Anticristo, o que nega que Jesus seja Deus; anticristo, o que
nega que Jesus seja homem; anticristo, o que nega que Jesus seja homem e Deus
ao mesmo tempo.
Um anticristo, nos diz São João, nega o Pai, pois negando o Pai
nega o Filho: Hic est
antichristus qui negat Patrem et filium (I
Jo. 2, 22). De fato, não há anticristianismo mais radical do que aquele que
nega a divindade em sua raiz, em seu princípio. Como o Cristo seria Deus se
Deus não existisse? Ora, negar o ser divino, a substância divina, a
personalidade divina e introduzir não sei que outra teodicéia é prova de que
suprimem a realidade, substituindo-a por abstrações e sonhos que flutuam entre
o ateísmo e o panteísmo ou que não têm sentido algum. Eis o sistema capital da
atual situação intelectual; eis o ensinamento que enche os livros e inspira as
lições de toda uma
escola, abundante e poderosa. Diante de tais doutrinas, “só
tenho uma coisa a dizer-vos: cuidado com o anticristo”: Unum moneo: cavete antechristum.
São João continua: “Todo aquele que nega o Filho, também não
reconhece o Pai. O que crê no Filho de Deus, tem em si o testemunho de Deus. O
que não crê no Filho, torna Deus mentiroso, porque não crê no testemunho que
Deus deu de seu Filho. Aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o
Filho, não tem a vida” (I Jo. 2,23; 5, 10-12). “Muitos sedutores se têm
levantado no mundo, que não confessam que Jesus Cristo tenha vindo em carne;
quem faz isso é um sedutor e um anticristo”: “Qui non confiteur Christum
in carne venisse, hic est seductor et antichristum” (II Jo. 7). Ora, se os
senhores escutarem o que se diz hoje e se lerem o que se escreve atualmente,
descobrirão ou que o personagem histórico Jesus nem chegou a existir (ao menos
como é representado nos Evangelhos) ou que foi um desses tipos que manifestou
mais fortemente o ideal de sabedoria, de razão, de perfeição e que
convencionou-se denominar “Deus”. Jamais admitirão que o Filho de Maria seja o
Filho de Deus feito homem, o Verbo feito carne, aquele em que reside
corporalmente a plenitude da divindade (Col. 2, 9), e, para concluir
definitivamente, o Homem-Deus. Aterrorizado com tais blasfêmias, que são a
própria inversão do símbolo cristão, “só tenho uma coisa a dizer-vos:
cuidado com o anticristo”: “Unum moneo: cavete antechristum”.
Que diria eu ainda? Anticristo, o que nega o milagre, o que
ensina que o milagre não tem lugar possível na trama das coisas humanas.
Cristo, ainda que suas palavras tivessem um tom que merecesse credibilidade, só
estabeleceu sua divindade pelo argumento decisivo do milagre. Ele deu a seus
apóstolos, como meio de persuasão e conquista, o poder de operar milagres. Sua
vinda ao mundo em carne, a união entre a natureza humana e a natureza divina em
uma única pessoa é o milagre por excelência. Suprimir o milagre é suprimir toda
a ordem sobrenatural e cristã. Aqui repito: “Cuidado com o anticristo”:
“Unum moneo: cavete antechristum”.
Anticristo, aquele que nega a revelação divina das Escrituras:
pois são os profetas divinamente inspiradas que nos anunciaram o Cristo. São os
Evangelhos ditados pelo Espírito Santo, assim como os atos e as cartas dos
Apóstolos que nos fazem conhecer a Cristo. Podemos alegar as próprias palavras
de Santo Hilário: “Quem quer que negue o Cristo tal como foi anunciado pelos
Apóstolos, este é um anticristo”: “Quisquis enim Christum, qualis ab
apostolis est praedicatus, negavit, antichristum est”. Se os senhores
ouvirem negar os livros santos, se sua autoridade for desprezada como simples
concepção e invenção do espírito humano, “tenho um conselho a dar: cuidado
com o anticristo”: “Unum moneo: cavete antechristum”.
Anticristo, aquele que nega a instituição divina a missão divina
da Igreja, pois a conclusão, a finalização das obras, dos sofrimentos e da
morte de Jesus Cristo foi a fundação de sua Igreja. “Cristo amou a Igreja e
por ela se entregou a si mesmo, para a santificar, purificando-a no batismo da
água pela palavra da vida, para apresentar a si mesmo esta Igreja gloriosa, sem
mácula, sem ruga, mas santa e imaculada” (Ef. 5.25-27). Ora, se a Igreja
não possui um caráter sobrenatural, se ela é somente uma instituição terrena,
um dos estabelecimentos religiosos destinados a desempenhar um papel mais ou
menos longo no seio da humanidade, uma sociedade exposta às vicissitudes e
falhas das coisas desse mundo, uma escola mais ou menos respeitável de
filosofia e filantropia, numa palavra, se a Igreja não é divina, é que Cristo,
seu fundador, não é Deus. Rejeitar a divindade da obra é rejeitar a divindade
do autor: “Tenho sempre a mesma recomendação a dar: cuidado com o anticristo”:
“Unum moneo: cavete antechristum”.
Anticristo, aquele que nega a suprema e indefectível autoridade
de Pedro. Na verdade, Jesus Cristo, depois de ter olhado nos olhos desse homem,
disse-lhe: “Simão, filho de João, tu serás chamado Cefas que quer dizer
Pedro” (Jo. 1, 42); “e
sobre esta pedra Eu edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não
prevalecerão sobre ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; e tudo o que
desatares sobre a terra, será desatado nos céus” (Mt. 16, 18-19). E o mesmo
Jesus lhe disse ainda: “Simão, Simão, eis que Satanás te reclamou com
instância para te joeirar como trigo; mas eu roguei por ti, para que tua fé não
falte; e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos” (Lc. 22, 31-32).
Se essas palavras de Jesus Cristo não fizeram de Pedro o fundamento inabalável
da Igreja, a rocha imutável da verdade, o oráculo infalível da fé, é porque
quem as pronunciou não tinha o poder de torna-las eficazes. Ferir Pedro é ferir
a cabeça viva, o chefe invisível da Igreja cristã que nele revive e subsiste. “Clamo
ainda: cuidado com o anticristo”: “Unum moneo: cavete antichristum”.
Anticristo, aquele que nega ou despreza o sacerdote cristão.
Jesus Cristo ressuscitado disse a seus apóstolos: “Assim como o Pai me
enviou, eu também vos envio” (Jo. 20, 21). “Foi-me dado todo o poder no
céu e na terra. Ide, pois, ensinai a todas as gentes, batizando-as em nome do
Pai, e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as observar todas as coisas que
vos mandei; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos
séculos” (Mt. 28, 18-20). Se os poderes assim conferidos por Jesus não são
os plenos poderes de ensinar a verdade em nome de Deus pela pregação, de
administrar a graça dos sacramentos, de velar pela observância dos preceitos
divinos pelo governo eclesiástico e se, no exercício de seus poderes, o
sacerdócio cristão não for sustentado por uma assistência contínua e uma
presença quotidiana de Cristo, aqui ainda, deve-se admitir que Cristo falou
mais do que podia fazer. Conseqüentemente, ele não é Deus. O Senhor disse aos
próprios levitas da antiga lei: “Não toqueis os meus ungidos” (I Par.
16, 22), e disse aos ministros da nova lei: “O que vos recebe, a Mim recebe;
e o que Me recebe, recebe Aquele que Me enviou” (Mt. 10, 40); sabendo
disso, quando vejo a língua de meu país se depravar até chegar a transforma em
título de insulto e desdém essa primícia sacerdotal e real chamada clericatura,
e que o vocabulário tinha sido por muito tempo sinônimo de saber e de
instrução, me sinto tomado de imensa piedade por uma geração cuja própria elite
sucumbe a tal baixeza e se mostra culpada de tal esquecimento e desrespeito em
relação ao que todos os povos tiveram de mais sagrado. E “repito sempre a
mesma lição: cuidado com o anticristo: unum moneo: cavete antichristum”.
Anticristo, aquele que nega a superioridade dos tempos e países
cristãos sobre os tempos e países infiéis ou idólatras. Se Jesus Cristo, que
nos iluminou quando estávamos nas trevas e nas sombras da morte, e deu ao mundo
o tesouro da verdade e da graça, não enriqueceu o mundo com bens superiores aos
possuídos no seio do paganismo, [e falo até mesmo do mundo social e político] é
que a obra do Cristo não é uma obra divina. Além disso: se o Evangelho que
salva os homens é impotente para fornecer os princípios do verdadeiro progresso
dos povos; se a luz revelada, proveitosa aos indivíduos é prejudicial às
sociedades, e talvez até para as famílias, é prejudicial e inaceitável para as
cidades e os impérios; em outros termos, se Jesus Cristo, que os profetas
prometeram e a quem o Pai deu as nações como herança, só pode exercer seu poder
sobre elas em seu detrimento e para sua infelicidade temporal, tem de se
concluir que Jesus Cristo não é Deus. Porque nem em Sua pessoa nem no exercício
dos Seus direitos, Jesus Cristo pode ser dividido, dissolvido, fracionado.
Nele, a distinção das naturezas e das operações nunca poderá ser a separação, a
oposição. O divino não pode ser antipático ao humano, nem o humano ao divino.
Ao contrário, ele é a paz, a aproximação, a reconciliação, é o traço de união “que
faz de duas coisas, uma”: “ipse est pax nostra qui fecit utraque unum”
(Ef. 2, 14). Por isso São João nos diz: “todo espírito que divide Jesus não
é de Deus; mas este é um anticristo do qual vós ouvistes que vem, e agora está
já no mundo”. “Et omnis spiritus qui sivit Jesum, ex Deo non est; et hic
est antichristum de quo audistis quoniam venit, et nunc jam in mundo est”
(I Jo. 4, 3). Quando ouço então certos ruídos que surgem, certos aforismos que
prevalecem com maior freqüência dia a dia e se introduzem no coração das
sociedades, dissolvendo-as sob a ação daquele por quem o mundo há de perecer, “lanço
um grito de alarme: cuidado com o anticristo”: “unum moneo: cavete
antichristum”.
Poderíamos, caros irmãos, nos estender sobre os detalhes dos
erros que se propagam a cada dia em nosso redor, que constituem o que
poderíamos chamar anticristianismo. O que dissemos é mais do que suficiente
para excitar em nós a vigilância e desconfiança de qualquer doutrina que não
proceda da Igreja (...).
Permaneçamos firmes na fé antiga e invariável da Santa Igreja; “sejam
homens e não crianças flutuantes, e levadas, ao sabor de todo vento de
doutrina, pela malignidade dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro”
(Ef. 4, 14). O divino Salvador disse, profetizando os tempos de ruína de
Jerusalém: “Mas ai das mulheres grávidas e das que tiverem crianças de peito
naqueles dias!” (Mt. 24, 19). Santo Hilário nos explica essa passagem: “Nos
dias difíceis e de tempestade da Igreja, ai das almas minadas pela incerteza e
nas quais a fé e a piedade estiverem ainda em estado embrionário ou ainda na
infância. Umas, surpreendidas no embaraço de suas incertezas e atrasadas por
causa das irresoluções de seu espírito constantemente irrequieto, estarão muito
pesadas para escapar às perseguições do anticristo. Outras, tendo apenas
degustado os mistério da fé em embebidas somente de uma fraca dose de ciência
divina, não terão força suficiente e habilidade necessário para resistir a tão
grandes assaltos” (Comment. In Mat. 25. 6). É esse o peso e debilitação das
almas que hão de tornar os últimos tempos tão perniciosos, propícios a tantas
quedas.
Por outro lado, Santo Agostinho ressalta o quanto esses dias de
provações serão favoráveis ao embelezamento e crescimento do mérito das almas
fieis. Comentando a passagem do Apocalipse: “depois disso é necessário que o
demônio seja solto por um pouco de tempo” (Ap. 20, 3), o santo doutor nos
mostra que o demônio nunca está preso de maneira absoluta durante a vida da
Igreja militante. Entretanto, ele fica frequentemente preso no sentido de que
não lhe é permitido utilizar sua força toda nem todos os seus artifícios para
seduzir os homens.
A enfermidade do grande número é tal que, se ele tivesse esse
pleno poder ao longo de todos os séculos, muitas almas com que Deus quer
aumentar e povoar sua Igreja seriam desviadas da verdadeira crença ou
tornar-se-iam apóstatas: isso Deus não quer suportar. Eis porque o demônio fica
parcialmente atado. Porém, por outro lado, se ele nunca fosse solto, o poder de
sua malícia seria menos conhecido; a paciência da Cidade Santa menos exercida e
compreenderíamos menos o imenso fruto que o Todo Poderoso soube tirar da imensa
força do mal. O Senhor então desatá-lo-á por um tempo a fim de mostrar a
energia com a qual a cidade de Deus vencerá tão horrível adversário, para a
grande glória de seu redentor, de seu auxílio, de seu libertador. E o santo
doutor chega a dizer a seus contemporâneos: “Quanto a nós, irmãos, quem
somos e que mérito possuímos em comparação aos santos e fiéis de então? Porque,
para prova-los, o inimigo que nós já temos tanta dificuldade em combater e
vencer atado, estará desatado”.
Coragem, meus caros irmãos. Quanto mais a religião é atacada, a
Igreja oprimida por todos os lados, quanto mais as doutrinas errôneas e de
perversão moral invadem os discursos, livros e teatros e enchem a toda a
atmosfera com seus miasmas pestilentos, mais possível será adquirir grandeza,
perfeição e mérito diante de Deus, se não nos deixarmos abalar em nenhuma de
nossas convicções e permanecermos fiéis ao Senhor Jesus, coisa em que muitos
outros falharam e tiveram a desgraça de abandona-Lo. Não vos deixai seduzir
pela força e número dos perversos, nem pelas aparentes vitórias dos adversários
de Jesus Cristo. Está escrito que os maus e os sedutores farão a terra progredir;
progresso no mal, progresso na destruição, progresso na desordem: proficient in pejus “irão de mal a pior” (II Tim.
3, 13). Mas também está escrito que esse tipo de sucesso nunca durará por muito
tempo. Os homens que resistem à verdade, pessoas corrompidas em seu espírito e
réprobos sob o olhar da fé não tardarão a se convencer dessa loucura juntamente
com seus seguidores nessa via.
Perseverai na fé, caríssimos irmãos; perseverai também nas
obras, sobretudo nas obras de caridade. É uma doutrina constante e que não deve
ser abandonada a nenhum preço: aqueles que crêem em Deus são os que tomam a
frente das boas obras: a humanidade, e principalmente, a humanidade sofredora
encontrará sempre consolo desse modo. Não ouvimos dizer também, que nesses
últimos dias, a esmola feita por sentimento sobrenatural e segundo as tradições
da piedade cristã não terá lugar no seio de nossas sociedades e que seu “selo
eclesiástico” será uma ofensa à dignidade dos necessitados que se tenta
aliviar? O naturalismo, o ardor que põe na secularização de tudo, entende que
fazer o bem é obra puramente humana, profana e não tem nada em comum com a
ordem da graça e da salvação. Propósito execrável, e se pudesse chegar a
desencorajar a caridade cristã e sacerdotal, conseguiria neutralizar as mais
oportunas fontes de alívio dos infelizes. Ah! Eu vos diria ainda: “cuidado
com o anticristo”: “unum moneo: cavete antichristum”. Mas tenham os
olhos sempre fixos em Cristo; no menino Jesus do estábulo de Belém; no
operário-Deus do ateliê de Nazaré; naquele que, sendo rico por natureza fez-se
pobre para nos enriquecer com sua humilhação; naquele que será um dia nosso
juiz, e que, em consideração com essa multidão de operários indigentes e
privados de trabalho que terá sido aliviada por amor a Ele, nos fará possuir o
reino que seu Pai nos preparou.
(Revista Sim Sim Não Não N°146
Janeiro-Fevereiro de 2006).
Originalmente publicado na Permanência
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