura, o gótico buscou a elevação; em um, a impulsão religiosa está em proporção com a massa de materiais e do peso dos membros; em outro, o efeito religioso cresce em razão de sua graça e de sua leveza.
No gótico, tudo concorre para levar ao extremo o sentimento de respeito e de entusiasmo divino. É verdade que o que chamamos de a arte do triunfo vê-se ali de certa maneira. Contudo, não é esse um dos méritos do estilo grego?
Esse não é o único ponto de contato do grego e do gótico. Essas longas colunatas que, saindo do solo nu, parecem querer escalar o céu, essas grandes aberturas e mil outros artifícios engenhosos desenvolvem a admiração e geram as sensações mais elevadas. Nenhuma proporção entre o conjunto e os acessórios consagrados ao serviço é resultado da ignorância, ou do desprezo pela harmonia; ao contrário, tudo isso é sabiamente calculado.
O arquiteto fez duas partes de sua obra: uma, a parte inspirada pelo sentimento divino, tem por objeto levar ao extremo a proporção do vácuo e de elevá-lo ao céu. A outra, que é a porção humana, se apropria absolutamente nas necessidades diárias.
Deus e o homem estão, assim, constantemente em presença: a fé pode fazer seu ato de humildade diante o símbolo material do poder superior ao qual ela rende homenagem: é um hino silencioso à glória do Eterno.
Tudo o que está a serviço do homem se mede por sua escala de proporções: as grades e os pontos de apoio, os altares e as bacias de água benta, as escadas e as próprias portas de serviço não ultrapassam as dimensões que lhe são dadas em edifícios privados. Rendido à essas impressões habituais, o espectador as compara aos membros essenciais do monumento, ele os acha imensos, gigantescos, e se vê confundido em sua pequenez, na presença de um conjunto tão imponente. Quando entrardes por uma porta de três metros de elevação, sob uma abóbada que sobe à trinta metros, será difícil não se surpreender.
CASTAING, Alph. Le style gothique, ses origines, sa supériorité matérielle et morale. Tradução de: Robson Carvalho. Revue du monde catholique, 1er novembre 1886.
__________
[1] Baies, fr.: abertura que se deixa nas paredes para ali colocar uma porta ou uma janela, ou qualquer outro objeto.
[2] Tímpanos: espaço geralmente triangular ou em arco, liso ou ornado com esculturas, limitado pelos três lados do frontão.
visto em: http://catolicosribeiraopreto.wordpress.com/2013/11/27/o-carater-essencial-do-gotico/.
Vide também:
Mas o arco quebrado não gerou o gótico; em vão perceberemos ogivas nos pesados monumentos da Renascença; eles não seriam góticos por isso.
O gótico não é subserviente à ogiva: ele admite todos os demais arcos, o semi-circular, o abatido, o arco asa de padeiro e mesmo o arco em ferradura, se bem que este aqui seja um absurdo em seu princípio e de um efeito ridículo. Tomemos, por exemplo, Saint-Eustache de Paris, tirando o portal, que é uma infâmia moderna, observemos o corpo da igreja. Ali se procurará em vão o traço da ogiva: as grandes baies[1] laterais são arcos abatidos com reforços, como os do gótico flamejante. Todo o resto está em semi-circulares graciosos, sobretudo no coroamento dos pilares de uma maravilhosa leveza que suportam uma rica abóbada. Quem poderia duvidar por um instante que tudo isso não seja gótico?
Em Saint-Sulpice, tirando o portal, que tem somente o mérito de ser monumental, apesar da infeliz fisionomia das torres, o corpo do edifício, em belo semi-circulo, é uma construção do sistema gótico, como o plano primitivo da própria igreja, que lhe dá sua leveza de construção e sua perfeita adaptação ao serviço. Em Saint-Nicolas-des-Champs, há outra coisa: o ante-corpo é ogival, mas o coro e a abside são em semi-circulo com colunas unidas ou embutidas. Isso não impede o monumento de ser gótico em seu conjunto.
A ogiva é, portanto, uma característica do estilo gótico. O plano geral da catedral com sua alta e longa nave, seus corredores e suas capelas tão favoráveis ao exercício do culto e ao desenvolvimento do sentimento religioso, é um dos méritos dos edifícios góticos. Notre-Dame não serviu de modelo para a maior parte das outras catedrais. Há exceções. No início, não se faziam capelas laterais; o Midi possui belíssimas catedrais sem corredores, a de Beauvais é um segmento em círculo: Essas diferenças não suprimem o caráter gótico da obra. É verdade, portanto, que o gótico levou à mais alta perfeição o plano da catedral, mas ele recebeu do românico tal princípio, e por isso ele achega ao bizantino.
Uma igreja românica ou bizantina, grega ou romana, pode adotar o plano das catedrais góticas: o Sagrado-Coração de Montmartre será uma prova desta verdade.
Uma característica mais especial, e que o gótico inventou, é o arcobotante, que é tão somente um membro, mas personificado em um novo sistema. O contraforte das igrejas românicas, esse pilar massivo engajado na parte exterior da muralha, bastaria para manter construções de uma elevação medíocre; contudo, para resistir à pressão proveniente da prodigiosa elevação das abóbadas da nave gótica que ele apoiava, o contraforte deveria tomar uma grande distância, se constituindo em massas enormes, deselegantes, cujo peso teria contrastado com o aspecto elegante e leve do edifício; eles teriam terminado, diz Viollet-Leduc, por custar mais caro que o próprio edifício. Essa combinação engenhosa (arcobotante) deve ser vista como a obra-prima da arte nova: ela é de tal poder que, se ela não fosse sabiamente manejada, ela produziria a ruína em sentido inverso e lançaria o muro no interior, no coro e na nave; seu emprego exigia, portanto, uma grande habilidade, bem como a perfeita apreciação das leis do equilíbrio. Entretanto, é preciso notar que o arcobotante só era um expediente, pouco constituindo o caráter essencial do estilo.
A construção desses membros é muito custosa, bem como sua manutenção. Além disso, eles encobrem o entorno da construção, e até mesmo servem como separação das capelas laterais. Disso, perguntamos: qual é então o caráter essencial do gótico? Residiria ele, por acaso, nos ornamentos graciosos dos decoradores? Contudo, esses ornamentos vieram de todas as partes: do grego, do árabe, do romano e da imaginação frequentemente licenciosa dos artistas. O suporte é redondo, quadrado, em losango, entrelaçado; os capitéis são planos, cúbicos, cilíndricos; os baixos relevos de todas os tipos, ou podem não existir; as nervuras, a pedra angular, os tímpanos[2], as gárgulas, tomando as formas mais bizarras. Mas o que importa? É outra coisa que dá ao estilo gótico o aspecto elegante e grave, leve e solene, que faz dele o tipo sem rival do monumento religioso.
O caráter incontestável do estilo gótico reside nos procedimentos de sua estrutura, em seu próprio princípio: é o equilíbrio artificial resultante da oposição calculada das forças e dos elementos. Qualquer que seja o tipo da abóbada, ogiva ou semi-círculo; a forma dos suportes interiores e exteriores, coluna ou pilar, o equilíbrio calculado é seu meio, e a tal ponto que as abóbadas e os membros suportados reforcem os suportes que os sustentam.
É por aí que o estilo gótico obtém sua ousadia inacreditável, sua leveza, sua superioridade. Os outros estilos originaram este princípio de construção, e quando eles o adotaram, a partir de então, eles praticaram o gótico sem sabê-lo.
A proporção do vácuo é realmente considerável, a nave e o coro tão elevados, os suportes tão reduzidos à sua mais simples expressão. O romano exagerou a largura, o gótico buscou a elevação; em um, a impulsão religiosa está em proporção com a massa de materiais e do peso dos membros; em outro, o efeito religioso cresce em razão de sua graça e de sua leveza.
No gótico, tudo concorre para levar ao extremo o sentimento de respeito e de entusiasmo divino. É verdade que o que chamamos de a arte do triunfo vê-se ali de certa maneira. Contudo, não é esse um dos méritos do estilo grego?
Esse não é o único ponto de contato do grego e do gótico. Essas longas colunatas que, saindo do solo nu, parecem querer escalar o céu, essas grandes aberturas e mil outros artifícios engenhosos desenvolvem a admiração e geram as sensações mais elevadas. Nenhuma proporção entre o conjunto e os acessórios consagrados ao serviço é resultado da ignorância, ou do desprezo pela harmonia; ao contrário, tudo isso é sabiamente calculado.
O arquiteto fez duas partes de sua obra: uma, a parte inspirada pelo sentimento divino, tem por objeto levar ao extremo a proporção do vácuo e de elevá-lo ao céu. A outra, que é a porção humana, se apropria absolutamente nas necessidades diárias.
Deus e o homem estão, assim, constantemente em presença: a fé pode fazer seu ato de humildade diante o símbolo material do poder superior ao qual ela rende homenagem: é um hino silencioso à glória do Eterno.
Tudo o que está a serviço do homem se mede por sua escala de proporções: as grades e os pontos de apoio, os altares e as bacias de água benta, as escadas e as próprias portas de serviço não ultrapassam as dimensões que lhe são dadas em edifícios privados. Rendido à essas impressões habituais, o espectador as compara aos membros essenciais do monumento, ele os acha imensos, gigantescos, e se vê confundido em sua pequenez, na presença de um conjunto tão imponente. Quando entrardes por uma porta de três metros de elevação, sob uma abóbada que sobe à trinta metros, será difícil não se surpreender.
CASTAING, Alph. Le style gothique, ses origines, sa supériorité matérielle et morale. Tradução de: Robson Carvalho. Revue du monde catholique, 1er novembre 1886.
__________
[1] Baies, fr.: abertura que se deixa nas paredes para ali colocar uma porta ou uma janela, ou qualquer outro objeto.
[2] Tímpanos: espaço geralmente triangular ou em arco, liso ou ornado com esculturas, limitado pelos três lados do frontão.
visto em: http://catolicosribeiraopreto.wordpress.com/2013/11/27/o-carater-essencial-do-gotico/.
Vide também:
- http://farfalline.blogspot.com.br/2013/08/as-caracteristicas-do-estilo-gotico-na.html
- http://farfalline.blogspot.com.br/2013/11/arte-catolica-sainte-chapelle-de-paris.html.
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