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sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Mons. Lefebvre: "Nós já fizemos nossa eleição"



Conferência pronunciada pelo Arcebispo Dom Marcel Lefebvre em Buenos Aires, a 13 de agosto de 1981.


Senhoras e senhores:

Sempre sinto grande alegria quando volto a esta formosa República Argentina. Já começo a conhecer o país, mas, infelizmente, não posso falar-lhes em espanhol e terei de recorrer ao padre Michel Faure para fazer-me entender.

Sabemos que se formulam muitas perguntas acerca de minha atitude na Igreja, de minha posição na Igreja. Qual é a atitude de Monsenhor Lefebvre na Igreja Católica?

Qual é a situação da Fraternidade Sacerdotal São Pio X no seio da Igreja?

Quero responder a estas perguntas da maneira mais exata e correta. Para isso, creio que devemos considerar brevemente qual é a situação atual da Igreja e, dessa maneira, explicar as razões de nossa atitude e posição.

Penso que, me encontrando ante um auditório seleto, ante um auditório profundamente católico, profundamente cristão, não me será necessário insistir sobre qual foi a situação da Igreja até o Concílio Vaticano II. Pode-se dizer que, de modo geral, a Igreja, os homens da Igreja, nos tempos do Papa Pio XII, a quem conheci pessoalmente quando fui Delegado Apostólico para a África Francesa, eram muito diferentes dos atuais. Tive oportunidade de encontrar-me frequentemente com Pio XII, todos os anos, durante onze anos.

Posso dizer que, de maneira geral, nas Congregações Romanas e no Vaticano, existia um sentido muito profundo da fé católica. Trabalhava-se realmente para o reinado da Fé de Nosso Senhor Jesus Cristo, reinado sobre as pessoas, sobre as famílias e sobre a sociedade.

Certamente, os senhores sabem que, há quatro séculos, realizaram-se grandes esforços para lutar contra essa doutrina católica, contra essa Fé na Igreja, mas o certo é que quando alguém ia ao Vaticano, verificava que a Fé Católica estava viva em todas essas Congregações romanas, e ali se encontrava um apoio considerável, sobretudo para um bispo missionário como eu era.

Naquela época, se necessitássemos esclarecer nossa fé sobre algum ponto da doutrina, era suficiente consultar a Congregação do Santo Ofício, para obter resposta clara e precisa, conforme a Fé da Igreja e seu magistério. Não havia vacilação.

Do mesmo modo, para conhecer que tipo de relações queria manter o Vaticano entre a Santa Sé e as sociedades civis, era suficiente dirigir-se à Secretaria de Estado que tinha, então, princípios muito claros e precisos em face dos Estados que não eram católicos ou com relação aos Estados inteiramente católicos.

Lembro-me, por exemplo, de que no tempo do general Franco, na Espanha, o Papa Pio XII dizia-me que nunca se realizara uma concordata tão conforme com a doutrina católica como a concordata celebrada com o governo espanhol. Da parte do Santo Padre, dizer isso é algo extraordinário.

Em todos esses domínios experimentava-se, então, a sabedoria secular da Igreja, de nossa Santa Madre Igreja, como se podem sentir a sabedoria e a proteção da Santíssima Virgem Maria para com os seus filhos. Quando os princípios das relações entre o Vaticano e os Estados estavam imbuídos da Fé Católica, não existiam dificuldades, no que se refere às relações dos Estados com a Igreja.

Quando os Estados eram católicos, a Santa Sé contava com o apoio dos chefes de Estado, no que toca à sua missão de salvar as almas, aos quais pedia que Nosso Senhor Jesus Cristo reinasse na sociedade. Quando os chefes de Estado redigiam uma constituição, consignavam no primeiro artigo que “a religião católica é a única reconhecida oficialmente pelo Estado”. Assim, cumpria-se o que desejava a Santa Sé: o reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo, para a salvação das almas, não para ter influência temporal nesses Estados.

Quando se tratava de Estados que não eram católicos, por exemplo, o Senegal, onde estive durante quinze anos como Arcebispo, para 3.500.000 habitantes havia 3.000.000 de muçulmanos e 500.000 animistas, 100.000 dos quais, felizmente, se converteram à Fé católica. Éramos, por conseguinte, uma pequena minoria, e que fazia a Igreja neste caso? Enviava sacerdotes, bispos, religiosos e religiosas, irmãos das escolas cristãs, irmãos que se dedicavam a ensinar o povo, de maneira que lentamente, seguramente, os que não criam em Nosso Senhor Jesus Cristo, convertiam-se à Igreja, transformavam-se em cristãos, ainda que ao preço do sangue desses pregadores.

Quantos desses missionários enviados pela Igreja, no curso dos séculos, foram chacinados, mortos porque diziam que Nosso Senhor Jesus Cristo devia ser o Rei das pessoas, o Rei da sociedade!

Esses missionários, a Igreja colocou-os nos altares e considerou-os mártires.

Igualmente, a Igreja colocou nos altares muitos santos, santos Papas, santos bispos, santos sacerdotes, religiosos, religiosas, pais de família, mães de família, reis, rainhas, pobres.

A Igreja mostrava, assim, o exemplo dessas pessoas que haviam trabalhado, cada uma em seu meio, que haviam trabalhado no curso de sua vida para santificar-se pelo Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo e para estabelecer seu reinado nas almas. Todos esses reis e rainhas que foram canonizados nos dão exemplos extraordinários que bem poderiam ser adotados em nossos dias.

Quão orgulhosos estaríamos de ter, atualmente, exemplos de reis e rainhas que viveram como santos! Que exemplo para o mundo inteiro! Conservou a Igreja essa postura até os tempos de Pio XII.

Mas, infelizmente, devemos reconhecer que algo mudou na Igreja. Certamente, quando digo Igreja, tenho consciência de que a Igreja não pode mudar, já que a Igreja será sempre eterna, santa, universal, católica e apostólica.

Destarte, quando falo da Igreja, entenda-se que não quero atacar a Igreja. Tenho imensa veneração pela Igreja e julgo que continuo sempre trabalhando por ela, como o fiz nos tempos de Pio XI e Pio XII. No entanto, não podemos deixar de reconhecer que algo importante se alterou na Igreja.

Se procurarmos as primeiras causas da situação atual, se investigarmos quem é o primeiro autor destas modificações encontraremos o primeiro inimigo, o grande inimigo de Nosso Senhor Jesus Cristo, seu inimigo visceral, o próprio Satanás. O demônio lutou sempre contra Nosso Senhor Jesus Cristo e julgou que triunfava no momento da Crucificação, no momento do Calvário, mas ali também foi derrotado, por isso persistiu em atacar o Corpo Místico de Cristo, a Santa Igreja Católica, e então, desde o princípio e durante três séculos, houve milhares e milhares de cristãos martirizados, que deram testemunho da Fé, de sua Fé em Nosso Senhor Jesus Cristo.

Vieram depois as heresias, os cismas, os ataques contra a Fé, as divisões suscitadas pelo demônio, e assim, desgraçadamente, milhões de cristãos separaram-se da Igreja.

Inventou também Satanás falsas religiões, que tornaram impossível a conversão de povos inteiros, dificultando assim o trabalho das missões. Foi essa a obra do demônio durante quinze séculos, podemos dizer que até o momento da Revolução Francesa.

Até essa época, o demônio trabalhava como inimigo da Igreja, para destruí-la de fora dela mesma, e assim subtraiu povos inteiros ao Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo e levou-os às portas do inferno. Depois, para atacar com mais segurança a Igreja, que era defendida por seus filhos e governada pelos que se chamavam tenentes de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelos príncipes católicos, Satanás atacou os próprios governos dos Estados católicos e desatou uma perseguição contra esses Estados católicos, cuja consequência é já não haver Estados católicos.

Os Estados ateus, os Estados que não professavam nenhuma religião, perseguiram a Igreja Católica, que foi atacada, então, pelos mesmos Estados leigos que se haviam convertido em Estados anticatólicos. Constituiu isso êxito considerável para Satanás, no interior desses Estados, dessas universidades, dessas escolas, nas quais formou gerações imbuídas de liberalismo, de modernismo, de ateísmo, de sorte que chegou o momento, para Satanás, de apoderar-se desses Estados. Todos os ambientes católicos deixaram-se penetrar por esse clima.

O Papa São Pio X, em sua primeira encíclica de 1904, diz textualmente: “Agora o inimigo não está fora da Igreja, mas dentro dela mesma”, e São Pio X designa os lugares em que se encontra o inimigo: o inimigo está nos seminários, ele infiltrou-se nos seminários, entre os professores dos seminários. Está claro isso: é São Pio X mesmo quem o diz.

Cinquenta anos antes desse texto de São Pio X, o Papa Pio IX mostrou aos bispos o plano das sociedades secretas e pediu que se publicassem as atas das sociedades secretas italianas. Nesses documentos pode-se ler: de agora em diante penetraremos nas paróquias, nos bispados e nos seminários e termos assim párocos, bispo e cardeais, que serão nossos discípulos e desses cardeais esperamos ter um dia um Papa, que estará imbuído de nossa ideia e que não parecerá ter sido eleito pelas sociedades secretas. Assim, o povo cristão crerá seguir a tiara de Pedro, mas estará seguindo a nós.

Cinquenta anos depois, este plano satânico realiza-se segundo as próprias palavras de São Pio X, e, desde então, não somente as sociedades secretas revelaram este plano e esta atividade, como também a própria Santíssima Maria, em Fátima e em La Salette, predisse que um dia o inimigo subiria até os mais altos postos da Igreja. Isto significa algo muito grave: talvez não se tenha de remontar ao próprio Papa, mas até os postos de mando da Igreja.

E assim chegamos ao Concílio Vaticano II, no qual os que estavam imbuídos destas ideias modernistas acabariam por triunfar.

Fui testemunha, particularmente, numa última sessão do Conselho preparatório do Concílio (pois eu era membro da Comissão Central, na qual havia setenta cardeais e vinte bispos, entre os quais eu me incluía como presidente da Conferência Episcopal da África Francesa) de uma violenta discussão entre o Cardeal Bea e o Cardeal Ottaviani sobre o documento da liberdade religiosa. Estes dois cardeais defrontaram-se de tal modo que o Cardeal Ruffini (do Bispado de Palermo) teve de intervir, dizendo que lamentava assistir a uma discussão tão grave entre dois cardeais, membros do Colégio de Cardeais, e que a única solução era apelar para a autoridade superior, isto é, o Papa. Nesta sessão, o cardeal Bea intitulou sua tese: “De libertate religiosa” (Acerca da liberdade religiosa); ao contrário, o Cardeal Ottaviani denominou-a: “Acerca da tolerância religiosa”. Vê-se que o Cardeal Ottaviani defendeu a tese tradicional da Igreja, e o Cardeal Bea, a tese liberal. Ambas foram submetidas à votação. Os cardeais votaram e comprovamos, de acordo com os resultados, que eles estavam totalmente divididos. Uns eram liberais e apoiavam o Cardeal Bea, e outros eram conservadores e tradicionalistas e apoiavam o Cardeal Ottaviani. Ocorreu assim, conforme vimos no Concílio, que os liberais ganharam. Não se pode negar que os liberais dominaram o Concílio Vaticano II, lastimavelmente com o apoio de Sua Santidade, Paulo VI.

Percebeu-se isso claramente ao conhecer os nomes dos quatro moderadores que o Papa Paulo VI nomeou. Estes moderadores eram os Cardeais Agagianian, Suenens, Dopfner e Lercaro. Destes um só era conservador: era o Cardeal Agagianian. Ele não falava, permanecia silencioso. Era um homem tímido, muito discreto, que falava pouco e não deixava sentir sua influência. O Cardeal Lercaro era bispo de Florença, e seu Vigário Geral era membro do Partido Comunista. O Cardeal Suenens, por sua parte, só Deus sabe o que fez antes e depois do Concílio para divulgar suas ideias liberais. Por exemplo: deu conferências no Canadá a favor do casamento dos sacerdotes. O Cardeal Dopfner, de seu lado, mostrava um ecumenismo bem acentuado. Ele mesmo dizia que primeiro era a oração em comum entre protestantes e católicos e depois se poderia falar de doutrina. Isso fez com que a maioria dos bispos que tomavam parte do Concílio seguisse a minoria liberal que se assenhoreou, de fato, do Concílio. Eram estes os três moderadores do Concílio indicados pela Cátedra de São Pedro, e isso demonstra que orientação tinha ela.

Seriam necessárias várias horas para poder mostrar-lhes como os liberais dominaram os acontecimentos do Concílio Vaticano II. Para que os senhores possam conhecer, por si mesmos, os fatos, parece-me oportuno aconselhar-lhes a leitura de um livro do Padre Ralph Wiltgen, “O Reno deságua no Tibre”, escrito originalmente em inglês e logo traduzido para outros idiomas (francês, italiano e alemão), onde se mostra imparcialmente, já que seu autor não era, falando propriamente, um tradicionalista, a imagem do combate que se travou entre liberais e alguns conservadores que ainda podiam falar.

Não podemos esquecer que o Papa João XXIII pediu expressamente aos cardeais da Cúria Romana, que eram sem dúvida os mais tradicionais, que não interviessem nas discussões do Concílio. De fato, os cardeais romanos, ainda que tenham integrado as comissões, não falaram mais. Foi um golpe duríssimo para os grupos conservadores que se mantinham fiéis à Tradição da Igreja Católica, que não eram inovadores, que não eram modernistas.

Reunimo-nos em um pequeno grupo depois do segundo ano de Concílio: Monsenhor Sigaud, Monsenhor Castro Mayer (Bispo de Campos) e eu, e começamos a trabalhar a fim de reunir os bispos que pudessem opor-se a esse grande perigo que surgia dentro da Igreja. Nunca chegamos a superar o número de duzentos e cinquenta.

Quero dar-lhes apenas um exemplo do que foi o Concílio: fizemos o possível para que o Concílio Vaticano II condenasse o comunismo. Sendo um concílio pastoral (não devemos esquecer que o Concílio Vaticano II foi um concílio pastoral), isto é, um concílio que tem como preocupação principal a salvação das almas, que tem como objetivo destruir os erros que ameaçam as almas, era necessário, sem dúvida, que este Concílio se opusesse ao perigo mais grave da nossa época, como é o comunismo, um perigo que se estende por todo o mundo.

Este Concílio, onde se reuniam 2.500 bispos responsáveis pela Igreja Católica, não foi capaz de condenar formalmente o comunismo!

Nós, por nossa parte, envidamos todos os esforços possíveis para que se condenasse o comunismo. Conseguimos reunir 450 assinaturas para pedir essa condenação. Monsenhor Sigaud e eu procuramos Monsenhor Felici, Secretário do Concílio, levando as assinaturas que havíamos reunido dentro do tempo fixado pelo regulamento interno, para que se propusesse aos padres conciliares a condenação do comunismo. Quando Monsenhor Garrone, que era o relator do Concílio, fez referência a este documento, disse que apenas um bispo havia apresentado a possibilidade de que se condenasse o comunismo, e nós conseguíramos 450 adesões! Monsenhor Garrone declarou que não tinha ouvido falar disso. Sabemos que Monsenhor Glorieux, que era um dos secretários do Concílio, deu sumiço à lista das assinaturas, de modo que não conseguimos outras para apresentar aos padres conciliares. Ante essa situação, pensamos dirigir-nos aos cardeais e aos bispos da cortina de ferro: o Cardeal Wyszynsky, o Cardeal Beran e o Cardeal Slipyi, que tinham sido perseguidos pelo comunismo e por ele aprisionados. Julgávamos que se lográssemos o apoio destes três cardeais, talvez pudéssemos obter cerca de mil assinaturas. Fomos os dois ver os citados cardeais. Havíamos preparado um projeto, com redação muito cuidada a cargo do Monsenhor Carli, no qual se pedia que os padres conciliares condenassem o comunismo.

Em primeiro lugar, fomos ver o Cardeal Beran que, no momento, era arcebispo de Praga. Disse-nos: Estou totalmente de acordo com os senhores, quero assinar o documento, mas não sozinho. Se o assinar sozinho, os comunistas vão atacar minha família na Tchecoslováquia. Desejo assinar, mas quero que outros bispos, outros cardeais apoiem também esta posição, porque, sendo muitos, lhe será muito mais difícil atacar-me. Finalmente, apôs sua assinatura, e prometemos-lhe que, se nenhum outro bispo aceitasse a declaração, lhe devolveríamos sua assinatura. Fomos procurar o Cardeal Slipyi que vivia no Vaticano, atrás da sacristia de São Pedro. Quando lhe apresentamos o documento, ele nos disse: Estou totalmente de acordo com os senhores. Se há erro que devemos condenar é o comunismo. Já sabem qual é a minha posição, mas sou hóspede do Vaticano e estou certo de que lá em cima (apontando a cúpula de São Pedro) não querem que se condene o comunismo. Sei disso muito bem. Finalmente, procuramos o Cardeal Wyszynsky e, não o encontrando onde habitava, falei-lhe pelo telefone. Declarou-me: o senhor sabe qual foi minha intervenção no Concílio sobre esse assunto. Pedi que se redigisse um documento completo para condenar o comunismo e ninguém me apoiou; minha proposição foi rejeitada, já não pretendo intervir. Nessa altura vimo-nos obrigados a devolver ao Cardeal Beran sua assinatura. Esta é a verdadeira história do documento de condenação do comunismo que nunca foi aprovado pelo Concílio. Este único exemplo mostra o que foi o Concílio Vaticano II, um concílio em que se reuniram 2.500 padres e que não enfrentou o comunismo, o maior inimigo de Deus, da Igreja, de todo o princípio espiritual. Um Concílio que atua desse modo, condena-se a si próprio.

Se lhes desse todos os pormenores dessa coligação e da forma como se perpetrou a condenação de meu seminário e da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, os senhores ficariam estupefatos. Dou-lhes simplesmente isso: quando da visita que realizaram ao Seminário de Ecône, Suíça, dois bispos enviados por Roma, fui convidado por três cardeais para fornecer algumas informações complementares. Esta reunião não constituía, de modo algum, um julgamento eclesiástico. Pode dizer-se que era, simplesmente, uma visita de cortesia.

No começo da entrevista, a que estavam presentes o Cardeal Garrone e o Cardeal Wright e o Cardeal espanhol Tavera, o Cardeal Garrone perguntou-me: Monsenhor, podemos gravar esta conversação? Disse-lhes que poderiam gravá-la, desde que, posteriormente, me fornecessem uma cópia da gravação. Ele me disse que certamente a cópia me seria dada.

No entanto, acabada a conferência, quando pedi a cópia da entrevista, negaram-na. Um segundo exemplo que demonstra o que foi essa conversa com os cardeais romanos: querendo saber quem havia nomeado esses cardeais para entrevistarem-se comigo, se constituíam uma comissão, se se tratava de uma iniciativa particular ou se era algo que o Papa havia ordenado — e que eu de nada sabia, não tinha nenhum documento, nenhuma nota oficial e nunca se havia feito nada parecido no Vaticano — dirigi-me ao Cardeal Staffa que era o presidente da Assinatura Apostólica do Tribunal Romano e apresentei um recurso de queixa. Paguei os emolumentos exigidos por esse tribunal romano para apresentar a queixa e deram-me um recibo.

Tendo feito isso, o Cardeal Villot, Secretário de Estado naquela época, escreveu uma carta, de seu próprio punho, ao Cardeal Staffa, proibindo-o de entregar-me qualquer documento e ordenando-lhe encerrar imediatamente o processo. Vemos como o poder executivo imiscuiu-se na esfera do poder judicial. Algo que jamais sucedera na Igreja impediu que o Cardeal Staffa julgasse minha proposição. Assim, a Fraternidade, seus seminários e eu próprio fomos condenados sem processo, sem julgamento, sem documentos e sem que eu pudesse relacionar essa condenação com a visita dos dois monsenhores a Ecône.

Eu mesmo tive a oportunidade de dizer ao Papa João Paulo II (já o havia dito ao Papa Paulo VI) que a forma pela qual fora condenado era pior do que a que utilizavam os soviéticos. Eles, pelo menos, criam a farsa de um tribunal. Em meu caso nem isso foi permitido. De fato, eu devia fechar meus seminários, expulsar imediatamente meus seminaristas, no meio do ano, que cursavam seus estudos, e depois despedir todos os professores. Os senhores compreendem que uma situação como esta só pode atribuir-se à ocupação da Igreja pelo modernismo, que persegue os tradicionalistas. 

Recordam os senhores a história do cardeal Mindszenty. A maneira como esse cardeal foi tratado pelo Vaticano pode considerar-se ignóbil. O Cardeal Mindszenty, herói de seu povo, que quis permanecer durante largos anos em sua terra, asilado na embaixada dos Estados Unidos, para ficar ao lado de seu povo, foi tratado pelas Congregações Romanas, pela Cúria Romana, pior do que fora tratado pelos soviéticos. Outro exemplo é o do Cardeal Slipyi que me disse, ele mesmo, ter sido mais bem tratado na Ucrânia (Soviética) do que em Roma. Mais outro exemplo: o Cardeal Wyszynsky, quando em Roma, era vigiado e não podia circular livremente pela cidade. Tudo isso mostra uma perseguição totalmente ignóbil. Por quê? Porque esses três cardeais eram tradicionalistas. Então, quando nos dizem: deveis obedecer, nós lhes respondemos: não queremos obedecer aos inimigos da Igreja, não quero obedecer àqueles que destroem à Igreja. Não o admito.

O que o Papa Paulo VI intitulou “autodemolição da Igreja” nada mais é do que aquilo que fazem os próprios bispos e sacerdotes dentro da Igreja Católica. E eu não pretendo contribuir para a demolição da Igreja.

É triste o que acabo de dizer-lhes, mas os cardeais que atualmente estão em Roma, cujos nomes os senhores conhecem bem, continuam essa nova política, essa nova atitude da Igreja, contrária à Tradição de Cristo. Quer pela liturgia, quer pelo ensinamento ou pelo catecismo, quer pela política em geral da Igreja em face dos Estados e das sociedades civis, impôs-se uma orientação completamente nova. Tudo mudou na Igreja.

Isso é bem claro na liturgia. Alteraram-se, subverteram-se todos os nossos sacramentos, suprimiram-se todos os livros antigos e substituíram-nos por novos livros. Não se trata de uma reforma como a de São Pio V, que teve como objetivo limpar a liturgia da missa das sedimentações acumuladas durante séculos, as quais não estavam muito de acordo com a tradição. A reforma de São Pio X teve o mesmo sentido: podaram-se os elementos que se lhe haviam aderido durante os anos precedentes e que não eram muito conformes com a Tradição para que se voltasse ao seio da tradição. Agora, contudo, se trata da supressão da Tradição, duma nova concepção da Missa, concepção que é mais protestante do que católica, que foi avalizada pela presença de seis pastores protestantes chamados para transformar nossa Missa...

É coisa nova no tratamento da Missa, da Santa Missa de sempre: chamar seis pastores protestantes para que venham mudá-la. Que podiam dizer esses pastores protestantes quando se lhes perguntou: que quereis que mudemos na Missa? Alinhar nossa liturgia com a liturgia protestante. É este o sentido do diálogo de que tanto se fala: uma atitude gravíssima que corresponde a um princípio geral, o de considerar a religião dos outros tão verdadeira quanto a nossa. Consequentemente, considerar que a religião católica não é a única religião pela qual alguém pode salvar-se, a única religião divina fundada por Deus, fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, com orientação perfeitamente distinta das outras. É inconcebível.

A própria Igreja pediu aos Estados que não sejam mais Estados católicos, que suprimam o primeiro artigo de suas Constituições, que diz: “A religião católica é a única religião reconhecida pelo Estado”. Foi a própria Santa Sé que pediu isso aos diferentes Estados, e por isso já não há Estados católicos. Isso acabou. Porque a Santa Sé deseja que todas as religiões sejam reconhecidas igualmente em todos os Estados, que todas as religiões sejam iguais perante o Estado. É uma orientação completamente nova da Igreja. Jamais a Igreja aceitou, jamais a Igreja tomou esta posição. Jamais aceitou a Igreja que se ponha em pé de igualdade Nosso Senhor Jesus Cristo, Buda, Lutero e todos esses fundadores de falsas religiões.

Sob o aspecto político, os senhores sabem perfeitamente que, em quase todo o mundo, os Bispados favorecem positivamente a revolução comunista e o socialismo.

Na França, a eleição de Mitterand deveu-se em grande parte aos esforços dos bispos e sacerdotes que pediram que os fiéis votassem no socialismo. Resultado: temos quatro ministros comunistas, e isso com o apoio de bispos e clérigos. É inimaginável. Roma não interveio para evitar que na França se constituísse este governo socialista. Um governo que é, de fato e nos fatos, ateu militante; que pretende monopolizar todo o ensino e que, consequentemente, porá as mãos em todas as escolas católicas.

Quando tive oportunidade de viajar ao México, em janeiro passado, publicou-se um documento do Episcopado mexicano no qual se apoiava expressamente a revolução de El Salvador, a ponto de solicitar aos católicos mexicanos que contribuíssem ora com armas para lutar contra o governo, ora com dinheiro para ajudar a revolução. Aonde vamos? Que Igreja é esta? Dizem-nos: os senhores desobedecem, mas devemos obedecer? Devemos obedecer a esses bispos? Acaso representam a Igreja? Sem dúvida ainda há bons bispos e que por isso são perseguidos. Os senhores têm um exemplo em sua pátria. Monsenhor Tortolo, que jamais chegou a Cardeal e que poderia ter sido Arcebispo de Buenos Aires. Outro exemplo é o do Monsenhor Morcillo, arcebispo de Madri, a quem conheci muito bem. Jamais foi cardeal. Diziam-lhe: o senhor não pode ser cardeal, por que a diocese primaz da Espanha é a diocese de Toledo, logo só ao Arcebispo de Toledo corresponde ser cardeal. Imediatamente após a morte do Monsenhor Morcillo, Monsenhor Taracon, que era Arcebispo de Madri, foi elevado ao cardinalato. Todos os secretários do Concílio foram nomeados cardeais, mas Monsenhor Morcillo, que também era secretário, jamais foi nomeado.

O Cardeal Siri, que foi presidente da Conferência Episcopal Italiana, um mês após a eleição de Paulo VI foi destituído de seu cargo. Isto significa que se exerceu perseguição constante contra todos os bispos que defendem ou defenderiam a Tradição na Igreja. Temos de reconhecer que há inimigos da Igreja que ocuparam a Igreja. A IGREJA ESTÁ OCUPADA.

Conhecem muito bem o Cardeal Pironio. Tendo as ideias e as atitudes que tem, foi nomeado Presidente da Congregação dos Religiosos!

Outro exemplo é o Cardeal Knox, que é, de fato, sacrílego. Durante o Congresso Eucarístico de Melbourne (encontrava-me na Austrália, embora não tenha assistido ao Congresso), realizou-se a chamada missa Kamburu. Que é uma missa Kamburu? Mandou chamar a povoação primitiva, que vive no interior da Austrália, homens vestidos de maneira que os senhores podem imaginar, que dançaram no estrado que se havia preparado para a Missa, junto do altar; bailaram suas danças primitivas, enquanto se pronunciavam as palavras da Consagração. O que fez este homem é um sacrilégio, e este homem foi nomeado Prefeito da Congregação do Culto. Que pode fazer este homem à frente de tal Congregação?

O Cardeal Baggio, por exemplo, que foi Núncio Apostólico no Chile e teve de abandonar o país por razões que não o favoreciam (basta que perguntem ao governo do Chile quais foram essas razões) é agora encarregado da nomeação dos bispos.

O Cardeal Casaroli, atual Secretário de Estado, encontra-se na lista da loja maçônica P. 2 publicada pelos periódicos. Não sou eu que o digo, são os jornais italianos.

Como se pode conceber que a Igreja continue sua tarefa de santificação por meio desses homens? Enquanto estiverem à testa da Igreja, nós, os tradicionalistas, seremos sempre perseguidos, e a Igreja continuará sua autodemolição.

Concluo. De nossa parte, nós já escolhemos, e dessa escolha não nos afastamos [grifo meu]. Queremos continuar na Igreja de sempre. Queremos permanecer fiéis aos 250 Papas que defenderam a Tradição e a Fé Católica. Queremos continuar o sacerdócio da Igreja, e é por isso que seguiremos ordenando sacerdotes, malgrado a proibição de Roma. Queremos ordenar verdadeiros sacerdotes, para que eles continuem rezando a verdadeira Missa, por todo o mundo e ao longo da história. Isto é indispensável.

Todas essas reformas liturgias foram feitas por esse mau espírito de Ecumenismo, de falso ecumenismo. É por isso que a fé desapareceu e não há vocações.

Tive a felicidade de ordenar mais de 100 jovens sacerdotes, membros da Fraternidade Sacerdotal São Pio X[1] (em 2005 já são mais de 400).

No próximo mês de outubro contaremos com 270 seminaristas, que pertencem aos cinco seminários que foram fundados nos últimos dez anos[2]. Os senhores sabem que começamos as obras de um seminário aqui, na República Argentina, a 40 km de Buenos Aires, na localidade de La Reja, onde já contamos com 20 vocações, sem citar os seminaristas que, já tendo feito o ano de espiritualidade no Seminário da Argentina, prosseguem hoje os seus estudos em Ecône (Suíça), em Albano (Itália), ou os que têm vocação monástica, que prosseguem os estudos em Bedoin e S. Michel em Brenne (França)[3].

Deste seminário em Buenos Aires ocupa-se, particularmente, o Padre Michel Faure, e seu diretor é o Padre Morello. Queremos construir aqui um seminário capaz de albergar 120 seminaristas que virão de todos os países hispano-americanos, para perpetuar esse sacerdócio de que lhes falo, para continuar a fé católica nessas terras. Aonde irão vossos filhos, se já não existem escolas católicas? Nas escolas católicas atuais ensinam-lhes princípios contrários a fé, ensinam-lhes educação sexual...

Nós já fizemos nossa eleição, não a mudaremos, porque queremos ser e queremos morrer católicos [grifo meu].

Fonte: Permanência




[1] Em 2005 já são mais de 450 sacerdotes.
[2] Hoje são seis seminários: Suíça, França, Alemanha, EUA, Argentina, Nova Zelândia.
[3] As casas religiosas amigas e próximas da Fraternidade já são incontáveis: 6 carmelos femininos, Irmãs da Fraternidade S. Pio X, 3 mosteiros beneditinos (Bellaigue, na França; Sta Cruz, no Brasil e N.Sra de Guadalupe, EUA); dominicanos de Avrillé (França), dominicanas professoras de Brignolle e de Fanjeaux, as duas casas mães são na França, mas estão em diversos países; Capuchinhos de Morgon (França), os irmãos da Familia Beatae Mariae Virginis, do Pe. Jahir, na Bahia, Brasil e muitos outros.
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