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domingo, 26 de outubro de 2014

E que é a Verdade?

Encaminha-se de casa de Caifás toda a multidão, juízes e servos, arrastando a Jesus para o Pretório de Pôncio Pilatos, governador romano. Ao sair de Efraim tinha dito Nosso Senhor: “Vamo-nos a Jerusalém, onde o Filho do Homem tem de ser entregue aos chefes sacerdotes e aos doutores da Lei, que o hão de condenar à morte, e desampará-lo aos pagãos”. Alumiando todos os pormenores deste suplício hediondo, como se nos desvenda a majestade divina à luz das profecias?

Agitavam-se os judeus em burburinho às abas do Pretório, mas não entravam, com receio de se macularem no contato da casa de um pagão. Em tudo se reconhecem os fariseus que descreveu Jesus! Não lhes proibia a Lei que entrassem no lar de um pagão; era isso um uso puramente consuetudinário; proibia-lhes porém que matassem o inocente.

Saiu Pilatos fora e perguntou de que vinha acusado aquele homem. Bradaram-lhe que era um malfeitor, aliás não o teriam levado até ali. Respondeu Pilatos que o houvessem pois de julgar conforme suas leis. Retorquiram: “Sabeis que não nos é lícito matar seja quem for”. Logo, já o cetro não se erguia em Judá, e era chegada a era do Messias.

Tudo punham por obra para que Jesus fosse morto, os inimigos dele: preferiram contudo não ser oficialmente os seus julgadores. Conforme a Lei, só os haveriam podido condenar à lapidação; queriam porém submetê-lo nas ignomínias da cruz. O autor do livro da Sabedoria põe na boca dos iníquos que tramam perder o Justo: Condenemo-lo à morte mais oprobriosa. Por outra parte, forcejavam acautelar-se contra a possível indignação e resistência popular; porque toda aquela plebe vil, que até então conseguiram acirrar, não era ainda a força verdadeira. Logo que houvesse o governador assumindo a responsabilidade da condenação, mais se interessariam em fazer cumprir a sentença. Concordava o ódio dos judeus com a sua política no empenho de que “se cumprisse a palavra que proferira Jesus para indicar de que morte havia de morrer”.

Principiaram portanto a acusá-lo perante Pilatos, dizendo, “encontramo-lo pervertendo a nação, proibindo que se pagasse o tributo a Cesar, e assumindo os títulos de Cristo e de Rei”. Não havia cinco dias, tinha-lhes Cristo aconselhado: “Daí a Cesar o que é de Cesar”. 

 
Não lhes deu Pilatos inteiro crédito, se bem que, depois da acusação daquele gênero, impunha-lhe o seu cargo um simulacro ao menos de informação. Entrou para o palácio, mandou comparecer Jesus à sua presença, e perguntou-lhe: És tu o rei dos judeus?. Disse Jesus: “Perguntais isso por vós, ou alguém vo-lo sugeriu?”. Acaso serei eu judeu?, replicou Pilatos. Os teus patrícios é que te vêm pôr nas minhas mãos. Que fizeste?. Falara o juiz; continuou Jesus a sua resposta: “O meu reino não é deste mundo. Se o fosse, pugnariam os meus servos a fim de que eu não fosse entregue aos judeus; mas o meu reino não pertence aqui”. Ponderou Pilatos: Logo, és rei?. Volveu Jesus: “Vós o estais dizendo, sou rei”.

Já Davi tinha cantado: Pôs-me o Senhor como rei na montanha sagrada de Sião (a Igreja) para eu anunciar o seu mandamento. Jesus, ao concluir as suas respostas a Pilatos, descreve também por aquela forma a sua realeza: “Nasci e vim a este mundo para prestar testemunho à Verdade. Escuta a minha voz todo aquele que está do lado da Verdade”.

Disse então Pilatos: E que é a Verdade?

Não há em todo o Evangelho um passo único de mais frisante exação histórica do que nas perguntas de Pilatos. Não só pintou para todo o sempre os grandes e juízes do mundo, mas também nos aparece como compêndio prático de toda a filosofia e última palavra da sabedoria humana daquele tempo. Ao interrogar, não instava pela resposta aquele romano; bem supunha que a não havia. Encaminhou-se pois o Governador Pilatos para os acusadores de Jesus e disse-lhes: Eu não encontro crime neste homem.
Tal decisão, ao cabo de tão breve interrogatório, bem demonstra quanto o juiz conhecia já o réu e comprova que o não iludiam aqueles clamores dos judeus. Eles contudo continuaram no seu empenho de encarecer as culpas de Jesus e foram amontoando calúnias sobre calúnias. Jesus prosseguia calado, como o estivera na presença de Caifás; competia ao juiz o exigir provas. Pilatos, enleado no seu forçado papel, disse para Jesus: Não estás ouvindo que de coisas aduzem contra ti? Jesus porém nada replicava; o que levantava ao seu auge o espanto de Pilatos. Não acabava de entender como era que Jesus, depois de lhe haver dito o bastante para o esclarecer, nada mais tinha que dizer-lhe; nem como só competisse ao juiz a defesa do réu se o achava inocente. Tinha Pilatos a desgraça de muitos homens, a quem pouco importa saber o que seja a verdade e que até duvidam de que a verdade exista; achava-se pusilânime na presença da força da mentira. Perceberam os judeus que vantagem lhes trazia aquele fraquejar de Pilatos. Entraram a bradar ainda mais contra Jesus, dizendo: Está este homem sublevando o povo com as suas doutrinas, que tem vindo a pregar por toda a Judéia, desde a Galileia, onde principiou, até aqui.

Quando ouviu que assim falavam da Galileia, julgou Pilatos ter encontrado uma saída razoável. Como Jesus era Galileu, e nessa qualidade sujeito à jurisdição de Herodes, mandou-o à presença daquele príncipe, que ao tempo estanciava em Jerusalém.

Folgou Herodes de ver a Jesus, tendo para si que poderia acaso presenciar-lhe algum milagre. Pôs-se a inquiri-lo, com grande verbosidade; ao que Jesus não dava a mínima resposta [eu creio que seja mais por causa do grande São João Batista, assassinado pela luxúria desse mau rei!], nem tampouco aos acusadores que o tinham seguido até lá. Ressentidos de tão porfiado silêncio, o príncipe e os seus áulicos trataram a Jesus com sumo escárnio, como já tinha feito a vilanagem da casa de Caifás. Vestiram-lhe uma vestidura branca, à maneira da que usavam os doidos, e devolveram-no a Pilatos, agradecendo a este a sua cortesia. Nessa ocasião Herodes e Pilatos, que dantes eram inimigos, reconciliaram-se.

Contudo o governador teimava em não matar a Jesus. Não se atrevendo a usar da sua autoridade, fantasiou uma proposta de conciliação com os judeus. Bem sabeis, lhes disse ele, que neste homem não encontrei um só dos crimes que lhe assacais; Herodes também não. Por isso entendo que lhe não cabe a pena última. Mandá-lo-ei portanto castigar e soltá-lo-ei.

Tal era a justiça de Pilatos! Contudo, ou por não se lhe figurar seguro esse expediente, ou por lhe parecer odioso, propôs mais outro.

Por ocasião da solenidade da Páscoa, tinha o povo o direito de soltar um preso. Jazia então na masmorra de Jerusalém certo famoso malfeitor, por nome Barrabás, acusado de roubo, sedição e homicídio. Deu-lhes Pilatos a escolha: libertarem a Barrabás ou a Jesus. Mandou a mulher do governador aconselhá-lo a que não se ingerisse na causa daquele justo; e instava com seu marido, pois andava ainda assombrada de sonhos e visões que a tal respeito a haviam angustiado.

Não tardou o pronto desengano a Pilatos. Por um lado, tinham os fariseus continuado a enredar o povo, por outra parte, Barrabás, com ser ladrão, turbulento e assassino, gozava de certa aura popular. A plebe, nota Orígenes, mira-se no espelho de Barrabás. Nas aparências há sediciosos, matadores e ladrões; mas quantos mais são isso tudo no íntimo da alma?! Hão de requerer sempre indulgência para os Barrabás, porque todo aquele que pratica o mal, ou intenta praticá-lo, insiste na prisão de Cristo e na soltura de Barrabás. Observam outros intérpretes que o nome de Barrabás significa “filho de seu amo”; e que o amo e senhor de toda aquela gentiaga, segundo as próprias palavras de Jesus, vinha a ser Satanás. Quando, pois, Pilatos fez tal proposta, ouviu com espanto vociferar a turba: Queremos Barrabás! Então, gritou ele, que pretendeis que eu faça ao rei dos judeus, a este Jesus, por alcunha o Cristo? Tornaram eles: Crucificai-o! Crucificai-o!.

Era a crucifixão o suplício dos escravos, pois aquela horda de escravos, esse mesmo suplício exigia para aquele que lhes predissera: A verdade vos libertará.

Ainda objetou Pilatos. Mas que mal fez ele? Não vejo por que merecesse morrer. E tornando ao seu propósito primitivo, acrescentou: Pois bem; vou mandá-lo castigar e despedi-lo. Ao que os judeus renovaram os seus clamores, gritando sempre: Crucificai-o! Crucificai-o! venha para cá o preso Barrabás!

Entrou Pilatos a recear deveras o mau êxito de todo este caso, para ele Pilatos em pessoa. Já de outra vez noutra circunstância grave, o tinham vencido em Jerusalém, e em Roma, as rancorosas insistências dos judeus. Deu ordem pois para soltarem Barrabás e açoitarem Jesus.

Costumava a flagelação preceder a execução das sentenças capitais. Desnudava-se o paciente e açoitavam-no quatro algozes, açoitavam-no sem conta, com disciplinas [açoites] de couro armadas de bolinhas de chumbo ou garras de ferro. Tão bárbaro era de per si este suplício que muita vez bastava para acabar logo ali com o paciente.

Quando terminaram, quiseram os soldados romanos, por iniciativa própria e instigados dos judeus, divertir-se à custa de Nosso Senhor, como o fizeram em casa de Caifás e de Herodes. Cingiram-no de farrapos escarlates; coroaram-no de espinhos; entre as mãos amarradas colocaram-lhe, à laia de cetro, uma cana verde; e ajoelhados ou prostrados diziam-lhe: Salve, rei dos judeus! Depois, como se até dessas honrarias falsas se corressem, cuspiam-lhe, esbofeteavam-no, arrancavam-lhe da mão a cana e davam-lhe com ela na cabeça. Sinistro anúncio era aquele das iras dos renegados! Naquela ânsia de afogar em vilipêndios o Filho de Deus, naquela tolerância dos poderosos para com os acintes miseráveis sugeridos pelos escribas, avulta o caráter mais acentuado, e o mais profético, também da Paixão!

E tudo sofria calado, sem uma queixa, sem um volver de rosto, o supliciado Jesus! Mudo como o cordeirinho a quem degolam conforme o símbolo dos profetas antigos.
Quando Pilatos entendeu, de si para consigo, que já bastava e que de tanto sangue deviam já dar-se por satisfeitos os judeus, saiu do pretório e bradou-lhes: ora, agora aqui vo-lo trago; sabei que nele não encontro crime algum.

E apresentou Jesus, todo a escorrer sangue, todo rasgado, coroado de espinhos, manietado, com os ombros adornados da púrpura irrisória e disse: Ecce homo! Eis o homem!

Calou-se o povo. Os ministros do templo e da Lei e os seus sequazes gritaram: Crucificai-o! Irritado Pilatos retorquiu: pois crucificai-o vós; eu por mim não lhe encontro culpas. Era esta a
quarta declaração que fazia da inocência de Cristo; e não será a última. Ponderam os judeus: Temos lei, e segundo ela, há de por força morrer, pois se fez Filho de Deus.

Ao crime político, rejeitado por Pilatos, substituíam crime religioso.
Redobraram àquele dito as perplexidades e os terrores íntimos do pagão. Era evidente que lograra Jesus inspirar-lhe insólito respeito. Aquele sábio, de quem soavam tantas maravilhas, aquele herói da paciência, aquele homem inocente e puro, não poderia acaso ser filho de alguma divindade?! Levou Pilatos Jesus outra vez para dentro do Pretório, e perguntou-lhe: Donde és tu? Jesus não respondeu. Insistiu Pilatos: Recusas-te a falar? Pois não sabes que tenho poder para te crucificar, ou para te pôr em liberdade?

Jesus então, mostrando a sua dó para com aquele poderoso do mundo, dignou-se de responder-lhe: “Nenhum poder teríeis em mim, se lá de cima vos não viesse. Por isso é que o pecado de quem a vós me entregou é ainda maior que o vosso”.
Frase de perdão; e Pilatos que tanto podia aproveitar-se dela! Desgraçadamente, vencia-o mais uma vã comiseração, do que um verdadeiro sentimento de justiça. Buscava, certo é, a maneira de livrar Jesus, mas sempre com o fim em não se comprometer a si próprio. Não encontrou saída. Gritaram-lhe os judeus: se o largais, não servis a César, porque Jesus arvorou-se Rei; e quem se arvora em Rei ataca César.

Agora levantaram uma acusação de lesa-majestade, crime irremovível perante Tibério e acerca do qual todas as delações eram bem-vindas.

Não soube resistir a esse assalto derradeiro à consciência debilíssima de Pilatos. Continuou no entretanto a protestar. Sentara-se no seu Pretório, por fora; mandou chamar novamente Jesus à presença dos judeus, e disse-lhes: Eis aqui o vosso Rei. E eles em altos brados vociferavam: Morra! Morra! Crucificai-o! Quê? Pois hei de eu crucificar o vosso monarca? Objetou Pilatos. Responderam os príncipes dos sacerdotes: não temos outro rei senão César.

Mais diretamente ainda demonstram ter chegado a era do Messias, e recusam-na! Hão de vir afinal a conhecer quem lhe antepõem, e que soberanos são Barrabás e César.

Recrescia o tumulto. Declarou-se Pilatos afinal. Quis porém atestar pela última vez a inocência de Jesus e atestar não menos a sua pusilanimidade própria. Mandou que lhe trouxessem água; e lavando as mãos diante do povo, exclamou: Por mim, fico inocente do sangue desse justo; os responsáveis dele sois vós. Responderam: recaia o sangue dele sobre nós e nossos filhos!

Então Pilatos entregou-lhes às mãos Jesus, para dele fazerem o que lhes aprouvesse.

Em Belém, despontavam novas virtudes; aqui eram crimes novos, exemplares cada vez mais abjetos do ódio à justiça, e do desprezo à verdade. Que descendência hão de procriar aquele Judas, aquele Caifás, aquele Herodes, aquela turba! Quantas vezes nos traidores e apóstatas há de transparecer a face hedionda deste Pilatos, cuja consciência absolve a Cristo, cuja covardia porém o crucifica!

Vida de Jesus, Luis Veuillot, Vol. II, Editora Jornal dos Livros.

Fonte: http://permanencia.org.br/drupal/node/98


   
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