Um livro polêmico que descreve as culpas do Ocidente no desaparecimento das meninas na Ásia.
O Ocidente que se questiona sobre as "mulheres faltantes" na Ásia (cento e sessenta e três milhões nos últimos 30 anos: meninas abortadas antes de nascer, mortas imediatamente após o nascimento, deixadas para morrer sem cuidados em tenra idade. Mas outras estimativas falam em mais de quatrocentos milhões) foi e é cúmplice desse desaparecimento. Não só com as omissões e a obstinada vontade de desviar o olhar, mas através de políticas malthusianas implementadas por reconhecidas instituições internacionais, organizações "filantrópicas" pelo controle da natalidade e governos: todos têm feito sua parte na promoção dos abortos seletivos das meninas, que se tornou a principal causa de seu desaparecimento das estatísticas demográficas.
Esta é a tese central de um livro que está dando muito que falar. Foi escrito por uma jornalista americana, Mara Hvistendahl, correspondente em Beijing da revista Science, e que escreve também no Financial Times e no Foreign Policy. Em "Unnatural selection. Choosing Boys Over Girls, and the Consequences of a World Full of Men"[1] (PublicAffairs, 336 páginas, 26,99 dólares), a autora conta como os abortos seletivos com base no sexo, populares em toda a Ásia desde o início da anos oitenta, criaram desequilíbrios demográficos agora reconhecidos como devastadores, e como a ONU, através de sua agência para a população (UNFPA, Fundo das Nações Unidas para a População), tenha contribuído para isto. E parece tardia e insuficiente, bem como em suspeita coincidência com o lançamento do livro da Hvistendahl, a divulgação, em meados de junho, de um relatório conjunto da UNFPA, do Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos, da UNICEF e da Organização Mundial da Saúde, em que, pela primeira vez, se fala explicitamente da tragédia do aborto seletivo das meninas.
A relação entre os sexos no momento do nascimento (definido como o número de meninos nascidos para cada cem mulheres) é normalmente de 104-106 para 100. Em condições normais, mantém-se estável ao longo do tempo, independentemente das áreas geográficas, das condições econômicas e das etnias. Isto significa que, nas situações em que nos desviamos dessa relação, é, certamente, por intervenção de uma causa artificial. Nas últimas décadas aconteceu na Índia, onde a média é de 112 homens para 100 mulheres (em alguns distritos, por exemplo em Punjab, é de 132 para 100); aconteceu no Vietnã, onde a relação entre os sexos no momento do nascimento, em 2006, era de 110 homens para 100 mulheres, e está chegando à proporção de 115 para 100. E aconteceu sobretudo na China, onde a média nacional é já de 121 homens para 100 mulheres (mas em algumas partes do País, como na cidade de Lianyungang, província de Jiangsu, há 163 meninos para cada 100 meninas, de acordo com dados de 2007). Uma exceção parcial é a Coréia do Sul que, em 1994, registrou o que era, então, a taxa mais desequilibrada entre os sexos no mundo, com 115 homens para 100 mulheres. Foram adotadas várias leis restringindo o aborto e proibindo os médicos de revelar o sexo dos nascituros, sob pena da perda da profissão. A situação desde então está parcialmente reequilibrada, mesmo que permaneça alto o número de abortos clandestinos, aos quais se recorre quando o primogênito é do sexo feminino (a proibição de comunicar o sexo do feto consegue ser contornada). A escassez permanente de mulheres na Coréia do Sul resultou, entre outras coisas, no início de um florescente mercado de "importação" de mulheres vietnamitas pobres, com aspectos de verdadeiro tráfico, trazido à luz por Mara Hvistendahl como uma das recaídas fatais das sociedades de forte e não natural prevalência masculina. Seu livro mostra inclusive como os abortos seletivos tenham alcançado também o Azerbaijão, com uma relação de nascimentos, entre machos e fêmeas, de 115 para 100; a Geórgia, com 118 para 100; a Armênia, com 120 para 100. Chegou até à nossa porta[2], com 115 homens para 100 mulheres na Albânia, e se reproduz especialmente nas comunidades chinesas, indianas e coreanas no Ocidente, em geral, e na América, em particular.
Aquilo que em 2010 o Economist definiu de "gendercide"[3] está produzindo em amplas regiões do mundo o surgimento de uma "geração XY" (o par de cromossomos do sexo masculino).
Não há muito do que se alegrar: "Historicamente, as sociedades em que os homens superam substancialmente as mulheres não são lugares agradáveis para se viver", escreve Hvistendahl, porque se mostram mais instáveis e propensos à criminalidade do que aquelas em que os sexos estão em equilíbrio.
O caso da China é exemplar. Desde 1979, à tradicional e ancestral preferência por meninos nas sociedades asiáticas, uniu-se a política do filho único obrigatório, praticada com métodos coercitivos e chantageadores. Se a um casal é permitido apenas um filho, dar à luz uma menina significa desperdiçar a única oportunidade de se ter um menino, o depositário do nome da família e da esperança de ajuda para os pais na velhice. Portanto, muito mais precioso do que uma menina, à qual se terá que dar um dote a fundo perdido, porque ela fará parte da família do marido.
A mentalidade atrasada e os preconceitos patriarcais, mesmo quando são agravados pela obrigação de um único filho, não conseguem, no entanto, a dar conta, por si sós, do atual desequilíbrio entre os sexos na China e em toda a Ásia, escreve Hvistendahl. Foi a introdução de técnicas como a amniocentese e o ultrassom - promovidas com todos os incentivos possíveis nos países em desenvolvimento pelos governos ocidentais, pelas empresas interessadas em vender suas máquinas e, sobretudo, por organizações internacionais para o planejamento familiar – a tornar possíveis os abortos seletivos e a eliminação em massa das meninas: "Foram necessários milhões de dólares em financiamento por parte de organizações dos EUA para que o aborto com base no sexo se difundisse nos países em desenvolvimento", se lê em "Unnatural Selection". Mesmo onde seria, em tese, proibido hoje, como na Índia, os ultrassonografistas ambulantes percorrem as zonas rurais, aldeia por aldeia, oferecendo por algumas rúpias a oportunidade de identificar, com um simples exame de ultrassom, as indesejadas.
"É melhor gastar 500 rúpias antes, do que 5.000 depois": se podia ler há pouco tempo atrás em avisos expostos em clínicas indianas, que comparavam o custo de um ultrassom ao de um dote. Mas, escreve Hvistendahl, não podemos nos consolar com a ideia de que o aborto seletivo de meninas prospere apenas nos estratos mais pobres e menos cultos das sociedades asiáticas. Na Índia, por exemplo, não é assim mesmo: a seleção do sexo começou a partir das cidades e dos estratos mais cultos (aqueles que por primeiros tiveram acesso às modernas técnicas de previsão, como é intuitivo: veja também a ficha na parte inferior, nesta página), para se difundir, então, no tempo, entre os mais pobres. E, muitas vezes, escreve ainda Hvistendahl, a decisão de abortar as fêmeas é tomada diretamente pelas mulheres, especialmente pela mãe do marido.
As "impressões digitais dos governos ocidentais e de suas instituições filantrópicas", escreveu na última segunda-feira o editor católico Ross Douthat, no The New York Times sobre "Unnatural Selection", emergem "em qualquer lugar, na história das mulheres desaparecidas." Partindo do fato de que "desde os anos cinquenta, os países asiáticos que legalizaram e promoveram o aborto o fizeram com forte apoio da econômica norte-americana. Escavando nos arquivos de organizações como a Fundação Rockefeller e a International Planned Parenthood Federation, Hvistendahl retrata a improvável aliança entre os republicanos combatentes na Guerra Fria, preocupados que o crescimento populacional seria o combustível para a expansão do comunismo, e os cientistas e ativistas de esquerda, convencidos de que o aborto era necessário seja para 'as necessidades das mulheres' como para 'o futuro e a prosperidade - talvez até para a própria sobrevivência - da Humanidade', como declarara o responsável médico da Planned Parenthood Federation, em 1976", Malcolm Potts. O mesmo cavalheiro, na mesma ocasião, escreveu que, nos países em desenvolvimento, o aborto é, sem dúvida, o melhor método de controle de natalidade: "O aborto precoce é seguro, eficaz, barato e, potencialmente, o método mais fácil para administrar".
A este respeito, sempre Douthat observa que, embora o livro de Mara Hvistendahl esteja cheio de cenas impressionantes – desde o abandono de meninas em hospitais indianos até a propaganda que, nas aldeias chinesas, conclamava ao aborto, nas fases culminantes da política do filho único - nada é perturbador como essas "passagens que ilustram como ocidentais progressistas estejam conscientemente convencidos de que um menor número de fêmeas pode ser exatamente o que a sociedade do terceiro mundo precise." A referência é ao colóquio relatado no livro, entre a autora e o biólogo Paul Ehrlich, um dos principais artífices da obsessão ocidental com a natalidade e a eugenia, o autor do infame "The Population Bomb" (1968). Continua convencido de que se livrar das mulheres nos países em desenvolvimento, por meio do aborto, seja uma ideia louvável, especialmente porque se evita que se façam muitas fêmeas na tentativa de se ter um macho.
Vamos voltar um segundo ao caso exemplar da China, o superlaboratório do fenômeno contado em "Unnatural Selection". Em 1978, um ano antes da promulgação da legislação sobre a política do filho único, Pequim havia assinado um acordo com a agência para a população das Nações Unidas. A qual, em troca de um financiamento significativo - o maior pacote de ajuda externa aceitado pelo País em 20 anos, recorda Hvistendahl - concordou com as políticas rigorosas de contenção da população, sob a supervisão do UNFPA, que, desde então, vem financiando a política anti-natalista da China. Em 1998, quando já haviam sido relatados por várias fontes os sistemas autoritários de controle populacional na China, o UNFPA doou ao governo da República Popular 20 milhões de dólares. Acima de tudo, a agência da ONU cobriu os olhos do mundo, classificando, sob a definição reconfortante de "planejamento familiar", crimes como as esterilizações e os abortos forçados. Silêncio absoluto também sobre a violência contra os desobedientes, que poderiam ir do isolamento social e as multas até a destruição de suas casas, confisco de bens e prisão. Silêncio também sobre as visitas ginecológico-policiais a cada seis meses impostas a todas as mulheres em idade fértil para controlar eventuais gravidezes "ilegais" E se uma mulher está "ilegalmente" grávida na China não tem escolha: em qualquer fase esteja a gravidez, vai fazer um aborto. Tudo isso acontece ainda, como contou no Foglio de 09 de maio, a americana Reggie Littlejohn, fundadora do Women's Rights Without Frontiers, engajada há anos a explicar em todo lugar possível que os horrores da política do filho único na China nunca terminaram, apesar das declarações tranquilizadoras das autoridades de Pequim, às quais se finge acreditar por conveniência. Também sobrevive, especialmente nas áreas rurais do oeste da China, a prática da supressão das recém-nascidas no momento do nascimento. Afogadas em um balde de água fervente que, se tivesse se tratado de um menino, seria apenas quente e teria servido para lavá-lo; ou deixadas para morrer ao ar livre (que eles chamam de "dar um jeito na menina", como dito pela jornalista e escritora anglo-chinesa Xinran, que escreve para o Guardian, que acaba de publicar na Itália, com Longanesi, "Le figlie perdute della Cina"[4]).
Até que ponto chegou o apoio do UNPFA à política chinesa do filho único, embora seja impossível imaginar que os seus funcionários não soubessem do que se tratava, o demonstra a declaração feita em 1986, pelo então diretor executivo da agência ONU, Rafael Salas. O qual, diante do surgimento de detalhes desagradáveis, afirmou que certos sistemas, "talvez não totalmente aceitáveis para alguns padrões ocidentais", eram de qualquer maneira respeitosos das "normas culturais" locais (o recorda Eugenia Roccella em "Contro il cristianesimo"[5] publicado por Piemme em 2005 e escrito com Lucetta Scaraffia). Três anos antes, em 1983, o ministro chinês de planejamento familiar, Qian Xinzhong, havia solenemente recebido pelas mãos do Secretário Geral da ONU, Javier Perez de Cuellar, o prêmio para a população.
"Seleção Não natural", escreve Ross Douthat no Nyt, deve ser lido "como um grande giallo[6] histórico, e é escrito com um sentido de urgência moral que normalmente acompanha a revelação de um grande crime". Qual é o tipo de crime "é a pergunta que assombra o livro de Hvistendahl, assim como o mais amplo debate sobre os 160 milhões de mulheres desaparecidas." Esse número gigantesco evoca "os horrores dos genocídios do Século XX. No entanto, apesar das depredações do Politburo[7] chinês, a maioria dos abortos foram (e continuam a ser) não forçados."
O governo americano tem "ajudado a criar o problema, mas agora é em metástase por si só: o movimento pelo controle populacional é a sombra de si mesmo, mas a seleção do sexo se espalhou inexoravelmente com o acesso ao aborto, e a relação entre os sexos se desequilibrou da Ásia Central aos Balcãs, passando pelas comunidades asiáticas dos Estados Unidos."
Tudo isto, acrescenta Douthat, "coloca muitos liberais ocidentais, incluindo Hvistendahl, em uma posição bastante desconfortável".
A autora de "Unnatural Selection" sente a incessante necessidade de justificar o espírito de seu trabalho e não quer absolutamente passar por uma pró-vida: não questiona o direito praticamente ilimitado ao aborto; se declara agnóstica sobre o tema do início da vida; distingue entre o uso legítimo de técnicas preditivas no Ocidente evoluído, para descobrir eventuais anomalias fetais, e um mau uso que nos países em desenvolvimento levou ao desequilíbrio entre os sexos. Mas assim, observa Douthat, a autora deixa sem solução o problema de definir, justamente a partir de sua "revelação de um crime grave", quem seja a vítima. E não lhe basta a resposta de Mara Hvistendahl, que fala da violência de uma sociedade com uma forte prevalência masculina e do crescimento da prostituição e do tráfico de mulheres: "A tragédia das 160 milhões de meninas desaparecidas não é que eles estejam 'desaparecidas'. A tragédia é que elas estão mortas", disse Douthat.
No mesmo estilo é o comentário de Jonathan V. Last, no neoconservador Weekly Standard. Este elogia o excelente trabalho condensado em "Unnatural Selection", mas critica as conclusões, especialmente quando Hvistendahl passa às sugestões sobre como o abuso "poderia ser freado sem violar o direito das mulheres ao aborto." É inútil, escreve Last, proibir a revelação do sexo de uma criança para os pais durante o ultrassom ou exigir que os médicos investiguem com mais precisão as motivações pelo aborto das mulheres grávidas de meninas, "porque o aborto seletivo é oficialmente contra a lei na Índia e na China, sem resultado algum". O nó está em outro lugar "porque se é a 'escolha' o imperativo moral que guia o aborto, então não há maneira de tomar uma posição contra a discriminação sexual."
© - FOGLIO QUOTIDIANO
[1] Seleção não natural. Preferir meninos às meninas, e as consequências de um mundo cheio de homens.
[2] Refere-se ao Ocidente.
[3] Algo como: generocídio.
[4] As filhas perdidas da China.
[5] Contra o Cristianismo.
[6] Giallo (em italiano: amarelo) é um gênero literário e cinematográfico italiano que fez sucesso na década de 1970 e no fim da de 1980. Existia uma série de livros policiais na Itália que tinham a capa amarela. Quando se começaram a produzir filmes sobre assassinos em séries sendo perseguidos por detetives, a associação com os livros levou a que esse gênero cinematográfico tenha sido apelidado de giallo. A maioria dos filmes deste gênero é semelhante, com um assassino em série (que geralmente é mostrado somente no final, durante o filme vemos apenas suas mãos vestidas com luvas pretas de couro), um detetive que procura esse assassino, mortes chocantes, principalmente de mulheres (sempre com cenas de perseguição antes do ato), e exposição de corpos total ou parcialmente nus. O giallo foi muito importante para o gênero do terror. A maioria dos realizadores italianos da atualidade teve sua estreia cinematográfica com giallos. Foi tão popular em sua época que esteve na origem dos gêneros slasher (assassino em série que persegue adolescentes, muito popular nas décadas de 1980 e 1990) e gore.
[7] Politburo é um acrónimo derivado do russo Politítcheskoe Byurô, contraído para Politbyurô, dando origem a palavra alemã Politbüro. Trata-se de um comité executivo de numerosos partidos políticos, designadamente os antigos partidos comunistas do Leste Europeu e o Partido Comunista de Cuba. Durante o período soviético, o Politburo do Partido Comunista da União Soviética se transformou na mais alta associação política do país, cujo poder de decisão era menor somente se comparado aos do Presidium, a presidência, e do Soviete Supremo, o parlamento do povo, na ausência do Presidium, o membro chefe do Politburo assumia as funções de chefe de governo.
Leia mais sobre o aborto: http://farfalline.blogspot.com.br/p/aborto.html.
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