Da solidão do coração
Ecce elongavi fugiens, et mansi in solitudine – "Eis que me afastei fugindo e permaneci na solidão" (Ps. 54, 8).
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I.
A solidão favorece muito o recolhimento de espírito. Observa, porém,
São Gregório que pouco ou nada serve estar com o corpo num lugar deserto
e ficar com o coração cheio de pensamentos e afetos mundanos. Para que
uma alma pertença toda a Deus, duas coisas são precisas: primeira,
desapegar o afeto de todas as criaturas, segunda, consagrar todo o amor a
Deus, e é nestas duas coisas que consiste a solidade do coração.
Em
primeiro lugar, portanto, é preciso desapegar o coração de todo o afeto
terrestre. Dizia São Francisco de Sales: "Se eu soubesse que em meu
coração havia uma fibra que não fosse de Deus, quisera logo arrancá-la".
Enquanto se não limpar e purificar o coração de todo o afeto terrestre,
não pode nele entrar o amor de Deus para o possuir todo. Pelo seu amor
Deus quer reinar em nosso coração, mas quer reinar ali sozinho. Não
admite rivais que lhe roubem parte do afeto, que ele com justiça exige
todo para si. – Certas almas queixam-se de que em todos os seus
exercícios de devoção não acham Deus e não sabem que meios devam
empregar para o acharem. Santa Teresa, porém, ensina-lhes o meio
acertado, dizendo: Desapega teu coração de todas as criaturas, busca Deus e achá-lo-ás.
Para
se separarem das criaturas e tratar somente com Deus, muitos não podem
retirar-se para os desertos, conforme talvez quisessem. Compreendamos
bem, que para gozarmos da solidão do coração, não são precisos desertos.
Os que se virem obrigados a tratar com o mundo, desde que tenham o
coração livre de apegos ao mundo, poderão possuir a solidão do coração e
estar unidos com Deus até no meio das ruas, das praças e dos tribunais.
– É necessário, todavia que o espírito se eleve muitas vezes a Deus,
para o que serve o uso freqüente das orações jaculatórias. A respeito
destas, escreve São Francisco de Sales que suprem a falta de todas as
outras orações, mas que todas as outras orações não podem suprir a falta
das jaculatórias.
II. Vacate et videte, quoniam ego sum Deus (1) – "Cessai e vede que eu sou Deus".
Para que obtenhamos a luz divina que nos faça conhecer a bondade de
Deus, mister é que nos desfaçamos de todos os apegos terrestres. Como um
vaso de cristal, repleto de areia, não deixa passar os raios do sol,
assim tampouco pode um coração apegado ao dinheiro, às dignidades
terrestres, aos prazeres sensuais, receber em si a luz divina; e não
conhecendo a Deus, não o ama. Qualquer que seja o estado de vida, deve
cada um, a fim de que as criaturas não o distraiam, aplicar-se a cumprir
exatamente os seus deveres; mas pelo mais faça como se no mundo
houvesse somente ele e Deus.
Devemo-nos
desapegar de tudo e particularmente de nós mesmos, contrariando sempre o
nosso amor próprio. Por exemplo: agrada-nos tal objeto, desfaçamo-nos
dele exatamente por que nos agrada. Alguma pessoa nos ofendeu; devemos
fazer-lhe bem, exatamente porque nos ofendeu. Numa palavra, devemos
querer o que Deus quer, e não querer o que Deus não quer, sem
preferência por esta ou tal outra coisa, enquanto não soubermos ser
vontade de Deus que a desejemos. – Se alguma criatura quiser entrar para
tomar posse de nosso coração, devemos logo recusar-lhe a entrada, e,
dirigindo-nos ao nosso soberano Bem, dizer-lhe: Quid mihi est in coelo, et a te quid volui super terram (2) – "Que tenho eu no céu? E fora de ti que desejarei eu sobre a terra?"
Não,
meu Jesus, não quero que as criaturas tenham parte em meu coração; Vós
deveis ser seu único Senhor e possui-lo todo. Procure quem quiser as
delicias e as grandezas desta terra; na vida presente e na futura sereis
Vós a minha única riqueza, o meu único bem, o meu único amor. E já que
me amais, como vejo pelas provas que me dais, ajudai-me a desapegar-me
de tudo que me possa afastar do vosso amor. Fazei com que minha alma se
ocupe toda em Vos agradar, a Vós que sois o objeto único de todos os
meus afetos. Tomai posse do meu coração todo inteiro; possuí e
governai-me todo e fazei-me pronto a executar em tudo a vossa vontade. –
Ó Mãe de Deus, Maria, em Vós confio; as vossas orações me devem fazer
pertencer todo a Jesus. (II 296.)
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1. Ps. 45, 11.
2. Ps. 72, 25.
(LIGÓRIO,
Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo
III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do
ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 173 - 175.)
Fonte: São Pio V, de Klaus Kürten
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Fonte: São Pio V, de Klaus Kürten
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