Sermão
da Quarta-feira de Cinzas
Pe. Antonio Viera
Em Roma, na Igreja de S. Antônio dos Portugueses.
Ano de 1670.
Memento homo, quia pulvis es,
et in pulverem reverteris [1].
I
O pó
futuro, em que nos havemos de converter, é visível à vista, mas o pó presente, o
pó que somos, como poderemos entender essa verdade? A resposta a essa dúvida
será a matéria do presente discurso.
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Pulvis es, tu in pulverem reverteris... |
Duas coisas prega hoje a Igreja a todos
os mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Mas
uma de tal maneira certa e evidente, que não é necessário entendimento para
crer: outra de tal maneira certa e dificultosa, que nenhum entendimento basta
para a alcançar. Uma é presente, outra futura, mas a futura vêem-na os olhos, a
presente não a alcança o entendimento. E que duas coisas enigmáticas são estas?
Pulvis es, tu in pulverem reverteris: Sois pó,
e em pó vos haveis de converter. — Sois pó, é a presente; em pó vos haveis de
converter, é a futura. O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter,
vêem-no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o
entendimento o alcança. Que me diga a Igreja que hei de ser pó: In pulverem reverteris, não é
necessário fé nem entendimento para o crer. Naquelas sepulturas, ou abertas ou
cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas
pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada
que havemos de ser: tudo pó. Vamos, para maior exemplo e maior horror, a esses
sepulcros recentes do Vaticano. Se perguntardes de quem são pó aquelas cinzas,
responder-vos-ão os epitáfios, que só as distinguem: Aquele pó foi Urbano,
aquele pó foi Inocêncio, aquele pó foi Alexandre, e este que ainda não está de
todo desfeito, foi Clemente. De sorte que para eu crer que hei de ser pó, não é
necessário fé, nem entendimento, basta a vista. Mas que me diga e me pregue
hoje a mesma Igreja, regra da fé e da verdade, que não só hei de ser pó de
futuro, senão que já sou pó de presente: Pulvis
es? Como o pode alcançar o entendimento, se os olhos
estão vendo o contrário? É possível que estes olhos que vêem, estes ouvidos que
ouvem, esta língua que fala, estas mãos e estes braços que se movem, estes pés
que andam e pisam, tudo isto, já hoje é pó: Pulvis
es? Argumento à Igreja com a mesma Igreja: Memento
homo. A Igreja diz-me, e supõe que sou homem: logo não sou pó. O homem é
uma substância vivente, sensitiva, racional. O pó vive? Não. Pois como é pó o
vivente? O pó sente? Não. Pois como é pó o sensitivo? O pó entende e discorre?
Não. Pois como é pó o racional? Enfim, se me concedem que sou homem: Memento
homo, como me pregam que sou pó: Quia pulvis es? Nenhuma coisa nos
podia estar melhor que não ter resposta nem solução esta dúvida. Mas a resposta
e a solução dela será a matéria do nosso discurso. Para que eu acerte a
declarar esta dificultosa verdade, e todos nós saibamos aproveitar deste tão
importante desengano, peçamos àquela Senhora, que só foi exceção deste pó, se
digne de nos alcançar graça.
Ave Maria.
II
O
homem foi pó e há de ser pó, logo é pó, pois tudo o que vive não é o que é, é o
que foi e o que há de ser. O exemplo da vara de Arão que se converte em serpente. Deus se
definiu a Moisés como aquele que é o que é, porque só ele é o que foi e o que
há de ser. Se alguém puder afirmar o mesmo de si próprio também é digno de ser
adorado.
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Memento homo! |
Enfim,
senhores, não só havemos de ser pó, mas já somos pó: Pulvis
es. Todos os embargos que se podiam pôr contra
esta sentença universal são os que ouvistes. Porém como ela foi pronunciada
definitiva e declaradamente por Deus ao primeiro homem e a todos seus
descendestes, nem admite interpretação nem pode ter dúvida. Mas como pode ser?
Como pode ser que eu que o digo, vós que o ouvis, e todos os que vivemos
sejamos já pó: Pulvis es?
A razão é esta. O homem, em qualquer estado que esteja, é certo que foi pó, e
há de tornar a ser pó. Foi pó, e há de tornar a ser pó? Logo é pó. Porque tudo
o que vive nesta vida, não é o que é: é o que foi e o que há de ser. Ora vede.
No
dia aprazado em que Moisés
e os magos do Egito haviam de fazer prova e ostentação de seus poderes diante
do rei Faraó, Moisés estava só com Arão de uma parte, e todos os magos da
outra. Deu sinal o rei, mandou Moisés a Arão que lançasse a sua vara em terra,
e converteu-se subitamente em uma serpente viva e tão temerosa, como aquela de
que o mesmo Moisés no deserto se não dava por seguro. Fizeram todos os magos o
mesmo: começam a saltar e a ferver serpentes, porém a de Moisés investiu e
avançou a todas elas intrépida e senhorilmente, e assim, vivas como estavam,
sem matar nem despedaçar, comeu e engoliu a todas. Refere o caso a Escritura, e
diz estas palavras: Devoravit virga Aaron virgas eorum: a vara de Arão comeu e engoliu as dos egípcios
(Ex 7, 12) — Parece que não havia de dizer: a vara, senão: a serpente. A vara
não tinha boca para comer, nem dentes para mastigar, nem garganta para engolir,
nem estômago para recolher tanta multidão de serpentes. A serpente, em que a
vara se converteu, sim, porque era um dragão vivo, voraz e terrível, capaz de
tamanha batalha e de tanta façanha. Pois, por que diz o texto que a vara foi a
que fez tudo isto, e não a serpente? Porque cada um é o que foi e o que há de
ser. A vara de Moisés, antes de ser serpente, foi vara, e depois de ser
serpente, tornou a ser vara; a serpente que foi vara e há de tornar a ser vara
não é serpente, é vara: Virga Aaron. É
verdade que a serpente naquele tempo estava viva, e andava, e comia, e
batalhava, e vencia, e triunfava, mas como tinha sido vara, e havia de tornar a
ser vara, não era o que era: era o que fora e o que havia de ser: Virga.
Ah!
serpentes astutas do mundo vivas, e tão vivas! Não vos fieis da vossa vida nem
da vossa viveza; não sois o que cuidais nem o que
sois: sois o que fostes e o que haveis de ser. Por mais que vós vejais agora um
dragão coroado e vestido de armas douradas, com a cauda levantada e retorcida
açoitando os ventos, o peito inchado, as asas estendidas, o colo encrespado e
soberbo, a boca aberta, dentes agudos, língua trifulca,
olhos cintilantes, garras e unhas rompentes, por mais que se veja esse dragão
já tremular na bandeira dos lacedemônios, já passear nos jardins das hespérides, já guardar os tesouros de Midas, ou seja dragão
volante entre os meteoros, ou dragão de estrelas entre as constelações, ou dragão
de divindade afetada entre as hierarquias, se foi vara, e há de ser vara, é
vara; se foi terra, e há de ser terra, é terra; se foi nada, e há de ser nada,
é nada, porque tudo o que vive neste mundo é o que foi e o que há de ser. Só
Deus é o que é, mas por isso mesmo. Por isso mesmo. Notai.
Apareceu
Deus ao mesmo Moisés nos desertos de Madiã; manda-o
que leve a nova da liberdade ao povo cativo, e perguntando Moisés quem havia de
dizer que o mandava, pare que lhe dessem crédito, respondeu Deus e definiu-se: Ego
sum qui sum:
Eu sou o que sou (Ex 3, 14). Dirás que o que é te manda: Qui
est misit me ad vos? Qui est?
O que é? E que nome, ou que distinção é esta? Também Moisés é o que é,
também Faraó é o que é, também o povo, com que há de falar, é o que é. Pois se
este nome e esta definição toca a todos e a tudo, como a toma Deus só por sua?
E se todos são o que são, e cada um é o que é, por que diz Deus não só como
atributo, senão como essência própria da sua divindade: Ego sum qui sum:
Eu sou o que sou? Excelentemente S. Jerônimo, respondendo com as palavras do
Apocalipse: Qui est,
et qui erat,
et qui venturus
est [2], Sabeis por que diz Deus: Ego sum qui sum?
Sabeis por que só Deus é o que é? Porque só Deus é o que foi e o que há de ser.
Deus é Deus, e foi Deus, e há de ser Deus; e só quem é o que foi e o que há de
ser. é o que é. Qui est,
et qui erat,
et qui venturus
est. Ego sum qui sum. De maneira que quem
é o que foi e o que há de ser, é o que é, e este é só Deus. Quem não é o que
foi e o que há de ser, não é o que é: é o que foi e o que há de ser: e esses
somos nós. Olhemos para trás: que é o que fomos? Pó. Olhemos para diante: que é
o que havemos de ser? Pó. Fomos pó e havemos de ser pó? Pois isso é o que
somos: Pulvis es.
Eu
bem sei que também há deuses da terra, e que esta terra onde estamos foi a
pátria comum de todos os deuses, ou próprios, ou estrangeiros. Aqueles deuses
eram de diversos metais; estes são de barro, ou cru ou mal cozido, mas deuses.
Deuses na grandeza, deuses na majestade, deuses no poder, deuses na adoração, e
também deuses no nome: Ego dixi, dii estis. Mas se houver, que
pode haver, se houver algum destes deuses que cuide ou diga: Ego sum qui sum,
olhe primeiro o que foi e o que há de ser. Se foi Deus, e há de ser Deus, é
Deus: eu o creio e o adoro; mas se não foi Deus, nem há de ser Deus, se foi pó,
e há de ser pó, faça mais caso da sua sepultura que da sua divindade. Assim lho
disse e os desenganou o mesmo Deus que lhes chamou deuses: Ego dixi, dii estis.
Vos autem sicut homines moriemini [3]. Quem
foi pó e há de ser pó, seja o que quiser e quanto quiser, é pó: Pulvis es.
Jó
define-se como quem foi pó e há de ser pó: Abraão define-se como quem é pó. O
texto sagrado não diz: converter-vos-eis em pó mas tornareis a ser pó. O que
chamamos vida não é mais que um círculo que fazemos de pó a pó.
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Sinal |
Parece-me que tenho provado a minha razão e a conseqüência dela.
Se a quereis ver praticada em próprios termos, sou contente. Praticaram este
desengano dois homens que sabiam mais de nós que nós: Abraão e Jó, com outro memento como o nosso, dizia a Deus: Memento
quaeso, quod sicuit lutum feceris
me, et in pulverem deduces me: Lembrai-vos, Senhor, que me fizestes de pó,
e que em pó me haveis de tornar (Jó 10, 9). — Abraão,
pedindo licença ou atrevimento para falar a Deus: Loquar
ad Dominum, cum sim pulvis et cinis: Falar-vos-ei ,
Senhor, ainda que sou pó e cinza (Gn 18, 27). — Já
vedes a diferença dos termos que não pode ser maior, nem também mais natural ao
nosso intento. Jó diz que foi pó e há de ser pó;
Abraão não diz que foi, nem que há de ser, senão que já é pó: Cum sim pulvis et cinis. Se um destes homens
fora morto e outro vivo, falavam muito propriamente, porque todo o vivo pode
dizer: Eu fui pó, e hei de ser pó; e um morto, se falar, havia de dizer: Eu já
sou pó. Mas Abraão que disse isto, não estava morto, senão vivo, como Jó; e Abraão e Jó não eram de
diferente metal, nem de diferente natureza. Pois se ambos eram da mesma
natureza, e ambos estavam vivos, como diz um que já é pó, e outro não diz que o
é, senão que o foi e que o há de ser? Por isso mesmo. Porque Jó foi pó e há de ser pó, por isso Abraão é pó. Em Jó falou a morte, em Abraão falou a vida, em ambos a
natureza. Um descreveu-se pelo passado e pelo futuro, o outro definiu-se pelo
presente; um reconheceu o efeito, o outro considerou a causa; um disse o que
era, o outro declarou o porquê. Porque Jó e Abraão e
qualquer outro homem foi pó, por isso já é pó. Fôstes
pó e haveis de ser pó como Jó? Pois já sois pó como
Abraão: Cum sim pulvis et cinis.
Tudo temos no nosso texto, se bem se considera, porque as
segundas palavras dele não só contêm a declaração, senão também a razão das
primeiras. Pulvis es:
sois pó. E por que? Porque in pulverem reverteris: porque fostes pó e haveis de tornar a ser
pó. Esta é a forca da palavra reverteris, a
qual não só significa o pó que havemos de ser, senão também o pó que somos. Por
isso não diz: converteris, converter-vos-eis
em pó, senão: reverteris, tornareis a ser o pó
que fostes. Quando dizemos que os mortos se convertem em pó, falamos
impropriamente, porque aquilo não é conversão, é reversão: reverteris.
É tornar a ser na morte o pó que somos no nascimento; é tornar a ser na
sepultura o pó que somos no campo damasceno. E porque somos pó e havemos de
tornar a ser pó: In pulverem reverteris,
por isso já somos pó: Pulvis es. — Não é exposição minha, senão formalidade do mesmo
texto, com que Deus pronunciou a sentença de morte contra Adão: Donec revertaris in terram de qua sumptus
es: quia pulvis es (Gn 3, 19): — Até que tornes a ser a terra de que fostes
formado, porque és pó.— De maneira que a razão e o porquê de sermos pó: Quia pulvis es, é porque somos pó, e havemos de tornar a ser pó: Donec revertaris in terram de qua sumptus
es.
Só parece que se pode opor ou dizer em contrário, que aquele donec: até que, significa tempo em meio entre o pó
que somos e o pó que havemos de ser, e que neste meio tempo não somos pó. Mas a
mesma verdade divina que disse: donec, disse
também: pulvis es.
E a razão desta conseqüência está no revertaris,
porque a reversão com que tornamos a ser o pó que fomos começa circularmente,
não do último senão do primeiro ponto da vida. Notai. Esta nossa chamada vida
não é mais que um círculo que fazemos de pó a pó: do pó que fomos ao pó que
havemos de ser. Uns fazem o círculo maior, outros menor, outros mais pequeno,
outros mínimo: De utero translatus
ad tumulum [4] Mas, ou
o caminho seja largo, ou breve, ou brevíssimo, como é círculo de pó a pó,
sempre e em qualquer parte da vida somos pó. Quem vai circularmente de um ponto
para o mesmo ponto, quanto mais se aparta dele tanto mais se chega para ele; e
quem quanto mais se aparta mais se chega, não se aparta. O pó que foi nosso
princípio, esse mesmo, e não outro, é o nosso fim, e porque caminhamos
circularmente deste pó para este pó, quanto mais parece que nos apartamos dele,
tanto mais nos chegamos para ele; o passo que nos aparta, esse mesmo nos chega;
o dia que faz a vida, esse mesmo a desfaz. E como esta roda que anda e desanda
juntamente sempre nos vai moendo, sempre somos pó. Por isso, quando Deus
intimou a Adão a reversão ou resolução deste círculo: Donec
revertaris, das premissas: pó foste, e pó serás,
— tirou por conseqüência: pó és: Quia pulvis es. Assim que desde o
primeiro instante da vida até o último nos devemos persuadir e assentar
conosco, que não só somos e havemos de ser pó, senão que já o somos, e por isso
mesmo. Foste pó e hás de ser pó? És pó: Pulvis
es.
Se
já somos pó, qual a diferença existente entre vivos e mortos? Os vivos são o pó
levantado pelo vento, os mortos são o pó caído. Adão, feito de pó, recebendo o
vento do sopro divino torna-se vivo. Nas Escrituras, levantar é viver, cair é
morrer. Assim, como distingue Davi, há o pó da morte e o pó da vida.
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Imposição das cinzas |
Ora, suposto que já somos pó, e não pode deixar de ser, pois Deus
o disse, perguntar-me-eis e com muita razão, em que nos distinguimos logo os
vivos dos mortos? Os mortos são pó, nós também somos pó: em que nos
distinguimos uns dos outros? Distinguimo-nos os vivos dos mortos, assim como se
distingue o pó do pó. Os vivos são pó levantado, os mortos são pó caído: os
vivos são pó que anda, os mortos são pó que jaz: Hic jacet.
Estão essas praças no verão cobertas de pó; dá um pé-de-vento, levanta-se o pó
no ar, e que faz? O que fazem os vivos, e muitos vivos. Não aquieta o pó, nem
pode estar quedo: anda, corre, voa, entra por esta rua, sai por aquela; já vai
adiante, já torna atrás; tudo enche, tudo cobre, tudo envolve, tudo perturba,
tudo cega, tudo penetra, em tudo e por tudo se mete, sem aquietar, nem sossegar
um momento, enquanto o vento dura. Acalmou o vento, cai o pó, e onde o vento
parou, ali fica, ou dentro de casa, ou na rua, ou em cima de um telhado, ou no
mar, ou no rio, ou no monte, ou na campanha. Não é assim? Assim é. E que pó, e
que vento é este? O pó somos nós: Quia pulvis es; o vento é a nossa
vida: Quia ventus
es vita mea
(Jó 7, 7). Deu o vento, levantou-se o pó; parou o
vento, caiu. Deu o vento, eis o pó levantado: esses são os vivos. Parou o
vento, eis o pó caído: estes são os mortos. Os vivos pó, os mortos pó; os vivos
pó levantado, os mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os
mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade. Esta é a distinção, e não há outra.
Nem cuide alguém que é isto metáfora ou comparação, senão
realidade experimentada e certa. Forma Deus de pó aquela primeira estátua, que
depois se chamou corpo de Adão. Assim o diz o texto original: Formavit Deus hominem
de pulvere terrae (Gn 2, 7). A figura era humana e muito primorosamente
delineada, mas a substância ou a matéria não era mais que pó. A cabeça pó, o
peito pó, os braços pó, os olhos, a boca, a língua, o coração, tudo pó.
Chega-se pois Deus à estátua, e que fez? Inspiravit
in faciem ejus: Assoprou-a
(Gn 2, 7). E tanto que o vento do assopro deu no pó: Et factus est homo in animam viventem:
eis o pó levantado e vivo; já é homem, já se chama Adão. Ah! pó, se aquietaras
e pararas aí! Mas pó assoprado, e com vento, como havia de aquietar? Ei-lo abaixo,
ei-lo acima, e tanto acima, e tanto abaixo, dando uma tão grande volta, e
tantas voltas. Já senhor do universo, já escravo de si mesmo; já só, já
acompanhado; já nu, já vestido; já coberto de folhas, já de peles; já tentado,
já vencido; já homiziado, já desterrado; já pecador, já penitente, e para maior
penitência, pai, chorando os filhos, lavrando a terra, recolhendo espinhos por
frutos, suando, trabalhando, lidando, fatigando, com tantos vaivens do gosto e
da fortuna, sempre em uma roda viva. Assim andou levantado o pó enquanto durou
o vento. O vento durou muito, porque naquele tempo eram mais largas as vidas,
mas ao fim parou. E que lhe sucedeu no mesmo ponto a Adão? O que sucede ao pó.
Assim como o vento o levantou, e o sustinha, tanto que o vento parou, caiu. Pó
levantado, Adão vivo; pó caído, Adão morto: Et
mortuus est.
Este foi o primeiro pó, e o primeiro vivo, e o primeiro condenado
à morte, e esta é a diferença que há de vivos a mortos, e de pó a pó. Por isso
na Escritura o morrer se chama cair, e o viver levantar-se. O morrer cair: Vos
autem sicut hominas moriemini, et sicut unus
de principibus cadetis
[5]. O viver, levantar-se: Adolescens, tibi dico, surge [6]. Se
levantados, vivos; se caídos, mortos; mas ou caídos ou levantados, ou mortos, ou
vivos, pó: os levantados pó da vida, os mortos pó da morte. Assim o entendeu e
notou Davi, e esta é a distinção que fêz quando
disse: In pulvere mortis
deduxisti me: Levastes-me, Senhor, ao pó da
morte. Não bastava dizer: In pulverem deduxisti, assim como: In pulverem
reverteris? Se bastava; mas disse com maior
energia: In pulverem mortis:
ao pó da morte, porque há pó da morte, e pó da vida: os vivos, que andamos em
pé, somos o pó da vida: Pulvis es; os mortos, que jazem na sepultura, são o pó da
morte: In pulverem reverteris.
O
memento dos vivos; lembre-se o pó levantado que há de ser pó caído. O vento da
vida e o vento da fortuna. A estátua de Nabucodonosor:
o ouro, a prata, o bronze, o ferro, tudo se converte em pó de terra.
Significado do nome de Adão. S. Agostinho e a glória de Roma. Roma, a caveira
do mundo, ainda está sujeita a novas destruições. Salomão e o espelho do
passado e do futuro.
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Um homem pode-se ver na caveira de outro homem |
À vista desta distinção tão verdadeira e deste desengano tão
certo, que posso eu dizer ao nosso pó senão o que lhe diz a Igreja: Memento
homo. Dois mementos hei de fazer hoje ao pó: um memento ao pó levantado, outro
memento ao pó caído; um memento ao pó que somos, outro memento ao pó que
havemos de ser; um memento ao pó que me ouve, outro memento ao pó que não pode
ouvir. O primeiro será o memento dos vivos, o segundo o dos mortos.
Aos vivos, que direi eu? Digo que se lembre o pó levantado que há
de ser pó caído. Levanta-se o pó com o vento da vida, e muito mais com o vento
da fortuna; mas lembre-se o pó que o vento da fortuna não pode durar mais que o
vento da vida, e que pode durar muito menos, porque é mais inconstante. O vento
da vida por mais que cresça, nunca pode chegar a ser bonança; o vento da
fortuna, se cresce, pode chegar a ser tempestade, e tão grande tempestade que
se afogue nela o mesmo vento da vida. Pó levantado, lembra-te outra vez que hás
de ser pó caído, e que tudo há de cair e ser pó contigo. Estátua de Nabuco:
ouro, prata, bronze, ferro, lustre, riqueza, fama, poder, lembra-te que tudo há
de cair de um golpe, e que então se verá o que agora não queremos ver: que tudo
é pó, e pó de terra. Eu não me admiro, senhores, que aquela estátua em um
momento se convertesse toda em pó: era imagem de homem; isso bastava. O que me
admira e admirou sempre é que se convertesse, como diz o texto, em pó de terra:
In favillam aestivae areae (Dn 2, 35). A cabeça da
estátua não era de ouro? Pois por que se não converte o ouro em pó de ouro? O
peito e os braços não eram de prata? Por que se não converte a prata em pó de
prata? O ventre não era de bronze, e o demais de ferro? Por que se não converte
o bronze em pó de bronze e o ferro em pó de ferro? Mas o ouro, a prata, o
bronze, o ferro, tudo em pó de terra? Sim. Tudo em pó de terra. Cuida o ilustre
desvanecido que é de ouro, e todo esse resplendor, em caindo, há de ser pó, e
pó de terra. Cuida o rico inchado que é de prata, e toda essa riqueza em caindo
há de ser pó, e pó de terra. Cuida o robusto que é de bronze, cuida o valente
que é de ferro, um confiado, outro arrogante, e toda essa fortaleza, e toda
essa valentia em caindo há de ser pó, e pó de terra: In favillam
aestivae areae.
Senhor pó: Nimium ne crede colori [7]. A pedra que desfez em pó a
estátua, é a pedra daquela sepultura. Aquela pedra, é como a pedra do pintor,
que mói todas as cores, e todas as desfaz em pó. O negro da sotaina, o
branco da cota, o pavonaço do mantelete, o vermelho
da púrpura, tudo ali se desfaz em
pó. Adão quer dizer ruber, o
vermelho, porque o pó do campo damasceno, de que Adão foi formado, era
vermelho, e parece que escolheu Deus o pó daquela cor tão prezada, para nela, e
com ela, desenganar a todas as cores [8]. Desengane-se a escarlata mais fina,
mais alta e mais coroada, e desenganem-se daí abaixo todas as cores, que todas
se hão de moer naquela pedra e desfazer em pó, e o que é mais, todas em pó da
mesma cor. Na estátua o ouro era amarelo, a prata branca, o bronze verde, o
ferro negro, mas tanto que a tocou a pedra, tudo ficou da mesma cor, tudo da
cor da terra: In favillam aestivae
areae. O pó levantado, como vão, quis fazer
distinções de pó a pó, e porque não pôde distinguir a substância, pôs a
diferença nas cores. Porém a morte, como vingadora de todos os agravos da
natureza, a todas essas cores faz da mesma cor, para que não distinga a vaidade
e a fortuna os que fez iguais a razão. Ouvi a S. Agostinho: Respice sepulchra et vide quis dominus, quis servus, quis pauper, quis dives? Discerne, si potes, regem a vincto,
fortem a debili, pulchrum a deformi [9]: Abri
aquelas sepulturas, diz Agostinho, e vede qual é ali o senhor e qual o servo;
qual é ali o pobre e qual o rico? Discerne, si potes: distingui-me ali,
se podeis, o valente do fraco, o formoso do feio, o rei coroado de ouro do
escravo de Argel carregado de ferros? Distingui-los? Conhecei-los? Não por
certo. O grande e o pequeno, o rico e o pobre, o sábio e o ignorante, o senhor
e o escravo, o príncipe e o cavador, o alemão e o etíope, todos ali são da
mesma cor.
Passa S. Agostinho da sua África à nossa Roma, e pergunta assim: Ubi sunt quos ambiebant civium potentatus? Ubi insuperabiles imperatores? Ubi exercituum duces? Ubi satrapae et
tyranni [10]? Onde estão os cônsules romanos?
Onde estão aqueles imperadores e capitães famosos, que desde o Capitólio mandavam o mundo? Que se fez dos Césares e dos Pompeus, dos Mários e dos Silas, dos Cipiões e
dos Emílios? Os Augustos, os Cláudios,
os Tibérios, os Vespasianos,
os Titos, os Trajanos, que
é deles? Nunc omnia
pulvis: tudo pó; Nunc
omnia favillae: tudo
cinza; Nunc in paucis
versibus eorum memoria est.: não resta de
todos eles outra memória, mais que os poucos versos das suas sepulturas. Meu
Agostinho, também êsses versos que se liam então, já
os não há: apagaram-se as letras, comeu o tempo as pedras; também as pedras
morrem: Mors etiam
saxis, nominibusque venit [11]. Oh! que memento este para Roma!
Já não digo como até agora: lembra-te homem que és pó levantado e
hás de ser pó caído. O que digo é: lembra-te Roma que és pó levantado, e que és
pó caído juntamente. Olha Roma daqui para baixo, e ver-te-ás caída e sepultada
debaixo de ti; olha Roma de lá para cima, e ver-te-ás levantada e pendente em
cima de ti. Roma sobre Roma, e Roma debaixo de Roma. Nas margens do Tibre, a Roma que se vê para cima, vê-se também para
baixo; mas aquilo são sombras. Aqui a Roma que se vê em cima, vê-se também
embaixo, e não é engano da vista, senão verdade; a cidade sobre as ruínas, o
corpo sobre o cadáver, a Roma viva sobre a morta. Que coisa é Roma senão um
sepulcro de si mesma? Embaixo as cinzas, em cima a estátua; embaixo os ossos,
em cima o vulto. Este vulto, esta majestade, esta grandeza é a imagem, e só a
imagem, do que está debaixo da terra. Ordenou a Providência divina que Roma
fosse tantas vezes destruída, e depois edificada sobre suas ruínas, para que a
cabeça do mundo tivesse uma caveira em que se ver. Um homem pode-se ver na
caveira de outro homem; a cabeça do mundo não se podia ver senão na sua própria
caveira. Que é Roma levantada? A cabeça do mundo. Que é Roma caída? A caveira
do mundo. Que são esses pedaços de Termas e Coliseus
senão os ossos rotos e truncados desta grande caveira? E que são essas colunas,
essas agulhas desenterradas, senão os dentes, mais duros, desencaixados dela!
Oh! que sisuda seria a cabeça do mundo se se visse
bem na sua caveira!
Nabuco, depois de ver a estátua convertida em pó, edificou outra
estátua. Louco! Que é o que te disse o profeta? Tu rex
es caput: Tu, rei, és a cabeça da estátua (Dn 2, 38). Pois se tu és a cabeça, e estás vivo, olhe a
cabeça viva para a cabeça defunta, olhe a cabeça levantada para a cabeça caída,
olhe a cabeça para a caveira. Oh! se Roma fizesse o que não soube fazer Nabuco!
Oh! se a cabeça do mundo olhasse para a caveira do mundo! A caveira é maior que
a cabeça para que tenha menos lugar a vaidade, e maior matéria o desengano.
Isto fui, e isto sou? Nisto parou a grandeza daquele imenso todo, de que hoje
sou tão pequena parte? Nisto parou. E o pior é, Roma minha, se me dás licença
para que to diga, que não há de parar só nisto. Este destroço e estas ruínas
que vês tuas, não são as últimas: ainda te espera outra antes do fim do mundo
profetizado nas Escrituras. Aquela Babilônia de que fala S. João, quando diz no
Apocalipse: Cecidit, cecidit
Babylon (Ap 14, 8), é Roma, não pelo que hoje é,
senão pelo que há de ser. Assim o entendem S. Jerônimo, S. Agostinho, S.
Ambrósio, Tertuliano, Ecumênio,
Cassiodoro, e outros Padres, a quem seguem
concordemente intérpretes e teólogos [12]. Roma, a espiritual, é eterna, porque
Portae inferi non
praevalebunt adversus eam [13]. Mas Roma, a temporal, sujeita está como as
outras metrópoles das monarquias, e não só sujeita, mas condenada à catástrofe
das coisas mudáveis e aos eclipses do tempo. Nas tuas ruínas vês o que foste, nos
teus oráculos lês o que hás de ser, e se queres fazer verdadeiro juízo de ti
mesma pelo que foste e pelo que hás de ser, estima o que és.
Nesta mesma roda natural das coisas humanas, descobriu a
sabedoria de Salomão dois espelhos recíprocos, que podemos chamar do tempo, em
que se vê facilmente o que foi e o que há de ser. Quid
est quod fuit? Ipsum quod
futurum est. Quid est quod
factum est? Ipsum quod faciendum
est: Que é o que foi? Aquilo mesmo que há de ser.
Que é o que há de ser? Aquilo mesmo que foi (Ecl 1,
9). Ponde estes dois espelhos um defronte do outro, e assim como os raios do
ocaso ferem o oriente e os do oriente o ocaso, assim, por reverberação natural
e recíproca, achareis que no espelho do passado se vê o que há de ser, e no do
futuro o que foi. Se quereis ver o futuro, lede as histórias e olhai para o
passado; se quereis ver o passado, lede as profecias e olhai para o futuro. E
quem quiser ver o presente, para onde há de olhar? Não o disse Salomão, mas eu
o direi. Digo que olhe juntamente para um e para outro espelho. Olhai para o
passado e para o futuro, e vereis o presente. A razão ou conseqüência é
manifesta. Se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o passado, segue-se
que no passado e no futuro se vê o presente, porque o presente é o futuro do
passado, e o mesmo presente é o passado do futuro. Quid
est quod fuit? Ipsum quod
futurum est. Quid est quod
est? Ipsum quod fuit et
quod futurum est. Roma, o que foste, isso hás de ser; e o que foste,
e o que hás de ser, isso és. Vê-te bem nestes dois espelhos do tempo, e
conhecer-te-ás. E se a verdade deste desengano tem lugar nas pedras, quanto
mais nos homens. No passado foste pó? No futuro hás de ser pó? Logo, no
presente és pó: Pulvis es.
VI
O
memento dos mortos: lembre-se o pó caído que há de ser pó levantado. O pó que
foi homem, há de tornar a ser homem. Jó compara-se à
fênix e não à águia. O autor não teme a morte, teme a imortalidade, já
reconhecida pelos filósofos pagãos. Nem vivemos como mortais, nem vivemos como
imortais. A observação de Sêneca.
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Phoenix
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Este foi o memento dos vivos; acabo com o memento dos mortos. Aos
vivos disse: lembre-se o pó levantado que há de ser pó caído. Aos mortos digo:
lembre-se o pó caído que há de ser pó levantado. Ninguém morre para estar
sempre morto; por isso a morte nas Escrituras se chama sono. Os vivos caem em
terra com o sono da morte: os mortos jazem na sepultura dormindo, sem movimento
nem sentido, aquele profundo e dilatado letargo; mas quando o pregão da
trombeta final os chamar a juízo, todos hão de acordar e levantar-se outra vez.
Então dirá cada um com Davi: Ego dormivi, et soporatus sum,
et resurrexi [14].
Lembre-se pois o pó caído que há de ser pó levantado.
Este segundo memento é muito mais terrível que o primeiro. Aos
vivos disse: Memento homo quia pulvis
es, et in pulverem reverteris; aos
mortos digo com as palavras trocadas, mas com sentido igualmente
verdadeiro: Memento pulvis quia
homo es, et in hominem reverteris: lembra-te
pó que és homem, e que em homem te hás de tornar. Os que me ouviram já sabem
que cada um é o que foi e o que há de ser. Tu que jazes nesta sepultura, sabe-o
agora. Eu vivo, tu estás morto; eu falo, tu estás mudo; mas assim como eu sendo
homem, porque fui pó, e hei de tornar a ser pó, sou pó, assim tu, sendo pó,
porque foste homem, e hás de tornar a ser homem, és homem. Morre a águia, morre
a fênix, mas a águia morta não é águia, a fênix morta é fênix. E por que? A
águia morta não é águia porque foi águia, mas não há de tornar a ser águia. A
fênix morta é fênix, porque foi fênix, e há de tornar a ser fênix. Assim és tu
que jazes nessa sepultura. Morto sim, desfeito em cinzas sim, mas em cinzas
como as da fênix. A fênix desfeita em cinzas é fênix, porque foi fênix, e há de
tornar a ser fênix. E tu desfeito também em cinzas és homem, porque foste
homem, e hás de tornar a ser homem. Não é a proposição, nem comparação minha,
senão da Sabedoria e Verdade eterna. Ouçam os mortos a um morto que melhor que
todos os vivos conheceu e pregou a fé da imortalidade. In nidulo meo moriar,
et sicut phoenix multiplicabo dies meos: Morrerei no meu
ninho, diz Jó, e como fênix multiplicarei os meus
dias [15]. Os dias soma-os a vida, diminui-os a morte e multiplica-los a
ressurreição. Por isso Jó como vivo, como morto e
como imortal se compara à fênix. Bem pudera este grande herói, pois chamou
ninho à sua sepultura, comparar-se à rainha das aves, como rei que era.
Mas falando de si e conosco naquela medida em que todos somos
iguais, não se comparou à águia, senão à fênix, porque o nascer águia é fortuna
de poucos, o renascer fênix é natureza de todos. Todos nascemos pare morrer, e
todos morremos para ressuscitar. Para nascer antes de ser, tivemos necessidade
de pai e mãe que nos gerasse; pare renascer depois de morrer, como a fênix, o
mesmo pó em que se corrompeu e desfez o corpo, é o pai e a mãe de que havemos
de tornar a ser gerados. Putredini dixi: pater meus es, mater mea,
et soror mea vermibus [16]. Sendo pois
igualmente certa esta segunda metamorfose, como a primeira, preguemos também
aos mortos, como pregou Ezequiel, para que nos ouçam mortos e vivos (Ez 37, 4). Se dissemos aos vivos: lembra-te homem que és
pó, porque foste pó, e hás de tornar a ser pó — brademos com a mesma verdade
aos mortos que já são pó: lembra-te pó que és homem porque foste homem, e hás
de tornar a ser homem: Memento pulvis quia homo es, et
in hominem reverteris.
Senhores meus, não seja isto cerimônia: falemos muito seriamente,
que o dia é disso. Ou cremos que somos imortais, ou não. Se o homem acaba com o
pó, não tenho que dizer; mas se o pó há de tornar a ser homem, não sei o que
vos diga, nem o que me diga. A mim não me.faz medo o pó que hei de ser; faz
medo o que há de ser o pó. Eu não temo na morte a morte, temo a imortalidade;
eu não temo hoje o dia de cinza, temo hoje o dia de Páscoa, porque sei que hei
de ressuscitar, porque sei que hei de viver para sempre, porque sei que me
espera uma eternidade, ou no céu, ou no inferno. Scio
enim quod Redemptor meus vivit, et in novissimo die de terra surrecturus sum [17]. Scio, diz.
Notai. Não diz: Creio, senão, Scio, sei.
Porque a verdade e certeza da imortalidade do homem não só é fé, senão também
ciência. Por ciência e por razão natural a conheceram Platão, Aristóteles e
tantos outros filósofos gentios [18]. Mas que importava que o não alcançasse a
razão onde está a fé? Que importa a autoridade dos homens onde está o
testemunho de Deus? O pó daquela sepultura está clamando: De terra surrecturus sum, et rursum circumdabor
pelle mea, et in carne mea videbo Deum meum,
quem visurus sum ego ipse, et oculi
mei conspecturi sunt, et non
alius [19]. Este homem, este corpo, estes ossos,
esta carne, esta pele, estes olhos, este eu, e não outro, é o que há de morrer?
Sim; mas reviver e ressuscitar à imortalidade. Mortal até o pó, mas depois do
pó, imortal. Credis hoc?
Utique, Domine [20]. Pois que efeito faz em nós
este conhecimento da morte, e esta fé da imortalidade?
Quando considero na vida que se usa, acho que não vivemos como
mortais, nem vivemos como imortais. Não vivemos como mortais, porque tratamos
das coisas desta vida como se esta vida fora eterna. Não vivemos como imortais,
porque nos esquecemos tanto da vida eterna, como se não houvera tal vida. Se
esta vida fora imortal, e nós imortais, que havíamos de fazer, senão o que fazemos?
Estai comigo. Se Deus, assim como fez um Adão, fizera dois, e o segundo fora
mais sisudo que o nosso, nós havíamos de ser mortais como somos, e os filhos de
outro Adão haviam de ser imortais. E estes homens imortais, que haviam de fazer
neste mundo? Isto mesmo que nós fazemos. Depois que não coubessem no Paraíso, e
se fossem multiplicando, haviam-se de estender pela terra, haviam de conduzir
de todas as partes do mundo todo o bom, precioso e deleitoso que Deus para eles
tinha criado, haviam de ordenar cidades e palácios, quintas, jardins, fontes,
delícias, banquetes, representações, músicas, festas, e tudo aquilo que pudesse
formar uma vida alegre e deleitosa. Não é isto o que nós fazemos? E muito mais
do que eles haviam de fazer, porque o haviam de fazer com justiça, com razão,
com modéstia, com temperança; sem luxo, sem soberba, sem ambição, sem inveja; e
com concórdia, com caridade, com humanidade. Mas como se ririam de nós, e como
pasmariam de nós aqueles homens imortais! Como se ririam das nossas loucuras,
como pasmariam da nossa cegueira, vendo-nos tão ocupados, tão solícitos, tão
desvelados pela nossa vidazinha de dois dias, e tão esquecidos, e descuidados
da morte, como se fôramos tão imortais como eles! Eles sem dor, nem
enfermidade; nós enfermos e gemendo; eles vivendo sempre, nós morrendo; eles
não sabendo o nome à sepultura, nós enterrando uns a outros; eles gozando o
mundo em paz, e nós fazendo demandas e guerras pelo que não havemos de gozar.
Homenzinhos miseráveis — haviam de dizer — homenzinhos miseráveis, loucos,
insensatos; não vedes que sois mortais? Não vedes que haveis de acabar amanhã?
Não vedes que vos hão de meter debaixo de uma sepultura, e que de tudo quanto
andais afanando e adquirindo, não haveis de lograr mais que sete pés de terra?
Que doidice, que cegueira é logo a vossa? Não sendo como nós, quereis viver
como nós? — Assim é. Morimur ut mortales, vivimus ut immortales: morreremos como mortais que somos, e
vivemos como se fôramos imortais [21]. Assim o dizia Sêneca gentio à Roma
gentia. Vós a isto dizeis que Sêneca era um estóico. E não é mais ser cristão
que ser estóico? Sêneca não conhecia a imortalidade da alma; o mais a que
chegou foi a duvidá-la, e contudo entendia isto.
VII
Cuidar
da vida imortal. As duas portas da morte. Opinião de Aristóteles . A escada do
sonho de Jacó. No momento da morte não se teme a morte, teme-se a vida.
Resolução.
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Terribilis est locus iste!
A escada de Jacó |
Ora, senhores, já que somos cristãos, já que sabemos que havemos
de morrer e que somos imortais, saibamos usar da morte e da imortalidade.
Tratemos desta vida como mortais, e da outra como imortais. Pode haver loucura
mais rematada, pode haver cegueira mais cega que empregar-me todo na vida que
há de acabar, e não tratar da vida que há de durar para sempre? Cansar-me,
afligir-me, matar-me pelo que forçosamente hei de deixar, e do que hei de
lograr ou perder para sempre, não fazer nenhum caso! Tantas diligências para
esta vida, nenhuma diligência para a outra vida? Tanto medo, tanto receio da
morte temporal, e da eterna nenhum temor? Mortos, mortos, desenganai estes
vivos. Dizei-nos que pensamentos e que sentimentos foram os vossos quando
entrastes e saístes pelas portas da morte? A morte tem duas portas: Qui exaltas me de portis
mortis [22]. Uma porta de vidro, por onde se sai
da vida, outra porta de diamante, por onde se entra à eternidade. Entre estas
duas portas se acha subitamente um homem no instante da morte, sem poder tornar
atrás, nem parar, nem fugir, nem dilatar, senão entrar para onde não sabe, e
para sempre. Oh! que transe tão apertado! Oh! que passo tão estreito! Oh! que
momento tão terrível! Aristóteles disse que entre todas as coisas terríveis, a
mais terrível é a morte. Disse bem mas não entendeu o que disse. Não é terrível
a morte pela vida que acaba, senão pela eternidade que começa. Não é terrível a
porta por onde se sai; a terrível é a porta por onde se entra. Se olhais para
cima, uma escada que chega até o céu; se olhais para baixo, um precipício que
vai parar no inferno, e isto incerto.
Dormindo Jacó sobre uma pedra, viu aquela escada que chegava da
terra até o céu, e acordou atônito gritando: Terribilis
est locus iste! Oh! que terrível lugar é este (Gn 18, 17)! E por que é terrível, Jacó? Non
est hic aliud nisi domus Dei et porta caeli: Porque isto
não é outra coisa senão a porta do céu. — Pois a porta do céu, a porta da
bem-aventurança é terrível? Sim. Porque é uma porta que se pode abrir e que se
pode fechar. É aquela porta, que se abriu para as cinco virgens prudentes, e
que se fechou para as cinco néscias: Et clausa est janua
(Mt 25, 10). E se esta porta é terrível para quem olha só para cima, quão
terrível será para quem olhar para cima e mais para baixo? Se é terrível para
quem olha só para o céu, quanto mais terrível será para quem olhar para o céu e
para o inferno juntamente? Este é o mistério de toda a escada, em que Jacó não reparou
inteiramente, como quem estava dormindo. Bem viu Jacó que pela escada subiam e
desciam anjos, mas não reparou que aquela escada tinha mais degraus para descer
que para subir: para subir era escada da terra até o céu, para descer era
escada do céu até o inferno; para subir era escada por onde subiram anjos a ser
bem-aventurados, para descer era escada por onde desceram anjos a ser demônios.
Terrível escada para quem não sobe, porque perde o céu e a vista de Deus, e
mais terrível para quem desce, porque não só perdeu o céu e a vista de Deus,
mas vai arder no inferno eternamente. Esta é a visão mais que terrível que
todos havemos de ver; este o lugar mais que terrível por onde todos havemos de
passar, e por onde já passaram todos os que ali jazem. Jacó jazia sobre a
pedra; ali a pedra jaz sobre Jacó, ou Jacó debaixo da pedra. Já dormiram o seu
sono: Dormierunt somnum
suum (Sl 75, 6); já
viram aquela visão; já subiram ou desceram pela escada. Se estão no céu ou no
inferno, Deus o sabe; mas tudo se averiguou naquele momento.
Oh! que momento, torno a dizer, oh! que passo, oh! que transe tão
terrível! Oh que temores, oh! que aflição, oh! que angústias! Ali, senhores,
não se teme a morte, teme-se a vida. Tudo o que ali dá pena, é tudo o que nesta
vida deu gosto, e tudo o que buscamos por nosso gosto, muitas vezes com tantas
penas. Oh! que diferentes parecerão então todas as coisas desta vida! Que
verdades, que desenganos, que luzes tão claras de tudo o que neste mundo nos
cega! Nenhum homem há naquele ponto que não desejara muito uma de duas: ou não
ter nascido, ou tornar a nascer de novo, para fazer uma vida muito diferente.
Mas já é tarde, já não há tempo: Quia tempus non erit
amplius (Apc 10, 6).
Cristãos e senhores meus, por misericórdia de Deus ainda estamos em tempo. É
certo que todos caminhamos para aquele passo, é infalível que todos havemos de
chegar, e todos nos havemos de ver naquele terrível momento, e pode ser que
muito cedo. Julgue cada um de nós, se será melhor arrepender-se agora, ou
deixar o arrependimento para quando não tenha lugar, nem seja arrependimento.
Deus nos avisa, Deus nos dá estas vozes; não deixemos passar esta inspiração,
que não sabemos se será a última. Se então havemos de desejar em vão começar
outra vida, comecemo-la agora: Dixi: nunc caepi [23]. Comecemos de
hoje em diante a viver como quereremos ter vivido na hora da morte. Vive assim
como quiseras ter vivido quando morras. Oh! que consolação tão grande será
então a nossa, se o fizermos assim! E pelo contrário, que desconsolação tão
irremediável e tão desesperada, se nos deixarmos levar da corrente, quando nos
acharmos onde ela nos leva! É possível que me condenei por minha culpa e por
minha vontade, e conhecendo muito bem o que agora experimento sem nenhum
remédio? É possível que por uma cegueira de que me não quis apartar, por um
apetite que passou em um momento, hei de arder no inferno enquanto Deus for
Deus? Cuidemos nisto, cristãos, cuidemos nisto. Em que cuidamos, e em que não
cuidamos? Homens mortais, homens imortais, se todos os dias podemos morrer, se
cada dia nos imos chegando mais à morte, e ela a nós, não se acabe com este dia
a memória da morte. Resolução, resolução uma vez, que sem resolução nada se faz.
E para que esta resolução dure e não seja como outras, tomemos cada dia uma
hora em que cuidemos bem naquela hora. De vinte e quatro horas que tem o dia,
por que se não dará uma hora à triste alma? Esta é a melhor devoção e mais útil
penitência, e mais agradável a Deus, que podeis fazer nesta quaresma. Tomar uma
hora cada dia, em que só por só com Deus e conosco cuidemos na nossa morte e na
nossa vida. E porque espero da vossa piedade e do vosso juízo que aceitareis
este bom conselho, quero acabar deixando-vos quatro pontos de consideração para
os quatro quartos desta hora. Primeiro: quanto tenho vivido? Segundo: como
vivi? Terceiro: quanto posso viver? Quarto: como é bem que viva? Torno a dizer
para que vos fique na memória: Quanto tenho vivido? Como vivi? Quanto posso
viver? Como é bem que viva? Memento homo!
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Miércoles de Ceniza - 1881
Julian Fałat |
COMEÇA A QUARESMA
[1] Lembra-te homem, que és pó, e em pó te hás de converter.
[2] Aquele que é, e que era, e que há de vir (Apc 1,4).
[3] Eu disse: Sois deuses... Mas vós, como homens, morrereis (Sl 81,6s).
[4] Desde o ventre trasladado para a sepultura (Jó 10,19).
[5] Mas vós como homens morrereis, e caireis como um dos príncipes (Sl 81,7).
[6] Moço, eu te mando: levanta-te (Lc 7,14).
[7] Não dês crédito ao demasiado colorido.
[8] Hieronymus hic in quaest. Hebraic. Lyran. Hugo Abul. etc.
[9] Augustinus in sentent ultima.
[10] Aug. ibid.
[11] Também as pedras e os nomes morrem.
[12] Hier. Aug. Ambr. Tertullian. Ecumen. Cassiod. Bellar. Suar. et plures apud Cornelium ibi.
[13] As portas do inferno não prevalecerão contra ela (Mt 16,18).
[14] Eu dormi e estive sepultado no sono, e levantei-me (Sl 3,6)
[15] In textu graeco Job 29, 18.
[16] Eu disse à podridão: Tu és meu pai; e aos bichos: Vós sois minha mãe e minha irmã. (Jó 17, 14)
[17] Porque eu sei que o meu Remidor vive, eu no derradeiro dia surgirei da terra (Jó 19,25).
[18] Plat. in Timaeo. Philabo Menon. Et lib. de Rep. Aristotel. I de Anima cap. 4 et lib. 3, cap. 4 et lib. 2 de Gen. anim.
[19] Surgirei da terra, e serei novamente revestido da minha pele, e na minha própria carne verei a meu Deus, a quem eu mesmo hei de ver e meus olhos hão de contemplar, e não outro (Jó 19,25 ss).
[20] Crês isto? Sim, Senhor (Jo 11,26).
[21] Seneca. De Consolat. ad Marciam Ep. 57 et Ep. 117.
[22] Tu que me retiras das portas da morte (Sl 9,15).
[23] Disse: Agora começo (Sl 76,11).