Conferência
pronunciada pelo Arcebispo Dom Marcel Lefebvre em Buenos Aires, a 13 de agosto
de 1981.
Senhoras e senhores:
Sempre sinto grande alegria
quando volto a esta formosa República Argentina. Já começo a conhecer o país,
mas, infelizmente, não posso falar-lhes em espanhol e terei de recorrer ao
padre Michel Faure para fazer-me entender.
Sabemos que se formulam muitas
perguntas acerca de minha atitude na Igreja, de minha posição na Igreja. Qual é
a atitude de Monsenhor Lefebvre na Igreja Católica?
Qual é a situação da Fraternidade
Sacerdotal São Pio X no seio da Igreja?
Quero responder a estas perguntas
da maneira mais exata e correta. Para isso, creio que devemos considerar
brevemente qual é a situação atual da Igreja e, dessa maneira, explicar as
razões de nossa atitude e posição.
Penso que, me encontrando ante um
auditório seleto, ante um auditório profundamente católico, profundamente
cristão, não me será necessário insistir sobre qual foi a situação da Igreja
até o Concílio Vaticano II. Pode-se dizer que, de modo geral, a Igreja, os
homens da Igreja, nos tempos do Papa Pio XII, a quem conheci pessoalmente
quando fui Delegado Apostólico para a África Francesa, eram muito diferentes
dos atuais. Tive oportunidade de encontrar-me frequentemente com Pio XII, todos
os anos, durante onze anos.
Posso dizer que, de maneira
geral, nas Congregações Romanas e no Vaticano, existia um sentido muito
profundo da fé católica. Trabalhava-se realmente para o reinado da Fé de Nosso
Senhor Jesus Cristo, reinado sobre as pessoas, sobre as famílias e sobre a
sociedade.
Certamente, os senhores sabem que,
há quatro séculos, realizaram-se grandes esforços para lutar contra essa
doutrina católica, contra essa Fé na Igreja, mas o certo é que quando alguém ia
ao Vaticano, verificava que a Fé Católica estava viva em todas essas
Congregações romanas, e ali se encontrava um apoio considerável, sobretudo para
um bispo missionário como eu era.
Naquela época, se necessitássemos
esclarecer nossa fé sobre algum ponto da doutrina, era suficiente consultar a
Congregação do Santo Ofício, para obter resposta clara e precisa, conforme a Fé
da Igreja e seu magistério. Não havia vacilação.
Do mesmo modo, para conhecer que
tipo de relações queria manter o Vaticano entre a Santa Sé e as sociedades
civis, era suficiente dirigir-se à Secretaria de Estado que tinha, então,
princípios muito claros e precisos em face dos Estados que não eram católicos
ou com relação aos Estados inteiramente católicos.
Lembro-me, por exemplo, de que no
tempo do general Franco, na Espanha, o Papa Pio XII dizia-me que nunca se
realizara uma concordata tão conforme com a doutrina católica como a concordata
celebrada com o governo espanhol. Da parte do Santo Padre, dizer isso é algo
extraordinário.
Em todos esses domínios
experimentava-se, então, a sabedoria secular da Igreja, de nossa Santa Madre
Igreja, como se podem sentir a sabedoria e a proteção da Santíssima Virgem
Maria para com os seus filhos. Quando os princípios das relações entre o
Vaticano e os Estados estavam imbuídos da Fé Católica, não existiam
dificuldades, no que se refere às relações dos Estados com a Igreja.
Quando os Estados eram católicos,
a Santa Sé contava com o apoio dos chefes de Estado, no que toca à sua missão
de salvar as almas, aos quais pedia que Nosso Senhor Jesus Cristo reinasse na
sociedade. Quando os chefes de Estado redigiam uma constituição, consignavam no
primeiro artigo que “a religião católica é a única reconhecida oficialmente
pelo Estado”. Assim, cumpria-se o que desejava a Santa Sé: o reinado de Nosso
Senhor Jesus Cristo, para a salvação das almas, não para ter influência
temporal nesses Estados.
Quando se tratava de Estados que
não eram católicos, por exemplo, o Senegal, onde estive durante quinze anos
como Arcebispo, para 3.500.000 habitantes havia 3.000.000 de muçulmanos e
500.000 animistas, 100.000 dos quais, felizmente, se converteram à Fé católica.
Éramos, por conseguinte, uma pequena minoria, e que fazia a Igreja neste caso?
Enviava sacerdotes, bispos, religiosos e religiosas, irmãos das escolas
cristãs, irmãos que se dedicavam a ensinar o povo, de maneira que lentamente,
seguramente, os que não criam em Nosso Senhor Jesus Cristo, convertiam-se à
Igreja, transformavam-se em cristãos, ainda que ao preço do sangue desses
pregadores.
Quantos desses missionários
enviados pela Igreja, no curso dos séculos, foram chacinados, mortos porque
diziam que Nosso Senhor Jesus Cristo devia ser o Rei das pessoas, o Rei da
sociedade!
Esses missionários, a Igreja
colocou-os nos altares e considerou-os mártires.
Igualmente, a Igreja colocou nos
altares muitos santos, santos Papas, santos bispos, santos sacerdotes,
religiosos, religiosas, pais de família, mães de família, reis, rainhas,
pobres.
A Igreja mostrava, assim, o
exemplo dessas pessoas que haviam trabalhado, cada uma em seu meio, que haviam
trabalhado no curso de sua vida para santificar-se pelo Reinado de Nosso Senhor
Jesus Cristo e para estabelecer seu reinado nas almas. Todos esses reis e
rainhas que foram canonizados nos dão exemplos extraordinários que bem poderiam
ser adotados em nossos dias.
Quão orgulhosos estaríamos de
ter, atualmente, exemplos de reis e rainhas que viveram como santos! Que
exemplo para o mundo inteiro! Conservou a Igreja essa postura até os tempos de
Pio XII.
Mas, infelizmente, devemos
reconhecer que algo mudou na Igreja. Certamente, quando digo Igreja, tenho
consciência de que a Igreja não pode mudar, já que a Igreja será sempre eterna,
santa, universal, católica e apostólica.
Destarte, quando falo da Igreja,
entenda-se que não quero atacar a Igreja. Tenho imensa veneração pela Igreja e
julgo que continuo sempre trabalhando por ela, como o fiz nos tempos de Pio XI
e Pio XII. No entanto, não podemos deixar de reconhecer que algo importante se
alterou na Igreja.
Se procurarmos as primeiras
causas da situação atual, se investigarmos quem é o primeiro autor destas
modificações encontraremos o primeiro inimigo, o grande inimigo de Nosso Senhor
Jesus Cristo, seu inimigo visceral, o próprio Satanás. O demônio lutou sempre
contra Nosso Senhor Jesus Cristo e julgou que triunfava no momento da
Crucificação, no momento do Calvário, mas ali também foi derrotado, por isso
persistiu em atacar o Corpo Místico de Cristo, a Santa Igreja Católica, e
então, desde o princípio e durante três séculos, houve milhares e milhares de
cristãos martirizados, que deram testemunho da Fé, de sua Fé em Nosso Senhor
Jesus Cristo.
Vieram depois as heresias, os
cismas, os ataques contra a Fé, as divisões suscitadas pelo demônio, e assim,
desgraçadamente, milhões de cristãos separaram-se da Igreja.
Inventou também Satanás falsas
religiões, que tornaram impossível a conversão de povos inteiros, dificultando
assim o trabalho das missões. Foi essa a obra do demônio durante quinze
séculos, podemos dizer que até o momento da Revolução Francesa.
Até essa época, o demônio
trabalhava como inimigo da Igreja, para destruí-la de fora dela mesma, e assim
subtraiu povos inteiros ao Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo e levou-os às
portas do inferno. Depois, para atacar com mais segurança a Igreja, que era
defendida por seus filhos e governada pelos que se chamavam tenentes de Nosso
Senhor Jesus Cristo, pelos príncipes católicos, Satanás atacou os próprios
governos dos Estados católicos e desatou uma perseguição contra esses Estados
católicos, cuja consequência é já não haver Estados católicos.
Os Estados ateus, os Estados que
não professavam nenhuma religião, perseguiram a Igreja Católica, que foi
atacada, então, pelos mesmos Estados leigos que se haviam convertido em Estados
anticatólicos. Constituiu isso êxito considerável para Satanás, no interior
desses Estados, dessas universidades, dessas escolas, nas quais formou gerações
imbuídas de liberalismo, de modernismo, de ateísmo, de sorte que chegou o
momento, para Satanás, de apoderar-se desses Estados. Todos os ambientes
católicos deixaram-se penetrar por esse clima.
O Papa São Pio X, em sua primeira
encíclica de 1904, diz textualmente: “Agora o inimigo não está fora da Igreja,
mas dentro dela mesma”, e São Pio X designa os lugares em que se encontra o
inimigo: o inimigo está nos seminários, ele infiltrou-se nos seminários, entre
os professores dos seminários. Está claro isso: é São Pio X mesmo quem o diz.
Cinquenta anos antes desse texto
de São Pio X, o Papa Pio IX mostrou aos bispos o plano das sociedades secretas
e pediu que se publicassem as atas das sociedades secretas italianas. Nesses
documentos pode-se ler: de agora em diante penetraremos nas paróquias, nos
bispados e nos seminários e termos assim párocos, bispo e cardeais, que serão
nossos discípulos e desses cardeais esperamos ter um dia um Papa, que estará
imbuído de nossa ideia e que não parecerá ter sido eleito pelas sociedades
secretas. Assim, o povo cristão crerá seguir a tiara de Pedro, mas estará
seguindo a nós.
Cinquenta anos depois, este plano
satânico realiza-se segundo as próprias palavras de São Pio X, e, desde então,
não somente as sociedades secretas revelaram este plano e esta atividade, como
também a própria Santíssima Maria, em Fátima e em La Salette, predisse que um
dia o inimigo subiria até os mais altos postos da Igreja. Isto significa algo
muito grave: talvez não se tenha de remontar ao próprio Papa, mas até os postos
de mando da Igreja.
E assim chegamos ao Concílio
Vaticano II, no qual os que estavam imbuídos destas ideias modernistas acabariam
por triunfar.
Fui testemunha, particularmente,
numa última sessão do Conselho preparatório do Concílio (pois eu era membro da
Comissão Central, na qual havia setenta cardeais e vinte bispos, entre os quais
eu me incluía como presidente da Conferência Episcopal da África Francesa) de
uma violenta discussão entre o Cardeal Bea e o Cardeal Ottaviani sobre o
documento da liberdade religiosa. Estes dois cardeais defrontaram-se de tal
modo que o Cardeal Ruffini (do Bispado de Palermo) teve de intervir, dizendo
que lamentava assistir a uma discussão tão grave entre dois cardeais, membros
do Colégio de Cardeais, e que a única solução era apelar para a autoridade
superior, isto é, o Papa. Nesta sessão, o cardeal Bea intitulou sua tese: “De
libertate religiosa” (Acerca da liberdade religiosa); ao contrário, o
Cardeal Ottaviani denominou-a: “Acerca da tolerância religiosa”. Vê-se que o
Cardeal Ottaviani defendeu a tese tradicional da Igreja, e o Cardeal Bea, a tese
liberal. Ambas foram submetidas à votação. Os cardeais votaram e comprovamos,
de acordo com os resultados, que eles estavam totalmente divididos. Uns eram
liberais e apoiavam o Cardeal Bea, e outros eram conservadores e tradicionalistas
e apoiavam o Cardeal Ottaviani. Ocorreu assim, conforme vimos no Concílio, que
os liberais ganharam. Não se pode negar que os liberais dominaram o Concílio
Vaticano II, lastimavelmente com o apoio de Sua Santidade, Paulo VI.
Percebeu-se isso claramente ao
conhecer os nomes dos quatro moderadores que o Papa Paulo VI nomeou. Estes
moderadores eram os Cardeais Agagianian, Suenens, Dopfner e Lercaro. Destes um
só era conservador: era o Cardeal Agagianian. Ele não falava, permanecia
silencioso. Era um homem tímido, muito discreto, que falava pouco e não deixava
sentir sua influência. O Cardeal Lercaro era bispo de Florença, e seu Vigário
Geral era membro do Partido Comunista. O Cardeal Suenens, por sua parte, só
Deus sabe o que fez antes e depois do Concílio para divulgar suas ideias
liberais. Por exemplo: deu conferências no Canadá a favor do casamento dos
sacerdotes. O Cardeal Dopfner, de seu lado, mostrava um ecumenismo bem
acentuado. Ele mesmo dizia que primeiro era a oração em comum entre protestantes
e católicos e depois se poderia falar de doutrina. Isso fez com que a maioria
dos bispos que tomavam parte do Concílio seguisse a minoria liberal que se
assenhoreou, de fato, do Concílio. Eram estes os três moderadores do Concílio
indicados pela Cátedra de São Pedro, e isso demonstra que orientação tinha ela.
Seriam necessárias várias horas
para poder mostrar-lhes como os liberais dominaram os acontecimentos do
Concílio Vaticano II. Para que os senhores possam conhecer, por si mesmos, os
fatos, parece-me oportuno aconselhar-lhes a leitura de um livro do Padre Ralph
Wiltgen, “O Reno deságua no Tibre”, escrito originalmente em inglês e logo
traduzido para outros idiomas (francês, italiano e alemão), onde se mostra
imparcialmente, já que seu autor não era, falando propriamente, um
tradicionalista, a imagem do combate que se travou entre liberais e alguns
conservadores que ainda podiam falar.
Não podemos esquecer que o Papa
João XXIII pediu expressamente aos cardeais da Cúria Romana, que eram sem
dúvida os mais tradicionais, que não interviessem nas discussões do Concílio.
De fato, os cardeais romanos, ainda que tenham integrado as comissões, não
falaram mais. Foi um golpe duríssimo para os grupos conservadores que se
mantinham fiéis à Tradição da Igreja Católica, que não eram inovadores, que não
eram modernistas.
Reunimo-nos em um pequeno grupo
depois do segundo ano de Concílio: Monsenhor Sigaud, Monsenhor Castro Mayer
(Bispo de Campos) e eu, e começamos a trabalhar a fim de reunir os bispos que
pudessem opor-se a esse grande perigo que surgia dentro da Igreja. Nunca
chegamos a superar o número de duzentos e cinquenta.
Quero dar-lhes apenas um exemplo
do que foi o Concílio: fizemos o possível para que o Concílio Vaticano II
condenasse o comunismo. Sendo um concílio pastoral (não devemos esquecer que o
Concílio Vaticano II foi um concílio pastoral), isto é, um concílio que tem
como preocupação principal a salvação das almas, que tem como objetivo destruir
os erros que ameaçam as almas, era necessário, sem dúvida, que este Concílio se
opusesse ao perigo mais grave da nossa época, como é o comunismo, um perigo que
se estende por todo o mundo.
Este Concílio, onde se reuniam
2.500 bispos responsáveis pela Igreja Católica, não foi capaz de condenar
formalmente o comunismo!
Nós, por nossa parte, envidamos
todos os esforços possíveis para que se condenasse o comunismo. Conseguimos
reunir 450 assinaturas para pedir essa condenação. Monsenhor Sigaud e eu
procuramos Monsenhor Felici, Secretário do Concílio, levando as assinaturas que
havíamos reunido dentro do tempo fixado pelo regulamento interno, para que se
propusesse aos padres conciliares a condenação do comunismo. Quando Monsenhor
Garrone, que era o relator do Concílio, fez referência a este documento, disse
que apenas um bispo havia apresentado a possibilidade de que se condenasse o
comunismo, e nós conseguíramos 450 adesões! Monsenhor Garrone declarou que não
tinha ouvido falar disso. Sabemos que Monsenhor Glorieux, que era um dos
secretários do Concílio, deu sumiço à lista das assinaturas, de modo que não
conseguimos outras para apresentar aos padres conciliares. Ante essa situação,
pensamos dirigir-nos aos cardeais e aos bispos da cortina de ferro: o Cardeal
Wyszynsky, o Cardeal Beran e o Cardeal Slipyi, que tinham sido perseguidos pelo
comunismo e por ele aprisionados. Julgávamos que se lográssemos o apoio destes
três cardeais, talvez pudéssemos obter cerca de mil assinaturas. Fomos os dois
ver os citados cardeais. Havíamos preparado um projeto, com redação muito
cuidada a cargo do Monsenhor Carli, no qual se pedia que os padres conciliares
condenassem o comunismo.
Em primeiro lugar, fomos ver o
Cardeal Beran que, no momento, era arcebispo de Praga. Disse-nos: Estou
totalmente de acordo com os senhores, quero assinar o documento, mas não
sozinho. Se o assinar sozinho, os comunistas vão atacar minha família na
Tchecoslováquia. Desejo assinar, mas quero que outros bispos, outros cardeais
apoiem também esta posição, porque, sendo muitos, lhe será muito mais difícil
atacar-me. Finalmente, apôs sua assinatura, e prometemos-lhe que, se nenhum
outro bispo aceitasse a declaração, lhe devolveríamos sua assinatura. Fomos
procurar o Cardeal Slipyi que vivia no Vaticano, atrás da sacristia de São
Pedro. Quando lhe apresentamos o documento, ele nos disse: Estou totalmente de
acordo com os senhores. Se há erro que devemos condenar é o comunismo. Já sabem
qual é a minha posição, mas sou hóspede do Vaticano e estou certo de que lá em
cima (apontando a cúpula de São Pedro) não querem que se condene o comunismo.
Sei disso muito bem. Finalmente, procuramos o Cardeal Wyszynsky e, não o
encontrando onde habitava, falei-lhe pelo telefone. Declarou-me: o senhor sabe
qual foi minha intervenção no Concílio sobre esse assunto. Pedi que se
redigisse um documento completo para condenar o comunismo e ninguém me apoiou;
minha proposição foi rejeitada, já não pretendo intervir. Nessa altura vimo-nos
obrigados a devolver ao Cardeal Beran sua assinatura. Esta é a verdadeira
história do documento de condenação do comunismo que nunca foi aprovado pelo
Concílio. Este único exemplo mostra o que foi o Concílio Vaticano II, um
concílio em que se reuniram 2.500 padres e que não enfrentou o comunismo, o
maior inimigo de Deus, da Igreja, de todo o princípio espiritual. Um Concílio
que atua desse modo, condena-se a si próprio.
Se lhes desse todos os pormenores
dessa coligação e da forma como se perpetrou a condenação de meu seminário e da
Fraternidade Sacerdotal São Pio X, os senhores ficariam estupefatos. Dou-lhes
simplesmente isso: quando da visita que realizaram ao Seminário de Ecône,
Suíça, dois bispos enviados por Roma, fui convidado por três cardeais para
fornecer algumas informações complementares. Esta reunião não constituía, de
modo algum, um julgamento eclesiástico. Pode dizer-se que era, simplesmente,
uma visita de cortesia.
No começo da entrevista, a que
estavam presentes o Cardeal Garrone e o Cardeal Wright e o Cardeal espanhol Tavera,
o Cardeal Garrone perguntou-me: Monsenhor, podemos gravar esta conversação?
Disse-lhes que poderiam gravá-la, desde que, posteriormente, me fornecessem uma
cópia da gravação. Ele me disse que certamente a cópia me seria dada.
No entanto, acabada a conferência,
quando pedi a cópia da entrevista, negaram-na. Um segundo exemplo que demonstra
o que foi essa conversa com os cardeais romanos: querendo saber quem havia
nomeado esses cardeais para entrevistarem-se comigo, se constituíam uma
comissão, se se tratava de uma iniciativa particular ou se era algo que o Papa
havia ordenado — e que eu de nada sabia, não tinha nenhum documento, nenhuma
nota oficial e nunca se havia feito nada parecido no Vaticano — dirigi-me ao
Cardeal Staffa que era o presidente da Assinatura Apostólica do Tribunal Romano
e apresentei um recurso de queixa. Paguei os emolumentos exigidos por esse
tribunal romano para apresentar a queixa e deram-me um recibo.
Tendo feito isso, o Cardeal
Villot, Secretário de Estado naquela época, escreveu uma carta, de seu próprio
punho, ao Cardeal Staffa, proibindo-o de entregar-me qualquer documento e
ordenando-lhe encerrar imediatamente o processo. Vemos como o poder executivo
imiscuiu-se na esfera do poder judicial. Algo que jamais sucedera na Igreja
impediu que o Cardeal Staffa julgasse minha proposição. Assim, a Fraternidade,
seus seminários e eu próprio fomos condenados sem processo, sem julgamento, sem
documentos e sem que eu pudesse relacionar essa condenação com a visita dos
dois monsenhores a Ecône.
Eu mesmo tive a oportunidade de
dizer ao Papa João Paulo II (já o havia dito ao Papa Paulo VI) que a forma pela
qual fora condenado era pior do que a que utilizavam os soviéticos. Eles, pelo
menos, criam a farsa de um tribunal. Em meu caso nem isso foi permitido. De
fato, eu devia fechar meus seminários, expulsar imediatamente meus
seminaristas, no meio do ano, que cursavam seus estudos, e depois despedir todos
os professores. Os senhores compreendem que uma situação como esta só pode
atribuir-se à ocupação da Igreja pelo modernismo, que persegue os
tradicionalistas.
Recordam os senhores a história
do cardeal Mindszenty. A maneira como esse cardeal foi tratado pelo Vaticano
pode considerar-se ignóbil. O Cardeal Mindszenty, herói de seu povo, que quis
permanecer durante largos anos em sua terra, asilado na embaixada dos Estados
Unidos, para ficar ao lado de seu povo, foi tratado pelas Congregações Romanas,
pela Cúria Romana, pior do que fora tratado pelos soviéticos. Outro exemplo é o
do Cardeal Slipyi que me disse, ele mesmo, ter sido mais bem tratado na Ucrânia
(Soviética) do que em Roma. Mais outro exemplo: o Cardeal Wyszynsky, quando em
Roma, era vigiado e não podia circular livremente pela cidade. Tudo isso mostra
uma perseguição totalmente ignóbil. Por quê? Porque esses três cardeais eram
tradicionalistas. Então, quando nos dizem: deveis obedecer, nós lhes
respondemos: não queremos obedecer aos inimigos da Igreja, não quero obedecer
àqueles que destroem à Igreja. Não o admito.
O que o Papa Paulo VI intitulou
“autodemolição da Igreja” nada mais é do que aquilo que fazem os próprios
bispos e sacerdotes dentro da Igreja Católica. E eu não pretendo contribuir
para a demolição da Igreja.
É triste o que acabo de
dizer-lhes, mas os cardeais que atualmente estão em Roma, cujos nomes os
senhores conhecem bem, continuam essa nova política, essa nova atitude da
Igreja, contrária à Tradição de Cristo. Quer pela liturgia, quer pelo
ensinamento ou pelo catecismo, quer pela política em geral da Igreja em face
dos Estados e das sociedades civis, impôs-se uma orientação completamente nova.
Tudo mudou na Igreja.
Isso é bem claro na liturgia.
Alteraram-se, subverteram-se todos os nossos sacramentos, suprimiram-se todos
os livros antigos e substituíram-nos por novos livros. Não se trata de uma
reforma como a de São Pio V, que teve como objetivo limpar a liturgia da missa
das sedimentações acumuladas durante séculos, as quais não estavam muito de
acordo com a tradição. A reforma de São Pio X teve o mesmo sentido: podaram-se
os elementos que se lhe haviam aderido durante os anos precedentes e que não
eram muito conformes com a Tradição para que se voltasse ao seio da tradição.
Agora, contudo, se trata da supressão da Tradição, duma nova concepção da
Missa, concepção que é mais protestante do que católica, que foi avalizada pela
presença de seis pastores protestantes chamados para transformar nossa Missa...
É coisa nova no tratamento da
Missa, da Santa Missa de sempre: chamar seis pastores protestantes para que
venham mudá-la. Que podiam dizer esses pastores protestantes quando se lhes
perguntou: que quereis que mudemos na Missa? Alinhar nossa liturgia com a
liturgia protestante. É este o sentido do diálogo de que tanto se fala: uma
atitude gravíssima que corresponde a um princípio geral, o de considerar a
religião dos outros tão verdadeira quanto a nossa. Consequentemente, considerar
que a religião católica não é a única religião pela qual alguém pode salvar-se,
a única religião divina fundada por Deus, fundada por Nosso Senhor Jesus
Cristo, com orientação perfeitamente distinta das outras. É inconcebível.
A própria Igreja pediu aos
Estados que não sejam mais Estados católicos, que suprimam o primeiro artigo de
suas Constituições, que diz: “A religião católica é a única religião reconhecida
pelo Estado”. Foi a própria Santa Sé que pediu isso aos diferentes Estados, e
por isso já não há Estados católicos. Isso acabou. Porque a Santa Sé deseja que
todas as religiões sejam reconhecidas igualmente em todos os Estados, que todas
as religiões sejam iguais perante o Estado. É uma orientação completamente nova
da Igreja. Jamais a Igreja aceitou, jamais a Igreja tomou esta posição. Jamais
aceitou a Igreja que se ponha em pé de igualdade Nosso Senhor Jesus Cristo,
Buda, Lutero e todos esses fundadores de falsas religiões.
Sob o aspecto político, os
senhores sabem perfeitamente que, em quase todo o mundo, os Bispados favorecem
positivamente a revolução comunista e o socialismo.
Na França, a eleição de Mitterand
deveu-se em grande parte aos esforços dos bispos e sacerdotes que pediram que
os fiéis votassem no socialismo. Resultado: temos quatro ministros comunistas, e
isso com o apoio de bispos e clérigos. É inimaginável. Roma não interveio para
evitar que na França se constituísse este governo socialista. Um governo que é,
de fato e nos fatos, ateu militante; que pretende monopolizar todo o ensino e
que, consequentemente, porá as mãos em todas as escolas católicas.
Quando tive oportunidade de
viajar ao México, em janeiro passado, publicou-se um documento do Episcopado
mexicano no qual se apoiava expressamente a revolução de El Salvador, a ponto
de solicitar aos católicos mexicanos que contribuíssem ora com armas para lutar
contra o governo, ora com dinheiro para ajudar a revolução. Aonde vamos? Que
Igreja é esta? Dizem-nos: os senhores desobedecem, mas devemos obedecer?
Devemos obedecer a esses bispos? Acaso representam a Igreja? Sem dúvida ainda
há bons bispos e que por isso são perseguidos. Os senhores têm um exemplo em
sua pátria. Monsenhor Tortolo, que jamais chegou a Cardeal e que poderia ter
sido Arcebispo de Buenos Aires. Outro exemplo é o do Monsenhor Morcillo,
arcebispo de Madri, a quem conheci muito bem. Jamais foi cardeal. Diziam-lhe: o
senhor não pode ser cardeal, por que a diocese primaz da Espanha é a diocese de
Toledo, logo só ao Arcebispo de Toledo corresponde ser cardeal. Imediatamente
após a morte do Monsenhor Morcillo, Monsenhor Taracon, que era Arcebispo de Madri,
foi elevado ao cardinalato. Todos os secretários do Concílio foram nomeados
cardeais, mas Monsenhor Morcillo, que também era secretário, jamais foi
nomeado.
O Cardeal Siri, que foi
presidente da Conferência Episcopal Italiana, um mês após a eleição de Paulo VI
foi destituído de seu cargo. Isto significa que se exerceu perseguição
constante contra todos os bispos que defendem ou defenderiam a Tradição na
Igreja. Temos de reconhecer que há inimigos da Igreja que ocuparam a Igreja. A
IGREJA ESTÁ OCUPADA.
Conhecem muito bem o Cardeal
Pironio. Tendo as ideias e as atitudes que tem, foi nomeado Presidente da
Congregação dos Religiosos!
Outro exemplo é o Cardeal Knox,
que é, de fato, sacrílego. Durante o Congresso Eucarístico de Melbourne
(encontrava-me na Austrália, embora não tenha assistido ao Congresso),
realizou-se a chamada missa Kamburu. Que é uma missa Kamburu? Mandou chamar a
povoação primitiva, que vive no interior da Austrália, homens vestidos de
maneira que os senhores podem imaginar, que dançaram no estrado que se havia
preparado para a Missa, junto do altar; bailaram suas danças primitivas,
enquanto se pronunciavam as palavras da Consagração. O que fez este homem é um
sacrilégio, e este homem foi nomeado Prefeito da Congregação do Culto. Que pode
fazer este homem à frente de tal Congregação?
O Cardeal Baggio, por exemplo,
que foi Núncio Apostólico no Chile e teve de abandonar o país por razões que
não o favoreciam (basta que perguntem ao governo do Chile quais foram essas
razões) é agora encarregado da nomeação dos bispos.
O Cardeal Casaroli, atual
Secretário de Estado, encontra-se na lista da loja maçônica P. 2 publicada
pelos periódicos. Não sou eu que o digo, são os jornais italianos.
Como se pode conceber que a
Igreja continue sua tarefa de santificação por meio desses homens? Enquanto
estiverem à testa da Igreja, nós, os tradicionalistas, seremos sempre perseguidos,
e a Igreja continuará sua autodemolição.
Concluo. De nossa parte, nós já
escolhemos, e dessa escolha não nos afastamos [grifo meu]. Queremos continuar na Igreja de
sempre. Queremos permanecer fiéis aos 250 Papas que defenderam a Tradição e a
Fé Católica. Queremos continuar o sacerdócio da Igreja, e é por isso que
seguiremos ordenando sacerdotes, malgrado a proibição de Roma. Queremos ordenar
verdadeiros sacerdotes, para que eles continuem rezando a verdadeira Missa, por
todo o mundo e ao longo da história. Isto é indispensável.
Todas essas reformas liturgias
foram feitas por esse mau espírito de Ecumenismo, de falso ecumenismo. É por
isso que a fé desapareceu e não há vocações.
Tive a felicidade de ordenar mais
de 100 jovens sacerdotes, membros da Fraternidade Sacerdotal São Pio X[1] (em
2005 já são mais de 400).
No próximo mês de outubro
contaremos com 270 seminaristas, que pertencem aos cinco seminários que foram
fundados nos últimos dez anos[2].
Os senhores sabem que começamos as obras de um seminário aqui, na República
Argentina, a 40 km de Buenos Aires, na localidade de La Reja, onde já contamos
com 20 vocações, sem citar os seminaristas que, já tendo feito o ano de
espiritualidade no Seminário da Argentina, prosseguem hoje os seus estudos em
Ecône (Suíça), em Albano (Itália), ou os que têm vocação monástica, que
prosseguem os estudos em Bedoin e S. Michel em Brenne (França)[3].
Deste seminário em Buenos Aires
ocupa-se, particularmente, o Padre Michel Faure, e seu diretor é o Padre
Morello. Queremos construir aqui um seminário capaz de albergar 120
seminaristas que virão de todos os países hispano-americanos, para perpetuar
esse sacerdócio de que lhes falo, para continuar a fé católica nessas terras.
Aonde irão vossos filhos, se já não existem escolas católicas? Nas escolas
católicas atuais ensinam-lhes princípios contrários a fé, ensinam-lhes educação
sexual...
Nós já fizemos nossa eleição, não
a mudaremos, porque queremos ser e queremos morrer católicos [grifo meu].
Fonte: Permanência
[1]
Em 2005 já são mais de 450 sacerdotes.
[2]
Hoje são seis seminários: Suíça, França, Alemanha, EUA, Argentina, Nova
Zelândia.
[3]
As casas religiosas amigas e próximas da Fraternidade já são incontáveis: 6
carmelos femininos, Irmãs da Fraternidade S. Pio X, 3 mosteiros beneditinos
(Bellaigue, na França; Sta Cruz, no Brasil e N.Sra de Guadalupe, EUA);
dominicanos de Avrillé (França), dominicanas professoras de Brignolle e de
Fanjeaux, as duas casas mães são na França, mas estão em diversos países;
Capuchinhos de Morgon (França), os irmãos da Familia Beatae Mariae Virginis, do
Pe. Jahir, na Bahia, Brasil e muitos outros.
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