São Boaventura, Do perfeito amor de Deus
A exemplo de São Francisco, Santa Clara e suas filhas também querem chegar ao cimo da montanha da perfeição do amor. A propósito disso, transcrevemos parte do VII capítulo (“Do perfeito amor de Deus”) de um interessantíssimo opúsculo que São Boaventura escreveu à abadessa das Irmãs do convento de Assis, sobre “A perfeição da vida”:
Não é possível excogitar um meio mais apto e mais fácil para mortificar os vícios, para progredir na graça, para atingir o auge de todas as virtudes do que a caridade. Por isso diz Próspero, no seu livro “Sobre a vida Contemplativa”: “A caridade é a vida das virtudes e a morte dos vícios”. Como a cera se derrete diante do fogo, assim os vícios perecem diante da caridade. Porque a caridade possui tanto poder que só ela fecha o Inferno, só ela abre o Céu, só ela dá a esperança da salvação, só ela nos torna dignos do amor de Deus. Tal poder possui a caridade que entre todas as virtudes só ela é chamada propriamente virtude. Quem a possui é rico, tem abundância, é feliz. [...] E diz Santo Agostinho: ‘Se a virtude conduz a uma vida bem-aventurada, eu quisera afirmar em absoluto que nada é propriamente virtude senão o sumo amor de Deus’. Sendo, por conseguinte, o amor de Deus uma virtude tão elevada, cumpre insistir em alcançá-lo acima de todas as demais virtudes; porém, não um amor qualquer, mas só aquele com que Deus é amado sobre todas as coisas e o próximo por amor de Deus. O modo de amar a teu Criador ensina-o o teu esposo no Evangelho: ‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma e de todo o teu espírito’. Repara bem, caríssima serva de Jesus Cristo, que amor o teu dileto esposo exige de ti. Quer o teu amado que ao seu amor dediques todo o teu coração, toda a tua alma, todo o teu espírito, de sorte que absolutamente ninguém, em todo o teu coração, em toda a tua alma, em todo o teu espírito, tenha parte com Ele. Que, pois, fará para amares o Senhor teu Deus realmente de todo o coração? Que quer dizer: de todo o coração? Vê como São João Crisóstomo ensina: “Amar a Deus de todo o coração significa não estar o teu coração inclinado a nenhuma outra coisa mais do que ao amor de Deus; não te comprazeres nas coisas desse mundo mais do que em Deus, nem nas honras, nem mesmo nos pais. Se, todavia, o teu coração se ocupar em alguma destas coisas, já não O amas de todo o coração”. Peço-te, serva de Cristo, não te iludas. Fica sabendo que, se amas alguma coisa, e não a amas em Deus e por Deus, já não O amas de todo o coração. Por isso diz Santo Agostinho: “Senhor, menos te ama quem ama alguma coisa Contigo”. Se amas alguma coisa que não te faz progredir no amor de Deus, não O amas de todo coração. E se, por amor de alguma coisa, negligencias aquilo que deves a Cristo, já não O amas de todo o coração. Ama, pois, o Senhor teu Deus de todo o coração.
Não somente de todo o coração, mas também de toda a alma devemos amar a Jesus Cristo, Nosso Deus e Senhor. Que significa: de toda a alma? Vai dizê-lo Santo Agostinho: “Amar a Deus de toda a alma é amá-lO com toda a vontade, sem restrições”. Amarás, certamente, de toda a alma, se sem contradição e de boa vontade fizeres não o que tu queres, nem o que aconselha o mundo, nem o que te inspira a carne, mas aquilo que reconheceres como sendo a vontade de Deus. Amarás, de fato, a Deus de toda a tua alma quando por amor de Jesus Cristo entregares de boa vontade tua vida à morte, sendo necessário. Se nisto, porém, faltares, já não amas de toda a alma. Ama, pois, ao Senhor teu Deus de toda a tua alma, isto é, faze a tua vontade sempre em conformidade com a vontade divina.
Entretanto, não só de todo o coração, não só de toda a alma, deves amar o teu esposo, Jesus Cristo. Ama-O também de todo o teu espírito. Que quer dizer: de todo o teu espírito? Di-lo novamente Santo Agostinho: “Amar a Deus de todo o espírito, é amá-lO com toda a memória, sem esquecimento”.
(In “Obras Escolhidas”. p. 433-435).
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