Uma de minhas Santas de devoção. Bendita seja, nossa cara intercessora.
Vide também: http://farfalline.blogspot.com.br/2013/04/dia-2-de-abril-santa-maria-egipciaca.html.
Prólogo
É algo louvável esconder o segredo dos Reis; mas há glória em publicar as obras de Deus(1), como diz o Anjo a Tobias, quando este recobra a visão de maneira miraculosa – tendo passado por tantos perigos goza então, dos efeitos do amor e da ajuda de Deus. É bastante perigoso descobrir os segredos dos príncipes e, contrariamente, causa muito prejuízo à alma calar-se sobre as ações ilustres que Deus faz em favor dos homens pelo excesso de Sua bondade e de Sua misericórdia. É, portanto, temerário encobrir com o silêncio as maravilhas divinas, por um justo julgamento. Seria cair na mesma condenação daquele servo inútil que, ao invés de aproveitar do talento recebido, escondeu-o na terra. Eu não sepultaria nas trevas uma história tão santa quanto esta que chegou ao meu conhecimento. E não é preciso sequer acrescentar fé ao que vou escrever, considerando-se o espanto que ações tão extraordinárias causarão. Deus me proteja de ser mentiroso em assuntos santos e de violar a verdade daquilo que concerne à Sua glória; não tomarei parte no perigo que correm aqueles que não compreendem senão as coisas baixas e, julgando indignamente a grandeza de um Deus que Se fez homem, não acrescentarão nada de fé a este discurso. E há pessoas que depois de o terem lido recusam-se a lhe dar o crédito e a admiração que merece uma história tão miraculosa. Suplico a Deus que tenha piedade delas e lhes abra o espírito, a fim que elas escutem Sua Santa palavra e que não se tornem culpadas pelo desprezo de tantos milagres que Ele decidiu fazer em toda a eternidade a favor de Seus Eleitos; assim, elas agem considerando a fraqueza da natureza humana, julgando impossível tudo o que lhes é contado sobre as ações extraordinárias dos Santos.
Eu vou, então, começar esta narrativa, onde escreverei, palavra por palavra, segundo aquilo que se sabe ter acontecido e que me foi reportado por um homem santo, alimentado pela ciência e pela prática das coisas divinas. E que ninguém se deixe tomar pela incredulidade, como se fosse impossível que tão grande milagre acontecesse hoje em dia, visto que a graça de Deus – que século a século circula na alma dos Santos – os torna Seus amigos e os faz Profetas; assim como Salomão nos ensina através do conhecimento que Ele lhe deu. Mas não se deve separar o relato deste grande e generoso combate de Maria do Egito do modo com que ela terminou seus dias na Terra.
Capítulo 1 - Santa Maria do Egito recebendo os Divinos Mistérios das mãos do Padre Zózimo
Havia num mosteiro da Palestina um homem chamado Zózimo que, tendo sido desde a sua infância instruído com grande zelo nos exercícios da vida solitária e educado santamente, fazia brilhar em suas palavras e em suas ações uma verdadeira piedade. Entretanto, não imaginem que eu queira aqui falar daquele Zózimo acusado de ensinar erros no que concerne à Crença; os nomes são os mesmos. Este de quem falo, ficou primeiramente em um mosteiro da Palestina e, passando por todos os exercícios da vida solitária, tornou-se muito recomendado, pela pureza de seus hábitos e o seu fervor na penitência; pois observava inviolavelmente todas as instruções que lhe davam aqueles que desde a juventude haviam sido alimentados deste santo modo, de forma a mantê-lo capaz de suportar os combates que se lhes apresentavam na prática exata das regras, e, não bastando, acrescentou ainda muito de si, pelo desejo que trazia de sujeitar a carne ao espírito. Assim, jamais se percebeu uma pequena falta na menor das coisas, e ele realizava tão perfeitamente tudo o que se esperava de um solitário, que se via com frequência muitos outros, tanto das redondezas quanto das províncias distantes, virem até ele e, por suas instruções e seus exemplos, portarem-se com mais ardor do que antes nos outros santos exercícios da penitência.
Tendo tantas qualidades excelentes, meditava sem cessar sobre as Santas Escrituras, pois, quer estivesse deitado para um pequeno repouso, quer estivesse levantado, quer trabalhasse com as mãos ou comesse, seu espírito se ocupava sempre deste objetivo que se lhe tornara tão familiar, e nunca interrompia a obra de recitar os Salmos e de meditar sobre as Sagradas Escrituras. Assim, tornado-se digno de ter seu espírito esclarecido por Deus, aqueles que viviam com ele asseguravam que frequentemente era favorecido com visões; o que não é nem estranho nem incrível, pois nosso Senhor Jesus Cristo diz: “Bem-aventurados os puros de coração, pois verão a Deus”; com mais razão ainda àqueles que purificaram a sua carne, que sempre permaneceram em abstinência e cujo espírito jamais adormece no caminho da piedade; esses podem ter os olhos iluminados pelas luzes divinas, como marca da felicidade que os espera na outra vida, onde O verão em toda a Sua majestade e glória.
Zózimo dizia que estava naquele mosteiro praticamente desde ter deixado o seio materno, onde viveu até os 53 anos na observância das regras da vida solitária, e um dia, vendo-se tentado por alguns pensamentos que lhe faziam crer ser perfeito em todas as instruções de quem quer que fosse, dizia consigo: “Há algum Solitário no mundo que possa me ensinar algo de novo ou me mostrar algo que eu ainda não tenha realizado por minhas próprias ações nesta santa maneira de viver? Haverá alguém que me ultrapasse?”.
Como ele se entretinha com estes pensamentos e alguns outros parecidos, apresentou-se um homem diante dele que lhe disse: “Zózimo, é verdade que combateste generosamente e tanto quanto um homem poderia fazer. É verdade que correste bastante na carreira da vida solitária. Mas não há nenhum homem que possa se vangloriar de ser perfeito, sobretudo porque tu não sabes ainda que o presente combate é mais difícil de suportar do que os passados, e a fim de que conheças que há muitas outras vias para chegar à Salvação, sai de teu país, sai do meio dos teus próximos, sai da casa de teu pai, como o grande patriarca Abraão, e vai-te ao mosteiro que fica ao longo do Jordão”.
Seguindo aquilo que lhe havia sido recomendado, Zózimo saiu do mosteiro onde havia sido alimentado desde a sua infância e, tendo chegado à beira do Jordão – o mais santo de todos os rios –, foi conduzido pelo mesmo homem ao mosteiro onde Deus lhe ordenara ir. Tendo batido à porta e falado com o porteiro, este irmão foi dizer ao abade, que veio recebê-lo, reconhecendo por seu hábito e por sua continência tratar-se de um Solitário. Depois que Zózimo pôs-se de joelhos, conforme o costume dos Solitários, e que pediu a sua bênção, o abade lhe disse: “De onde vens, meu irmão? E que assunto te traz até os pobres Solitários?”. Zózimo respondeu: “Meu pai, não estimo ser necessário dizer-vos de onde venho, e penso que é suficiente que saibais que o que me traz é o desejo de encontrar aqui temas de edificação, pois soube coisas tão vantajosas deste mosteiro e tão dignas de elogio, que são capazes de levar os homens a unirem-se a Deus”. O abade retorquiu: “Meu irmão, que Deus, o único que pode curar as enfermidades da alma, queira por Sua graça instruir-te e a nós também com Seus mandamentos, e conduzir nossos passos para caminharmos nos santos caminhos; pois não há homem algum que seja capaz de fazer outros avançarem na virtude. É preciso que cada um vele cuidadosamente sobre si mesmo e, sem elevar alto demais seus pensamentos, faça o que lhe for mais vantajoso para chegar à perfeição; Deus cooperando com ele. Todavia, já que dizes que a caridade de Jesus Cristo te traz aqui para ver os pobres Solitários, podes permanecer conosco se é este o teu desejo; e o Bom Pastor, que deu a vida para nossa Salvação e que chama as suas ovelhas cada uma por seu nome, nos alimentará pela graça de Seu Espírito Santo”. Tendo o abade concluído suas palavras, Zózimo ajoelhou-se ainda e, após ter recebido a benção, respondeu: “Assim seja”, e ficou no mosteiro.
Capítulo 2
Ele viu, lá, anciãos de rostos veneráveis, admiráveis em suas ações, fervorosos em espírito, e que serviam a Deus sem qualquer interrupção. Não havia hora durante a noite em que não se cantasse os salmos, e durante o dia eles estavam sempre em suas bocas, enquanto trabalhavam incessantemente com as mãos. Não se sabia o que eram cuidados inúteis. Não tinham o menor pensamento sobre o bem nem sobre outras coisas temporais, e apenas conheciam-lhes os nomes; mas empregavam todo o ano considerando o NADA desta vida, que não é senão uma passagem cheia de dores e misérias, e meditando sobre coisas semelhantes. Uma coisa somente lhes parecia importante, e trabalhavam com todo o ardor para adquiri-la: estarem mortos para o século, ao qual haviam renunciado quando deixaram o mundo, e para todas as coisas que dependiam dele. Vivendo assim, como se não vivessem mais, alimentavam o espírito com uma carne que não lhes faltava nunca: a Palavra de Deus; e os seus corpos com pão e água somente, a fim de terem mais motivo para esperar a misericórdia de seu Mestre. Como contou depois, Zózimo foi bastante edificado por esta maneira de viver, e excitava-se com os exemplos para avançar na perfeição, encontrando pessoas que trabalhavam tão poderosamente com ele para adquiri-la e mostravam com tanta alegria um novo Paraíso na Terra.
Poucos dias depois, chegou o tempo recomendado aos Cristãos, pela Tradição da igreja, para celebrarem o santo jejum da Quaresma, e para purificarem as almas a fim de se tornarem dignos de verem os dias da Morte e da Ressurreição de nosso Salvador. Ora, estes Solitários faziam todas as suas funções sem serem jamais perturbados, pois não se abria nunca a porta principal da casa, devido ser este um lugar de solidão, que não somente não era frequentado, como também não era conhecido pela maior parte dos vizinhos; e esta regra era observada desde o estabelecimento do mosteiro, o que me faz crer que foi por esta razão que Deus enviou Zózimo para lá.
Quero reportar, aqui, a ordem que observavam estes Solitários. No primeiro domingo de Quaresma, celebravam-se os Divinos Mistérios segundo o costume, e cada um recebia o Corpo e Sangue preciosos de Nosso Senhor Jesus Cristo, que dá a vida aos homens. Em seguida, depois de terem comido um, pouco como de hábito, eles se reuniam no Oratório, onde, tendo feito a oração de joelhos, davam-se uns aos outros o santo beijo e, ajoelhando-se, beijavam seu abade e pediam-lhe a bênção, a fim de serem assistidos por suas orações no combate que iriam empreender. Abriam-se, em seguida, todas as portas do mosteiro e, cantando todos a uma só voz o Salmo: “O Senhor é a minha luz e a minha salvação, a quem temerei? O Senhor é a minha proteção, quem será capaz de me assustar?”, eles saíam, deixando um ou dois irmãos no mosteiro; não para guardarem o que lá ficava, pois não tinham nada que fosse bom para os ladrões, mas para não deixarem que o Oratório ficasse sem alguém que cantasse os louvores a Deus. Cada um levava consigo o que precisava para viver conforme suas necessidades; uns levavam figos, outros damascos, outros legumes molhados com água, e haviam os que não levavam nada, senão seus corpos e seus hábitos, comendo apenas ervas que crescem no deserto, quando pressionados pela fome. Cada um era regra para si próprio, e era uma lei inviolavelmente observada entre eles não revelarem em que abstinência haviam vivido durante aquele tempo. Para isso, passavam o Jordão e afastavam-se bastante uns dos outros; tinham a solidão por companhia. E, se viam ao longe vir em sua direção um irmão, desviavam-se de seu caminho e iam para outro lado, vivendo somente para Deus e sozinhos, cantando frequentemente os Salmos e não comendo senão em determinados momentos. Após haverem jejuado, voltavam ao mosteiro antes do dia da Gloriosa Ressurreição de Jesus Cristo nosso Salvador, que é a vida de nossas almas, e, no domingo em que a Santa Igreja celebra com Ramos, eles estavam todos de volta. Cada um trazia de volta consigo o testemunho de sua própria consciência, sobre como havia trabalhado durante o retiro, e as sementes que havia lançado em sua alma, de maneira a torná-la forte e generosa para empreender novos trabalhos para o serviço de Deus; e não se perguntavam jamais uns aos outros, como já vos disse, como tinham vivido durante esse tempo de separação e de solidão.
Eis a regra daquela casa, observada perfeitamente, e a maneira pela qual cada um daqueles Solitários unia-se a Deus no deserto e combatia contra si mesmo, de maneira a tornar-se agradável a Deus somente, e não aos homens, sabendo que todas as coisas feitas por amor aos homens e com o desejo de agradá-los, mais prejudicam do que servem àqueles que as executam.
Capítulo 3
Segundo o costume deste mosteiro, Zózimo passa o Jordão, levando somente seu hábito e alguma coisa para viver. Assim, ele observava a regra e, atravessando aquela solidão, não comia senão quando a necessidade a isso o obrigava. Deitava-se na terra, onde o surpreendesse a noite, para repousar e dormir um pouco; e tão logo as primeiras luzes do dia apareciam, apressava-se a caminhar tendo continuamente no espírito, como contou mais tarde, o desejo de entrar mais adiante neste Deserto, com a esperança de aí encontrar algum bom pai de quem pudesse aprender alguma coisa; e, sem cessar avançava ao acaso, como se estivesse em direção a alguém que lhe fosse conhecido. Depois de ter caminhado durante vinte dias, tendo chegada a hora das Sextas, parou um pouco, e voltando-se para o Oriente fez sua prece normal, pois havia se acostumado a parar em certas horas do dia e a cantar os Salmos de pé e a fazer ajoelhado as orações.
Quando, então, cantava os Salmos, e com olhar fixo mantinha os olhos elevados para o Céu, viu em sua mão direita algo como a sombra de um corpo humano, o que o encheu primeiramente de espanto e medo, por crer tratar-se de uma ilusão do diabo; mas, tendo-se armado com o Sinal da Cruz e tendo perdido toda a apreensão e chegado ao fim das orações, viu, ao voltar os olhos, alguém que de fato andava na direção do Ocidente. Ora, aquilo que via era uma mulher, cujo corpo o ardor do sol havia tornado extremamente negro e cujos cabelos eram brancos como a lã, mas tão curtos que iam somente até o pescoço.
Vendo isto que acabo de relatar, e regozijando-se na esperança de receber o consolo que esperava, Zózimo correu com todas as suas forças ao lugar onde aquilo que lhe aparecia apressava-se em ir, pois sua alegria era muito grande, porque, durante todo o tempo que havia caminhado no deserto, não havia visto nenhuma forma nem de homem, nem de bestas selvagens, nem de pássaros, nem de quaisquer animais, o que aumentava seu desejo de saber o que é que lhe aparecia; esperando tirar grande lucro disso. Ela, porém, vendo Zózimo segui-la, fugiu em direção ao fundo do deserto. Esquecendo a fraqueza de sua idade e não considerando o trabalho que lhe daria o caminho, ele correu em grande velocidade, pelo desejo que tinha de ver mais perto aquilo que fugia dele; e assim, correndo mais veloz que ela, aproximava-se cada vez mais.
Quando ele estava a uma distância que ela poderia ouvir a sua voz, ele gritou-lhe chorando: “Serva de Deus, porque fugis deste pecador e pobre velho? Quem quer que sejais, conjuro-vos por Deus, pelo amor de quem passais vossa vida nesta horrível solidão, a suportar-me; conjuro-vos pela esperança que tendes de ser um dia recompensada de tantos trabalhos. Parai e não recuseis a nossa bênção e nossas orações, àquele que vô-las pede em nome de Deus que jamais rejeitou ninguém”. Zózimo, misturando assim suas conjurações às suas lágrimas, chegaram ambos correndo a certo lugar onde as águas de uma torrente haviam cruzado, e, então, aquilo que fugia, desceu e subiu em seguida de outro lado. Zózimo continuava gritando e não podendo passar além, permaneceu aquém da torrente que estava seca, e redobrou de tal maneira seus lamentos e suspiros que se podia escutá-los ainda muito longe.
Capítulo 4
Então, aquela pessoa que fugia disse-lhe: “Abade Zózimo, peço-vos em nome de Deus perdoar-me por não me voltar para falar convosco, pois sou uma mulher, e como podeis ver estou nua; mas, se desejais assistir com vossas orações uma pobre pecadora, lançai-me vossa capa para que eu me cubra e possa assim voltar-me para vós e receber a vossa bênção”. Zózimo ficou tomado de um maravilhoso espanto misturado com temor, e sentindo-se transportado para fora de si mesmo ao ouvir estas palavras, pois, sendo um homem excelente e que a graça de Deus havia dotado de muita prudência, julgou que aquela mulher, não o tendo jamais visto ou ouvido falar dele, não o tivesse chamado por seu nome sem uma graça particular de Deus. Executou prontamente o que ela havia ordenado, e, após haver desabotoado sua capa, lançou-a, virando-se de costas. Tendo-a recebido, ela cobriu-se a maior parte do corpo e, assim envolvida, voltou-se para Zózimo e lhe disse: “Meu pai, que desígnio trouxe-vos a ver uma pecadora, e o que desejais saber e aprender de mim, para não temer tanto trabalho, quanto tivestes que sofrer para vir até aqui?”.
Prostrando-se por terra Zózimo, pediu-lhe a bênção, como é costume fazer, e ela, prostrando-se por sua vez, pediu-lhe a sua também.
Permaneceram muito tempo assim, e, por fim, ela lhe disse: “Meu pai, cabe a vós dar-me a benção e fazer a oração, visto que sois honrado pelo Presbiterado, e que, há tantos anos servindo ao Santo Altar, penetrais, pela graça e pela luz que Deus vos dá, nos segredos e mistérios de Jesus Cristo”.
Estas palavras aumentaram o temor e a emoção de Zózimo, e via-se tremer esse santo ancião e correr o suor em grandes gotas pelo seu rosto. Assim, não tendo mais forças e como se estivesse prestes a dar o último suspiro, ele lhe disse: “Ó mãe espiritual, te conheço o bastante pelo pouco que vi, pois estais toda com Deus e que quase não vives mais na terra; e posso crer que Ele vos concedeu dons muito extraordinários; pois, sem terdes jamais me visto, chamastes-me pelo meu nome; mas visto que na dignidade das funções onde se é chamado não acontece que tenhamos uma graça igual ao cargo que temos de exercer, e que esta graça se conhece principalmente pelos efeitos maravilhosos que produz nas almas, abençoai-me pelo amor de Deus e assisti-me com vossas orações, a fim de tornar-me um digno de imitar a vossa virtude”.
Então, compadecendo-se da teimosia do santo ancião, ela diz: “Bendito seja o Senhor que opera a salvação das almas”. Ao que Zózimo respondeu: “Assim seja”, e levantaram-se os dois e ela disse-lhe: “Quem, então, vos trouxe até uma pecadora como eu? De todo o modo, já que o Espírito Santo vos conduziu até aqui por Sua graça, a fim de prestar-me alguma assistência à minha fraqueza, dizei-me, suplico-vos, de que maneira se conduzem os Cristãos hoje; de que maneira agem os imperadores; e de que maneira o rebanho de Jesus Cristo é agora governado na Santa Igreja?”. Zózimo respondeu: “Minha mãe, Deus concedeu às vossas santas orações uma paz concedida aos fiéis. E não recuseis, suplico-vos em Seu nome, a um bastante indigno Solitário, o consolo que vos peço, pelo amor de Jesus Cristo, por todo mundo, e particularmente para este pobre pecador, a fim de que não tenha feito inutilmente um tão longo e laborioso caminho através desta vasta solidão”. Ela respondeu-lhe: “Meu pai, já vos disse que cabe a vós, honrado com o Sacerdócio, rezar por todo mundo e por mim também, visto ser uma das funções às quais a vossa vocação vos obriga. Visto que a obediência é uma das coisas que nos são mais recomendadas, farei de bom grado aquilo que me ordenares”.
Concluindo estas palavras, ela se voltou para o Oriente e, elevando os olhos ao céu e estendendo as mãos, começou a rezar, mexendo somente os lábios e sem que se pudesse ouvir sequer uma de suas palavras. Como mais tarde relatou, Zózimo ficou bastante espantado e, sem dizer nada, baixou o olhar contra a terra; depois, vendo que ela continuava longamente em oração, levantou os olhos e viu que ela elevava-se um côvado da terra e que rezava assim, suspensa no ar; aquilo que tinha Deus por testemunho era muito verdadeiro. Então, se sentiu repleto de uma tão extrema apreensão; empapado de suor, jogou-se no chão, sem ousar partir, e dizia somente consigo: “Senhor, tem piedade de mim”.
Capítulo 5
Como ele estava neste estado, veio-lhe uma tentação de que talvez fosse algum espírito maligno fingindo rezar. Então, a mulher, voltando-se para ele e reanimando-o, disse-lhe: “Porque, meu pai, vossos pensamentos vos levam a escandalizar-vos a propósito de mim, fazendo-vos crer que não sou senão um espírito e que minha oração não é senão fingimento? Não duvideis de que sou uma mulher e uma pobre pecadora; mas, tal como sou, recebi o Batismo, e bem distante de ser um espírito não sou senão pó e cinza, senão carne, e não tenho ao menos espírito para conceber as coisas espirituais”. Concluindo estas palavras, ela fez o Sinal da Cruz sobre a sua fronte, sobre os seus olhos, sobre os seus lábios e sobre o seu estômago, e acrescentou: “Meu pai, Deus nos livra se quiser do demônio, e de tudo o que vem dele; que de nós tem sem dúvida, muita inveja”.
A estas palavras, o ancião prostrou-se a seus pés e disse-lhe chorando: “Conjuro-vos, por Nosso Senhor Jesus Cristo, nosso verdadeiro Mestre, que por nossa salvação dignou-se nascer de uma Virgem e, pelo amor de quem estais revestida desta nudez e fizeste sacrifício de vosso corpo para Lhe serdes agradável, não escondais nada, suplico-vos, ao vosso servo, mas dizei-me quem sois, de onde vinde, quando e por que razão viestes para esta solidão, e, de maneira geral, sobre todas as coisas que vos dizem respeito; a fim de que eu conheça assim a grandeza das obras de Deus, pois que benefício pode trazer um tesouro escondido e uma ciência não declarada, assim como diziam as Escrituras? Dizei-me, então, sem escrúpulos, todas as coisas pelo amor de Deus, pois não será por vaidade, mas para satisfazer este pobre pecador, ainda que ele seja indigno disso. E tomo como testemunha o mesmo Deus para quem vives somente e com quem conversais continuamente, e não creio ter sido trazido para esta solidão senão pelo desejo Dele de tornar manifesto tudo o que se passou convosco, visto que não está em nosso poder resistir às Suas vontades, e que se nosso Senhor Jesus Cristo não tivesse desejado fazer-vos conhecer e fazer saber os combates que empreendestes em Seu serviço, Ele não teria jamais permitindo que alguém vos tivesse visto, e, na fraqueza em que me encontrava que mal me permitia sair de minha cela, Ele não me teria dado forças para fazer com tanta diligência um tão longo caminho”.
Falando assim, e acrescentando várias coisas semelhantes, aquela mulher disse-lhe: “Perdoai-me, meu pai, se morro de vergonha de vos deixar ouvir qual foi a infâmia de minhas ações. Entretanto, como vistes que eu estava nua, descobri-las-ei também completamente, para que conheçais a força com que as minhas impurezas encheram a minha alma de confusão e vergonha. E estou longe, como dissestes, de querer contar, por algum sentimento de vaidade, as coisas que me concernem; pois de que me poderia glorificar tendo sido um vaso de eleição não de Deus, mas do diabo? E estou certa de que assim que começar a vos fazer ouvir toda a história de minha vida, vós fugireis de mim como de diante da serpente, e vossos ouvidos não quererão escutar os inúmeros crimes que cometi. Contudo, contá-los-ei com verdade e sem nada disfarçar, após vos ter suplicado não interromper nunca as orações por mim, a fim de que me torne digna da misericórdia de Deus e que eu a receba no dia do julgamento”. O ancião, com estas palavras, derramou muitas lágrimas e ela começou, então, a sua narrativa.
Capítulo 6
Meu pai, meu país é o Egito. Estando meu pai e minha mãe ainda vivos, parti com 12 anos contra a vontade deles para Alexandria, onde não consigo pensar, sem enrubescer, que perdi primeiramente a honra, e me deixei levar pelo desejo contínuo e insaciável da volúpia infame e criminosa. Precisaria de muito tempo para dizer tudo em pormenores, mas dir-vos-ei tudo o mais breve que puder, e tanto quanto seja necessário, para vos fazer saber como era o ardor excessivo que me consumia no pecado. Permaneci publicamente durante mais de dezessete anos neste abrasamento funesto, e não foi absolutamente por causa de presentes que deixei de ser virgem, pois recusava tudo o que me ofereciam; o furor que me agitava e que me levava a um tamanho excesso fazia-me julgar que haveria muito mais urgência quando eu não desejava absolutamente outra recompensa pelo pecado senão o próprio pecado. Mas, não vos espanteis por eu me preocupar tão pouco com o dinheiro, visto que eu queria viver de esmola ou daquilo que roubava, tanto que, como já vos disse, eu não tinha outra paixão senão mergulhar continuamente na lama das minhas impudências. Esta era a única coisa que me agradava, e acreditava que era verdadeiramente viver o abusar assim incessantemente do corpo que Deus me dera.
Como vivia ao acaso, vi um certo dia de verão um grande número de egípcios e líbios que corriam na direção do mar. Tendo perguntado ao primeiro que encontrei: “Para onde correm eles com tanta pressa!”, ele respondeu-me: “Vão para Jerusalém, para a Exaltação da Santa Cruz, que, como de costume, deve ser celebrada dentro de alguns dias”. “Crês”, perguntei-lhe, “que eles me aceitariam se eu quisesse ir com eles?”. “Isto é simples”, respondeu-me, “se tivesses os meios de pagar a passagem”. “Com certeza”, repliquei, “não tenho com que pagar a passagem, nem como pagar as minhas despesas, mas não deixarei de ir, subirei no navio que eles alugaram e, se se recusarem a me receber, dar-me-ei eu mesma como dinheiro, e, tendo desta forma meu corpo em seu poder, me receberão como pagamento. Ora, o que me fazia desejar ir com eles – perdoai-me meu pai o que ouso dizer – era ter muitos cúmplices para o meu furor.
Disse-vos bastante meu pai; sofrei, suplico-vos, e ficarei por aqui. Não me obrigueis a continuar a relatar aquilo que me cobre de tão estranha confusão. Pois Deus sabe que eu não poderia falar disso sem tremer, e parece-me que todas as minhas palavras são como manchas, que sujam a pureza do ar onde ecoam”. Zózimo respondeu-lhe, regando com suas lágrimas a terra: “Em nome de Deus, minha mãe, continuai e não omitais nada de uma tão difícil narrativa”. Ela continuou então:
“Aquele jovem foi-se indo com a resposta que eu lhe havia dado, e eu, jogando fora o fuso que trazia na mão e do qual de tempos em tempos servia-me para viver, corri na direção do mar como os outros, e vi em pé, na margem, nove ou dez jovens cujos rostos e porte agradaram demasiadamente à minha paixão desregrada. Havia outros também que já tinham subido ao barco, e jogando-me no meio deles despudoradamente como de costume, disse-lhes: ‘recebei-me convosco nesta viagem, e não serei cruel demais convosco’. Ao que, acrescentando outras palavras mais livres e piores que estas, fi-los rir a todos. Aquelas pessoas, percebendo o meu descaramento, pegaram-me e levaram-me num pequeno barco, e então começamos nossa navegação”.
“Ó servo de Deus, como poderia eu contar-vos o que aconteceu em seguida? Que língua pode proferir e que ouvidos escutar aquilo que se passou naquele pequeno barco durante o caminho, e de que maneira eu incitava ao pecado aqueles miseráveis que não queriam cometê-lo? Não há palavras que possam representar a imagem detestável dos crimes em que eu me mostrava tão sábia, e que fiz com que aqueles pobres miseráveis cometessem. Contentai-vos, portanto, meu pai, com que vos diga que não me espantaria que o mar pudesse sofrer pelas minhas iniquidades e que a terra se abrisse para me fazer descer viva ao Inferno, eu que fazia caírem tantas almas nas redes da morte. Mas Deus, que não deseja a perda de ninguém e que quer que todos sejam salvos, pedia com certeza que eu fizesse penitência; pois Ele não quer a morte do pecador, mas espera a sua conversão com paciência impar”.
“Fomos, assim, para Jerusalém, e empreguei todos os dias que aí permaneci antes da festa em ações tão detestáveis quanto as anteriores, e ainda piores, pois, não me contentando com o mal que fazia no mar com aqueles jovens, fiz ainda perderem-se muitos outros, tanto da cidade quanto os de fora, aos quais eu solicitava tomarem parte de minhas impudências”.
Capítulo 7
“Quando chegou a festa gloriosa da Exaltação da Cruz de Nosso Senhor, eu prosseguia como antes no desejo de perder as almas dos jovens e, tão logo o dia começou a despontar, vendo que todos corriam para a igreja, corri também como os outros, e fui com eles à praça que ficava diante do Templo. Na hora da cerimônia, esforçava-me para avançar. Enfim, com extrema dificuldade, cheguei à porta da igreja, mas quando quis entrar como faziam todos os outros sem nenhuma dificuldade, era impedida por um poder divino que me repelia para fora, e assim, miserável que estava, encontrei-me sozinha naquela praça diante da igreja. Imaginando que isso provinha de minha fraqueza, lancei-me de novo entre aqueles que acabavam de chegar, e, esforçando-me com todo o meu poder para entrar com eles, trabalhava sempre inutilmente”.
“Tão logo eu tocava a soleira da porta, pela qual todos os outros entravam sem dificuldade, eu era a única rejeitada; e, como se houvesse uma multidão de soldados que tivessem ordem de fechar-me a entrada da igreja, eu sentia de repente um poder escondido que fazia o mesmo efeito, e de novo encontrava-me na praça como antes”.
“Tendo acontecido assim três ou quatro vezes, e vendo que todos os meus esforços eram inúteis, desesperava-me para poder entrar, e não tendo mais quase força para sustentar-me, tanto que meu corpo havia sido imprensado, retirei-me para um canto daquela praça, onde comecei enfim a considerar qual poderia ser a causa que me impedia de ver aquele Santo Madeiro sobre o qual um Deus morreu para dar a vida aos homens. E, um pensamento salutar tendo-me sacudido o espírito e aberto os olhos de minha alma, julguei que a abominação de minha vida era o que me fechava a entrada do Templo. Então, inundada de lágrimas e bastante perturbada, dei socos no estômago, dei grandes suspiros do mais profundo do coração, e, misturando meus gritos com soluços, percebi acima de mim uma imagem da Santa Mãe de Deus”.
“Dirigindo-me logo a Ela, e olhando-a fixamente eu disse-lhe: ‘Santa Virgem, que concebeste segundo a carne um Deus todo poderoso, sei que não parece que, estando eu imunda como estou por causa de tantos crimes, eu ousaria adorar a Vossa imagem e lançar os olhos sobre Vós, que sois uma Virgem muito pura e cuja alma assim como o corpo estão isentos de toda mancha; mas que, ao contrário, é bastante justo que Vossa incomparável pureza tenha horror de uma pessoa tão abominável quanto eu. Entretanto, já que aprendi que este Deus a quem foste digna de carregar em Vosso seio, fez-Se homem para chamar os pecadores à penitência, suplico-Vos que me assistais no abandono de socorro em que estou. Recebei a confissão que Vos faço de meus enormes pecados, e permiti-me entrar na igreja, afim de que não seja tão infeliz, por ser privada da visão do Madeiro precioso onde Deus-homem, que concebeste permanecendo virgem, foi pregado e derramou Seu Sangue pela minha salvação. Ordenai, Rainha do Céu, ainda que eu seja indigna, que a porta me seja aberta para adorar a Divina Cruz, e dou-vos por caução o mesmo Jesus Cristo que deste ao mundo. Que não me aconteça jamais no futuro cair nas detestáveis impurezas com a qual sujei meu corpo; corpo este que deveria ter cuidado para conservá-lo casto. E, tão logo tenha visto o Santo Madeiro onde Vosso Filho quis sofrer por nós, renunciarei ao mundo e a todas as coisas que vem dele, e partirei na mesma hora para ir ao lugar que Vos aprouver levar-me, ó Virgem Santa, como minha caução e meu guia’.”
“Tendo concluído estas palavras, e o ardor da fé que já começava a sentir no coração dando-me algum consolo, e fazendo-me ter confiança na bondade tão terna e tão caridosa da Mãe de Deus, parti do lugar onde havia feito a minha oração e, misturando-me àqueles que iam à igreja, não encontrei mais nada que me repelisse nem que impedisse a minha entrada. Então, fui tomada por um tremor, como transportada fora de mim; todas as coisas espantavam-me, e os obstáculos que antes encontrei haviam cessados, e aquele poder secreto que me repelia parecia agora facilitar-me a entrada; cheguei sem nenhuma dificuldade até o coração da igreja, onde recebi a graça de adorar o precioso Madeiro da Cruz gloriosa, que dá a vida aos homens”.
“Conhecendo, assim, o incompreensível excesso da misericórdia de Deus, e como Ele está sempre pronto para receber os pecadores na penitência, joguei-me na terra e, após haver beijado o santo chão da igreja, sai e corri para Aquela que havia me respondido. Tendo chegado ao lugar onde minha promessa estava escrita, ajoelhei-me diante da imagem da Santa Virgem e dirigi-Lhe a minha oração desta maneira: ‘Muito misericordiosa Mãe de Deus, fizestes-me ver os efeitos da Vossa incomparável bondade, visto que não rejeitastes minha humilde súplica, ainda que indigna de ser ouvida. Vi a glória que os maus são justamente privados de ver, a glória de Deus todo poderoso, que por vossa intercessão recebe a penitência dos pecadores. Mas, miserável que sou, que necessidade há de lembrar-me e de falar mais sobre meus crimes? É tempo, Virgem Sagrada, de realizar com Vossa assistência aquilo que Vos prometi. Envia-me, então, onde Vos aprouver, sede meu guia no caminho da minha salvação; instrui-me na verdade e mostrai-me a via que conduz à penitência’. Falando assim, ouvi uma voz como de alguém que me chamava de muito longe: ‘Se passares o Jordão, encontrarás um feliz repouso’. Escutando estas palavras e acreditando que eram ditas para mim, gritei chorando e olhando a imagem da Virgem: ‘Rainha do Universo, por quem a Salvação chegou aos homens, não me abandoneis, suplico-vos’. Depois destas palavras saí daquele lugar e fui-me com grande pressa. Alguém que me viu, deu-me três peças de dinheiro e disse-me: ‘Recebei isto’. Tomando-as, comprei três pães para a viagem que ia empreender com a graça de Deus, e tendo pedido ao padeiro o caminho do Jordão, soube por ele por qual porta da cidade deveria sair, e fui-me, então, correndo e chorando.
Empreguei, assim, o resto do dia fazendo sem cessar reflexões sobre mim mesma. Ora, era por volta da terceira hora do dia quando tive a felicidade de ver a Santa e Preciosa Cruz de Nosso Salvador; e, o sol estando prestes a se pôr, percebi a Igreja de São João Batista que se assentava ao longo do Jordão. Fui logo para o rio e lavei as mãos e o rosto com aquela água santa, e voltei para a sua igreja onde recebi o precioso Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, que dá a vida às almas. Depois, tendo comido a metade de um dos meus pães e bebido a água do rio, descansei a noite na terra.
Capítulo 8
Tendo chegado a alvorada, passei para o outro lado do Jordão, e lá pedia ainda à Santa Virgem, como meu guia, que me conduzisse ao lugar que Lhe agradasse; e cheguei, assim, nesta solidão onde desde aquele tempo até hoje afasto-me cada vez mais, o quanto posso, evitando o encontro com quem quer que seja, e esperando a vinda do meu Deus, que salva os pequenos e os grandes que a Ele se convertem”.
Então Zózimo lhe disse: “Minha mãe, há quantos anos estais nesta solidão?”.
Ela respondeu: “Segundo os cálculos que fiz, há 47 anos saí da Cidade Santa”.
“E o que encontrastes desde então, e o que podeis encontrar ainda todos os dias”, retorquiu Zózimo, “com que vos possais alimentar?”.
Ela replicou: “Quando cruzei o Jordão, tinha ainda dois pães e meio, que logo ressecaram e ficaram duros como pedras, e durante alguns anos comia um pouco de cada vez”.
Zózimo lhe disse: “Pudestes passar assim tanto tempo sem sofrer muitas penas e sentir muitas perturbações em vosso espírito, por tão grande mudança?”.
“Fazeis uma pergunta”, disse ela, “à qual não saberia responder sem tremer pela lembrança de tantos perigos,que pela minha maldade fizeram agitar demais a minha alma; pois temo que, relatando-os, eles me inquietem ainda”.
“Dize-me, eu vos suplico, minha mãe”, respondeu-lhe Zózimo, “sem esquecer coisa alguma, pois, tendo Deus querido que vós me conhecêsseis, não deveis esconder-me nada”.
Então, ela retomou a palavra: “É verdade, meu pai, que passei dezessete anos combatendo sempre contra desejos violentos, importunos e despropositados, quando começava a comer; pois desejava carne, lamentava os peixes do Egito e desejava muito vinho, do qual gostava tanto e que no mundo bebia em excesso, ao ponto de perder a razão; no lugar onde me encontrava, então, sem haver uma gota d’água somente, o que acendia em minhas veias uma sede tão ardente que me reduzia à extremidade. Também morria de vontade de cantar aquelas canções dissolutas, que são canções do diabo, que havia aprendido pela vida e que voltando à memória enchiam meu espírito de perturbação; mas, de repente, começando a chorar e batendo-me no estômago, representava-me a promessa tão solene que havia feito ao vir para esta solidão e, em espírito, punha-me diante da imagem da Santa Mãe de Deus que me tinha sob Sua proteção, suplicava-Lhe em lágrimas que afastasse de mim estes pensamentos que tanto afligiam a minha alma. Muito cheia de dor, depois de ter chorado extremamente e mortificado-me com golpes, via depois uma luz, e meu espírito voltava à calma”.
“Perdoai-me, meu pai, se não vos posso contar em detalhes todos os pensamentos que me agitavam ainda por me levarem no desejo do pecado. Sentia-me queimar com um ardor infeliz que me arrastava, como à força, no desejo de cometê-lo; mas, quando estas tentações me perseguiam, prostrava-me contra a terra, regava-a com minhas lágrimas e, acreditando ver verdadeiramente diante de meus olhos, Aquela que havia respondido por mim, parecia-me que Ela me reprovava com ameaças o excesso de fúria que me agitava e que, cheia de cólera, me fazia ver quais seriam os castigos assustadores pela minha horrível infidelidade; e não me levantava nunca, senão depois que aquela luz tão doce e tão favorável me houvesse iluminado como antes e banido estas perturbações de meu espírito. Era assim que eu elevava incessantemente o meu coração para aquela Santa Virgem, que carregava em Seu seio o Autor da castidade, e que eu havia tomado como minha caução para com Deus, suplicando a Ela que me assistisse naquela solidão e em minha penitência; ao que Ela jamais faltou”.
“Eis aí meu pai, como passei estes dezessete anos em um combate perpétuo, contra tantas tentações e perigos. E, desde então, esta feliz Mãe de Deus, que é todo o meu recurso e todo o meu auxílio, nunca me abandonou, e serviu-me de guia em geral em todas as coisas”.
Então, Zózimo disse-lhe: “De que vos alimentastes e vestistes?”.
Ela respondeu: “Aqueles pães, como vos disse, duraram dezessete anos; e, depois disto, vivi das ervas que encontrei no deserto. Quanto às roupas, as que tinha quando cruzei o Jordão, tendo-se estragado completamente, sofri muitas penas; o ardor excessivo do verão queimando-me, e os frios insuportáveis do inverno reduzindo-me a um tal estado que, traspassada e tremendo, caía frequentemente no chão e permanecia como morta sem poder me mexer, combatendo assim contra tantas necessidades e tentações diversas. Mas, no meio destas penas, o poder de Deus, de mil diferentes maneiras, conservou até hoje o meu corpo e a minha alma; e, repassando em meu espírito de que males o Senhor me livrou, alimento-me de uma carne que não me falta jamais, e estou saciada pela esperança que tenho de minha salvação. A palavra de Deus que contém todas as coisas, serve-me também de alimento e de abrigo. Pois o homem não vive do pão somente. E, quando àqueles que são despojados dos afetos do pecado faltam vestes, encontram rochedos que os cubram”.
Capítulo 9
Zózimo, vendo que ela citava passagens das Santas Escrituras, tiradas dos livros de Moisés, de Jó, e dos Salmos, disse-lhe: “Minha mãe, aprendestes os Salmos e lestes outros livros das Sagradas Escrituras?”.
Ela respondeu sorrindo: “Asseguro-vos que, desde que passei o Jordão para vir a este deserto, não vi outro homem do mundo senão a vós, nem encontrei nenhuma besta selvagem, nem nenhum outro animal. Também não aprendi, nem nunca escutei alguém que cantasse os Salmos ou os lesse; mas a palavra de Deus que é viva e eficaz, penetrando fundo no espírito humano, o instrui e ensina-lhe de maneira bastante particular. Agora, tendo acabado de prestar-vos conta daquilo que me concerne, conjuro-vos pela Encarnação do Verbo Eterno que orei por mim, pois sabeis que tenho cometido muitos crimes”.
A estas palavras, o ancião pôs-se de joelhos e prostrou-se contra a terra dizendo em voz alta: “Bendito seja o Senhor que, sozinho, faz maravilhas inumeráveis, tão grandes, tão admiráveis e tão gloriosas que enchem o espírito de espanto. Bendito sede vós, meu Deus, que me fizestes ver hoje quais são os favores com os quais cumularás aqueles que Vos temem. Ó Senhor, é bem verdade que não abandonais nunca as pessoas que vos procuram”.
A Santa, tomando-o pela mão, não lhe permitiu continuar por mais tempo contra a terra e disse, levantando-o: “Conjuro-vos, por Jesus Cristo nosso Salvador, não contar a quem quer que seja as coisas que vos disse, até que Deus me tenha libertado da prisão de meu corpo; conservai sob o selo do segredo e, com a graça de Deus, rever-me-eis ainda no ano que vem, na mesma época em que estamos. Peço-vos, também, em Seu Nome, para faltar com aquilo que vos pedi que, na próxima Quaresma, não passeis o Jordão segundo o costume do mosteiro onde estais”.
Zózimo, assombrado de ver que ela sabia deste costume e que ela falava disso como uma pessoa informada a este respeito, clamava sem cessar: “Glória seja dada a Deus, que concede àqueles que o amam muito mais do que eles Lhe pediram”.
Ela continuou assim: “Meu pai, não saiais, suplico-vos, durante este tempo do mosteiro, de onde, quando quiserdes, não estará em vosso poder sair e, na noite da Santíssima Ceia de Nosso Senhor, trazei-me num vaso sagrado e digno de tão grande mistério o Divino Corpo e Sangue vivificante de Nosso Salvador e esperai-me do lado do Jordão que encontra os países habitados pelas gentes do mundo, a fim de que, quando eu chegar, receba estes ricos presentes que dão a vida aos fiéis. Pois, desde que comunguei na igreja do bem-aventurado Precursor, antes de passar o Jordão, nunca mais recebi este Santíssimo alimento; o que me faz conjurar-vos com tanta insistência a que não recuseis meu pedido, mas trazei-me, peço-vos, o Divino Sacramento, que é a vida de nossas almas, à mesma hora que Nosso Senhor, criando-Os com Seus discípulos, tornou-os partícipes. Dizei a João, abade do mosteiro onde permaneceis, que vele por si mesmo e por seu rebanho, porque passam-se coisas lá que precisam de correção. Entretanto, não desejo que lhe deis este aviso presentemente, mas quando Deus vô-lo ordenar”.
Tendo acabado de proferir estas palavras e pedido a bênção do santo ancião, foi-se rapidamente para o fundo do deserto.
Capítulo 10
Zózimo, jogando-se no chão beijou o rastro dos passos da Santa e, depois, voltou glorificando a Deus e prestando-Lhe infinitas ações de graça. Passando pelo mesmo caminho que havia feito no deserto, ele voltou ao mosteiro no mesmo tempo que os outros, e permaneceu todo o ano seguinte no silêncio, não ousando falar daquilo que havia visto; mas orava a Deus que lhe permitisse ver ainda aquela pessoa por quem tinha tanto respeito e tanta admiração, e o tempo custava tanto a passar que ele suspirava pensando no quanto este ano era longo.
Quando chegou a época do Santo Jejum, e os outros Solitários depois da oração costumeira saíram no primeiro Domingo da Quaresma cantando os Salmos, ele foi impossibilitado de ir por uma febre que o obrigou a permanecer no mosteiro. Então, lembrou-se do que a Santa lhe havia dito, que, mesmo que quisesse, ele não poderia sair de lá, e alguns dias mais tarde foi aliviado de sua indisposição. Voltando os Solitários, ele realizou o que lhe havia sido ordenado, colocando em um pequeno cálice o Corpo e Precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e levou também, dentro de uma cesta de vime, alguns figos, damascos e lentilhas embebidos em água. Depois, chegando a noite, sentou-se à beira do Jordão para esperar a Santa, não se deixando adormecer, pois que ela tardava a chegar; mas olhava atentamente para o lado do deserto à espera do que desejava tanto ver, e dizia: “Não teria ela vindo, e não me tendo encontrado, teria retornado, então?”. Acompanhava suas palavras com lágrimas, e erguendo os olhos para o céu com ardor, fazia esta oração: “Meu Deus, não me recuseis ver ainda aquela que já me concedestes o favor de vê-la; mas temo que os meus pecados me tornem indigno de receber esta graça”.
Assim orando e chorando, ocorreu-lhe um outro pensamento, e dizia consigo: “Mas se ela vier, o que fará? Como passará o Jordão para vir a mim pobre pecador, já que não há aqui nenhum barco? Ai! Infeliz que sou, quem me terá feito perder a felicidade que eu tinha tanto motivo para esperar?”.
Estando o ancião assim, a Santa chegou e ficou do outro lado do rio. Zózimo, ao vê-la, levantou-se e, transportado pela alegria, dava graças a Deus. Mas, como ele estava sempre em extrema inquietação de como ela poderia passar o Jordão, ele a viu fazer o Sinal da Cruz sobre o rio (pois a lua estava então cheia, e seus raios tornavam a noite extremamente clara) e, em seguida, caminhar sobre as águas, como se estivesse em terra firme, o que o espantou de tal maneira que quis ajoelhar-se, mas ela impediu-o gritando: “Que fazeis, meu pai? Não vos lembrais de que sois padre de Deus e que levais os Divinos Mistérios?”.
Ele obedeceu a estas palavras, e ela, após ter passado o rio, disse-lhe: “Meu pai, dai-me a vossa bênção.”
Ao que ele respondeu ainda sob a impressão extrema que lhe havia causado tamanho milagre: “Em verdade, Deus é bastante fiel quando promete tornar semelhante a Ele aqueles que se purificam com tanto zelo pelo Seu amor. Meu Deus e meu Mestre, sede glorificado para sempre por aquilo que me fizestes ver na pessoa de vossa serva: o quanto estou longe da verdadeira perfeição”.
Ela pediu-lhe em seguida que recitasse o Símbolo e começasse a Oração Dominical. Quando terminou, segundo o costume, a Santa deu ao ancião o beijo da paz e depois, recebendo o Santíssimo Sacramento, estendeu as mãos para o Céu e, misturando seus suspiros às suas lágrimas, proferiu em voz alta: “Senhor, permiti agora à vossa serva, segundo a vossa Divina Palavra, partir em paz, pois meus olhos viram o meu Salvador,” e voltando-se para o ancião disse-lhe: “Perdoai-me, meu pai, o mal que vos causei, e concedei-me ainda este outro pedido: voltai agora sob a condução de Deus para vosso mosteiro, e, quando o tempo estiver terminado, ide à torrente onde vos falei pela primeira vez; mas, em nome de Deus, não falteis, e ver-me-eis então da forma que Ele quiser”.
O ancião respondeu-lhe: “Aprouve a Deus que estivesse em meu poder seguir-vos e gozar da felicidade da vossa presença. Mas, suplico-vos, minha mãe, não recuseis um pequeno pedido que tenho para vos fazer: que queirais comer alguma coisa daquilo que vos trouxe”.
Então, ela tomou somente 3 grãos de lentilha, os colocou na boca dizendo que a graça do Espírito Santo era suficiente para conservar a alma na pureza, e acrescentou dirigindo-se ao ancião: “Rogo-vos, meu pai, em nome de Deus, orai por mim e não esqueçais nunca as minhas misérias”.
Zózimo beijando seus pés santos, conjurou-a a rezar pela Igreja, pelo Império e por ele. E, chorando e suspirando, deixou-a partir, pois não ousava retê-la mais, e mesmo que quisesse não teria conseguido.
Capítulo 11
A Santa fez ainda o Sinal da Cruz sobre o Jordão e, depois, caminhando sobre as águas, atravessou-o da mesma forma que havia feito ao vir, e Zózimo voltou cheio de alegria e espanto, e com pena, por não ter-lhe perguntado seu nome. Mas esperava consertar este erro no ano seguinte. E, quando este ano foi concluído e os costumes ordinários do mosteiro tendo sido observados, ele voltou ao deserto que está para além do Jordão, e caminhava com muita pressa pelo desejo de gozar da felicidade de rever aquela gloriosa Santa. Mas, avançando naquela imensa solidão, e olhando e procurando de todos os lados encontrar alguma marca que o conduzisse ao lugar onde desejava com tanto ardor chegar, como fazem os caçadores para encontrar os animais que querem caçar, enfim não vendo nenhum vestígio, encharcou de lágrimas o seu rosto e disse erguendo os olhos para o céu: “Muito humildemente eu vos suplico, meu Deus, ver este Anjo em corpo mortal ao qual o mundo inteiro não é digno de ser comparado.”
Tendo terminado esta oração, chegou à torrente; e, como todo o alto deste lugar estava iluminado pelos raios do sol, ele percebeu na terra o corpo morto da Santa, cujo rosto estava voltado para o Oriente e as mãos cruzadas. Correu logo para lá, lavou seus pés com suas lágrimas, sem ousar tocar nenhuma parte de seu corpo. Tendo em seguida cantado os Salmos e recitado as orações costumeiras em ocasiões semelhantes, disse consigo: “É possível que a Santa não se agradasse daquilo que faço”. Como estava nestes pensamentos, viu estas palavras escritas na terra: “Meu pai Zózimo, enterrai o corpo da miserável Maria, devolvei à terra o que é da terra, pó ao pó. Em nome de Deus, orai por mim, neste décimo dia de Abril, na véspera da Paixão de Jesus Cristo Nosso Salvador, e após ter sido tornada partícipe de Seu Santíssimo e Divino Corpo”.
Tendo lido estas palavras, o ancião pensava consigo quem poderia tê-las escrito, visto que a Santa havia-lhe dito que ela não sabia escrever, e tivera uma extrema alegria por desta maneira ter sabido o seu nome. Ele soube desta forma que, no instante em que ela recebera o Santo Sacramento à beira do Jordão, viera para aquele lugar e passara ao Céu; e que assim ela havia feito, em um momento, o mesmo caminho em que ela havia empregado 20 dias inteiros caminhando sem parar.
Este bom ancião, tendo prestado infinitas ações de graças a Deus e encharcado com seu pranto o corpo da Santa, pôs-se a dizer: “É tempo, Zózimo, de executar o que te foi ordenado. Mas infelizmente como farei, pois não tenho como cavar a terra, nem pá nem coisa alguma”. Enquanto falava ao acaso, viu um pequeno pedaço de madeira e tomou-o, e começou a tentar abrir a terra; mas era tão dura, e ele tão extremamente fraco por conta de seus jejuns e com o caminho tão longo, que lhe foi de todo impossível. Então, encharcado de suor do esforço que havia feito inutilmente, deu profundos suspiros e levantando os olhos percebeu junto ao corpo da Santa um enorme leão que lhe lambia os pés, o que o encheu primeiramente de um maravilhoso pavor e principalmente porque a Santa lhe havia dito não ter jamais visto nenhum animal selvagem naquele deserto. Mas assegurou-se, pelo Sinal da Cruz e pela Fé, que aquele santo corpo poderia protegê-lo de todo o perigo. E o Leão começou a fazer-lhe carícias como para saudá-lo. Então, Zózimo disse-lhe: “Rei dos animais, já que Deus enviou-te aqui, a fim de que o corpo de Sua serva não permaneça insepulto, cumpre o teu encargo, dando-me os meios de colocá-lo na terra; pois, além de minha velhice que me tira a força de cavar, não há nada aqui que seja apropriado, e eu não poderia depois fazer um tão longo caminho como o que já fiz; mas visto que recebeste ordens de Deus para isso, usa tuas unhas nesta obra”.
Obedecendo ao ancião, o leão cavou de súbito uma fossa suficiente, e Zózimo, depois de regar com suas lágrimas os pés da Santa, e com muitas orações, implorando sua assistência para todo o mundo e particularmente por ele, cobriu o corpo de terra, deixando-o como o havia encontrado; coberto somente uma parte, por aquele velho casaco rasgado que havia jogado para a Santa dois anos antes. Enquanto isso, o leão permaneceu firme, e, quando o oficio de piedade acabou, retiraram-se os dois ao mesmo tempo. Este soberbo animal e uma doce ovelha foram-se para o fundo do deserto, e Zózimo voltou bendizendo a Deus e cantando um Cântico de louvor a Jesus Cristo Nosso Salvador.
Quando voltou ao mosteiro, contou-lhes desde o começo o que lhe havia acontecido, sem nada esconder-lhes do que vira ou escutara, para que, aprendendo os efeitos milagrosos da Onipotência de Deus, fossem cheios de admiração e que assim celebrassem, com temor e com amor, o dia da bem aventurada passagem daquela gloriosa Santa, por cuja opinião o abade João percebeu que alguns de meus irmãos precisavam de correção e converteu-os pela assistência da misericórdia de Deus.
Quanto a Zózimo, depois de ter vivido até a idade de 100 anos naquele mosteiro, foi-se em paz gozar da Presença de Deus pela Graça de Jesus Cristo, ao qual, com Seu Pai e o adorável Espírito Santo vivificador das almas, a honra, o poder e a glória pertencem pelos séculos dos séculos. Amém.
São Sofrônio de Jerusalém
* * *
Fonte: Padres do Deserto: http://www.padresdodeserto.net
Tradução: Jandira Soares Pimentel
Fonte: http://patristicabrasil.blogspot.com.br/2009/12/sao-sofronio-de-jerusalem-sec-vi.html.
Visto também em:
Vide também: http://farfalline.blogspot.com.br/2013/04/dia-2-de-abril-santa-maria-egipciaca.html.
2 de abril
SANTA MARIA EGIPCÍACA
É algo louvável esconder o segredo dos Reis; mas há glória em publicar as obras de Deus(1), como diz o Anjo a Tobias, quando este recobra a visão de maneira miraculosa – tendo passado por tantos perigos goza então, dos efeitos do amor e da ajuda de Deus. É bastante perigoso descobrir os segredos dos príncipes e, contrariamente, causa muito prejuízo à alma calar-se sobre as ações ilustres que Deus faz em favor dos homens pelo excesso de Sua bondade e de Sua misericórdia. É, portanto, temerário encobrir com o silêncio as maravilhas divinas, por um justo julgamento. Seria cair na mesma condenação daquele servo inútil que, ao invés de aproveitar do talento recebido, escondeu-o na terra. Eu não sepultaria nas trevas uma história tão santa quanto esta que chegou ao meu conhecimento. E não é preciso sequer acrescentar fé ao que vou escrever, considerando-se o espanto que ações tão extraordinárias causarão. Deus me proteja de ser mentiroso em assuntos santos e de violar a verdade daquilo que concerne à Sua glória; não tomarei parte no perigo que correm aqueles que não compreendem senão as coisas baixas e, julgando indignamente a grandeza de um Deus que Se fez homem, não acrescentarão nada de fé a este discurso. E há pessoas que depois de o terem lido recusam-se a lhe dar o crédito e a admiração que merece uma história tão miraculosa. Suplico a Deus que tenha piedade delas e lhes abra o espírito, a fim que elas escutem Sua Santa palavra e que não se tornem culpadas pelo desprezo de tantos milagres que Ele decidiu fazer em toda a eternidade a favor de Seus Eleitos; assim, elas agem considerando a fraqueza da natureza humana, julgando impossível tudo o que lhes é contado sobre as ações extraordinárias dos Santos.
Eu vou, então, começar esta narrativa, onde escreverei, palavra por palavra, segundo aquilo que se sabe ter acontecido e que me foi reportado por um homem santo, alimentado pela ciência e pela prática das coisas divinas. E que ninguém se deixe tomar pela incredulidade, como se fosse impossível que tão grande milagre acontecesse hoje em dia, visto que a graça de Deus – que século a século circula na alma dos Santos – os torna Seus amigos e os faz Profetas; assim como Salomão nos ensina através do conhecimento que Ele lhe deu. Mas não se deve separar o relato deste grande e generoso combate de Maria do Egito do modo com que ela terminou seus dias na Terra.
(1) - Tobias 12,7
Capítulo 1 - Santa Maria do Egito recebendo os Divinos Mistérios das mãos do Padre Zózimo
Havia num mosteiro da Palestina um homem chamado Zózimo que, tendo sido desde a sua infância instruído com grande zelo nos exercícios da vida solitária e educado santamente, fazia brilhar em suas palavras e em suas ações uma verdadeira piedade. Entretanto, não imaginem que eu queira aqui falar daquele Zózimo acusado de ensinar erros no que concerne à Crença; os nomes são os mesmos. Este de quem falo, ficou primeiramente em um mosteiro da Palestina e, passando por todos os exercícios da vida solitária, tornou-se muito recomendado, pela pureza de seus hábitos e o seu fervor na penitência; pois observava inviolavelmente todas as instruções que lhe davam aqueles que desde a juventude haviam sido alimentados deste santo modo, de forma a mantê-lo capaz de suportar os combates que se lhes apresentavam na prática exata das regras, e, não bastando, acrescentou ainda muito de si, pelo desejo que trazia de sujeitar a carne ao espírito. Assim, jamais se percebeu uma pequena falta na menor das coisas, e ele realizava tão perfeitamente tudo o que se esperava de um solitário, que se via com frequência muitos outros, tanto das redondezas quanto das províncias distantes, virem até ele e, por suas instruções e seus exemplos, portarem-se com mais ardor do que antes nos outros santos exercícios da penitência.
Tendo tantas qualidades excelentes, meditava sem cessar sobre as Santas Escrituras, pois, quer estivesse deitado para um pequeno repouso, quer estivesse levantado, quer trabalhasse com as mãos ou comesse, seu espírito se ocupava sempre deste objetivo que se lhe tornara tão familiar, e nunca interrompia a obra de recitar os Salmos e de meditar sobre as Sagradas Escrituras. Assim, tornado-se digno de ter seu espírito esclarecido por Deus, aqueles que viviam com ele asseguravam que frequentemente era favorecido com visões; o que não é nem estranho nem incrível, pois nosso Senhor Jesus Cristo diz: “Bem-aventurados os puros de coração, pois verão a Deus”; com mais razão ainda àqueles que purificaram a sua carne, que sempre permaneceram em abstinência e cujo espírito jamais adormece no caminho da piedade; esses podem ter os olhos iluminados pelas luzes divinas, como marca da felicidade que os espera na outra vida, onde O verão em toda a Sua majestade e glória.
Zózimo dizia que estava naquele mosteiro praticamente desde ter deixado o seio materno, onde viveu até os 53 anos na observância das regras da vida solitária, e um dia, vendo-se tentado por alguns pensamentos que lhe faziam crer ser perfeito em todas as instruções de quem quer que fosse, dizia consigo: “Há algum Solitário no mundo que possa me ensinar algo de novo ou me mostrar algo que eu ainda não tenha realizado por minhas próprias ações nesta santa maneira de viver? Haverá alguém que me ultrapasse?”.
Como ele se entretinha com estes pensamentos e alguns outros parecidos, apresentou-se um homem diante dele que lhe disse: “Zózimo, é verdade que combateste generosamente e tanto quanto um homem poderia fazer. É verdade que correste bastante na carreira da vida solitária. Mas não há nenhum homem que possa se vangloriar de ser perfeito, sobretudo porque tu não sabes ainda que o presente combate é mais difícil de suportar do que os passados, e a fim de que conheças que há muitas outras vias para chegar à Salvação, sai de teu país, sai do meio dos teus próximos, sai da casa de teu pai, como o grande patriarca Abraão, e vai-te ao mosteiro que fica ao longo do Jordão”.
Seguindo aquilo que lhe havia sido recomendado, Zózimo saiu do mosteiro onde havia sido alimentado desde a sua infância e, tendo chegado à beira do Jordão – o mais santo de todos os rios –, foi conduzido pelo mesmo homem ao mosteiro onde Deus lhe ordenara ir. Tendo batido à porta e falado com o porteiro, este irmão foi dizer ao abade, que veio recebê-lo, reconhecendo por seu hábito e por sua continência tratar-se de um Solitário. Depois que Zózimo pôs-se de joelhos, conforme o costume dos Solitários, e que pediu a sua bênção, o abade lhe disse: “De onde vens, meu irmão? E que assunto te traz até os pobres Solitários?”. Zózimo respondeu: “Meu pai, não estimo ser necessário dizer-vos de onde venho, e penso que é suficiente que saibais que o que me traz é o desejo de encontrar aqui temas de edificação, pois soube coisas tão vantajosas deste mosteiro e tão dignas de elogio, que são capazes de levar os homens a unirem-se a Deus”. O abade retorquiu: “Meu irmão, que Deus, o único que pode curar as enfermidades da alma, queira por Sua graça instruir-te e a nós também com Seus mandamentos, e conduzir nossos passos para caminharmos nos santos caminhos; pois não há homem algum que seja capaz de fazer outros avançarem na virtude. É preciso que cada um vele cuidadosamente sobre si mesmo e, sem elevar alto demais seus pensamentos, faça o que lhe for mais vantajoso para chegar à perfeição; Deus cooperando com ele. Todavia, já que dizes que a caridade de Jesus Cristo te traz aqui para ver os pobres Solitários, podes permanecer conosco se é este o teu desejo; e o Bom Pastor, que deu a vida para nossa Salvação e que chama as suas ovelhas cada uma por seu nome, nos alimentará pela graça de Seu Espírito Santo”. Tendo o abade concluído suas palavras, Zózimo ajoelhou-se ainda e, após ter recebido a benção, respondeu: “Assim seja”, e ficou no mosteiro.
Capítulo 2
Ele viu, lá, anciãos de rostos veneráveis, admiráveis em suas ações, fervorosos em espírito, e que serviam a Deus sem qualquer interrupção. Não havia hora durante a noite em que não se cantasse os salmos, e durante o dia eles estavam sempre em suas bocas, enquanto trabalhavam incessantemente com as mãos. Não se sabia o que eram cuidados inúteis. Não tinham o menor pensamento sobre o bem nem sobre outras coisas temporais, e apenas conheciam-lhes os nomes; mas empregavam todo o ano considerando o NADA desta vida, que não é senão uma passagem cheia de dores e misérias, e meditando sobre coisas semelhantes. Uma coisa somente lhes parecia importante, e trabalhavam com todo o ardor para adquiri-la: estarem mortos para o século, ao qual haviam renunciado quando deixaram o mundo, e para todas as coisas que dependiam dele. Vivendo assim, como se não vivessem mais, alimentavam o espírito com uma carne que não lhes faltava nunca: a Palavra de Deus; e os seus corpos com pão e água somente, a fim de terem mais motivo para esperar a misericórdia de seu Mestre. Como contou depois, Zózimo foi bastante edificado por esta maneira de viver, e excitava-se com os exemplos para avançar na perfeição, encontrando pessoas que trabalhavam tão poderosamente com ele para adquiri-la e mostravam com tanta alegria um novo Paraíso na Terra.
Poucos dias depois, chegou o tempo recomendado aos Cristãos, pela Tradição da igreja, para celebrarem o santo jejum da Quaresma, e para purificarem as almas a fim de se tornarem dignos de verem os dias da Morte e da Ressurreição de nosso Salvador. Ora, estes Solitários faziam todas as suas funções sem serem jamais perturbados, pois não se abria nunca a porta principal da casa, devido ser este um lugar de solidão, que não somente não era frequentado, como também não era conhecido pela maior parte dos vizinhos; e esta regra era observada desde o estabelecimento do mosteiro, o que me faz crer que foi por esta razão que Deus enviou Zózimo para lá.
Quero reportar, aqui, a ordem que observavam estes Solitários. No primeiro domingo de Quaresma, celebravam-se os Divinos Mistérios segundo o costume, e cada um recebia o Corpo e Sangue preciosos de Nosso Senhor Jesus Cristo, que dá a vida aos homens. Em seguida, depois de terem comido um, pouco como de hábito, eles se reuniam no Oratório, onde, tendo feito a oração de joelhos, davam-se uns aos outros o santo beijo e, ajoelhando-se, beijavam seu abade e pediam-lhe a bênção, a fim de serem assistidos por suas orações no combate que iriam empreender. Abriam-se, em seguida, todas as portas do mosteiro e, cantando todos a uma só voz o Salmo: “O Senhor é a minha luz e a minha salvação, a quem temerei? O Senhor é a minha proteção, quem será capaz de me assustar?”, eles saíam, deixando um ou dois irmãos no mosteiro; não para guardarem o que lá ficava, pois não tinham nada que fosse bom para os ladrões, mas para não deixarem que o Oratório ficasse sem alguém que cantasse os louvores a Deus. Cada um levava consigo o que precisava para viver conforme suas necessidades; uns levavam figos, outros damascos, outros legumes molhados com água, e haviam os que não levavam nada, senão seus corpos e seus hábitos, comendo apenas ervas que crescem no deserto, quando pressionados pela fome. Cada um era regra para si próprio, e era uma lei inviolavelmente observada entre eles não revelarem em que abstinência haviam vivido durante aquele tempo. Para isso, passavam o Jordão e afastavam-se bastante uns dos outros; tinham a solidão por companhia. E, se viam ao longe vir em sua direção um irmão, desviavam-se de seu caminho e iam para outro lado, vivendo somente para Deus e sozinhos, cantando frequentemente os Salmos e não comendo senão em determinados momentos. Após haverem jejuado, voltavam ao mosteiro antes do dia da Gloriosa Ressurreição de Jesus Cristo nosso Salvador, que é a vida de nossas almas, e, no domingo em que a Santa Igreja celebra com Ramos, eles estavam todos de volta. Cada um trazia de volta consigo o testemunho de sua própria consciência, sobre como havia trabalhado durante o retiro, e as sementes que havia lançado em sua alma, de maneira a torná-la forte e generosa para empreender novos trabalhos para o serviço de Deus; e não se perguntavam jamais uns aos outros, como já vos disse, como tinham vivido durante esse tempo de separação e de solidão.
Eis a regra daquela casa, observada perfeitamente, e a maneira pela qual cada um daqueles Solitários unia-se a Deus no deserto e combatia contra si mesmo, de maneira a tornar-se agradável a Deus somente, e não aos homens, sabendo que todas as coisas feitas por amor aos homens e com o desejo de agradá-los, mais prejudicam do que servem àqueles que as executam.
Capítulo 3
Segundo o costume deste mosteiro, Zózimo passa o Jordão, levando somente seu hábito e alguma coisa para viver. Assim, ele observava a regra e, atravessando aquela solidão, não comia senão quando a necessidade a isso o obrigava. Deitava-se na terra, onde o surpreendesse a noite, para repousar e dormir um pouco; e tão logo as primeiras luzes do dia apareciam, apressava-se a caminhar tendo continuamente no espírito, como contou mais tarde, o desejo de entrar mais adiante neste Deserto, com a esperança de aí encontrar algum bom pai de quem pudesse aprender alguma coisa; e, sem cessar avançava ao acaso, como se estivesse em direção a alguém que lhe fosse conhecido. Depois de ter caminhado durante vinte dias, tendo chegada a hora das Sextas, parou um pouco, e voltando-se para o Oriente fez sua prece normal, pois havia se acostumado a parar em certas horas do dia e a cantar os Salmos de pé e a fazer ajoelhado as orações.
Quando, então, cantava os Salmos, e com olhar fixo mantinha os olhos elevados para o Céu, viu em sua mão direita algo como a sombra de um corpo humano, o que o encheu primeiramente de espanto e medo, por crer tratar-se de uma ilusão do diabo; mas, tendo-se armado com o Sinal da Cruz e tendo perdido toda a apreensão e chegado ao fim das orações, viu, ao voltar os olhos, alguém que de fato andava na direção do Ocidente. Ora, aquilo que via era uma mulher, cujo corpo o ardor do sol havia tornado extremamente negro e cujos cabelos eram brancos como a lã, mas tão curtos que iam somente até o pescoço.
Vendo isto que acabo de relatar, e regozijando-se na esperança de receber o consolo que esperava, Zózimo correu com todas as suas forças ao lugar onde aquilo que lhe aparecia apressava-se em ir, pois sua alegria era muito grande, porque, durante todo o tempo que havia caminhado no deserto, não havia visto nenhuma forma nem de homem, nem de bestas selvagens, nem de pássaros, nem de quaisquer animais, o que aumentava seu desejo de saber o que é que lhe aparecia; esperando tirar grande lucro disso. Ela, porém, vendo Zózimo segui-la, fugiu em direção ao fundo do deserto. Esquecendo a fraqueza de sua idade e não considerando o trabalho que lhe daria o caminho, ele correu em grande velocidade, pelo desejo que tinha de ver mais perto aquilo que fugia dele; e assim, correndo mais veloz que ela, aproximava-se cada vez mais.
Quando ele estava a uma distância que ela poderia ouvir a sua voz, ele gritou-lhe chorando: “Serva de Deus, porque fugis deste pecador e pobre velho? Quem quer que sejais, conjuro-vos por Deus, pelo amor de quem passais vossa vida nesta horrível solidão, a suportar-me; conjuro-vos pela esperança que tendes de ser um dia recompensada de tantos trabalhos. Parai e não recuseis a nossa bênção e nossas orações, àquele que vô-las pede em nome de Deus que jamais rejeitou ninguém”. Zózimo, misturando assim suas conjurações às suas lágrimas, chegaram ambos correndo a certo lugar onde as águas de uma torrente haviam cruzado, e, então, aquilo que fugia, desceu e subiu em seguida de outro lado. Zózimo continuava gritando e não podendo passar além, permaneceu aquém da torrente que estava seca, e redobrou de tal maneira seus lamentos e suspiros que se podia escutá-los ainda muito longe.
Capítulo 4
Então, aquela pessoa que fugia disse-lhe: “Abade Zózimo, peço-vos em nome de Deus perdoar-me por não me voltar para falar convosco, pois sou uma mulher, e como podeis ver estou nua; mas, se desejais assistir com vossas orações uma pobre pecadora, lançai-me vossa capa para que eu me cubra e possa assim voltar-me para vós e receber a vossa bênção”. Zózimo ficou tomado de um maravilhoso espanto misturado com temor, e sentindo-se transportado para fora de si mesmo ao ouvir estas palavras, pois, sendo um homem excelente e que a graça de Deus havia dotado de muita prudência, julgou que aquela mulher, não o tendo jamais visto ou ouvido falar dele, não o tivesse chamado por seu nome sem uma graça particular de Deus. Executou prontamente o que ela havia ordenado, e, após haver desabotoado sua capa, lançou-a, virando-se de costas. Tendo-a recebido, ela cobriu-se a maior parte do corpo e, assim envolvida, voltou-se para Zózimo e lhe disse: “Meu pai, que desígnio trouxe-vos a ver uma pecadora, e o que desejais saber e aprender de mim, para não temer tanto trabalho, quanto tivestes que sofrer para vir até aqui?”.
Prostrando-se por terra Zózimo, pediu-lhe a bênção, como é costume fazer, e ela, prostrando-se por sua vez, pediu-lhe a sua também.
Permaneceram muito tempo assim, e, por fim, ela lhe disse: “Meu pai, cabe a vós dar-me a benção e fazer a oração, visto que sois honrado pelo Presbiterado, e que, há tantos anos servindo ao Santo Altar, penetrais, pela graça e pela luz que Deus vos dá, nos segredos e mistérios de Jesus Cristo”.
Estas palavras aumentaram o temor e a emoção de Zózimo, e via-se tremer esse santo ancião e correr o suor em grandes gotas pelo seu rosto. Assim, não tendo mais forças e como se estivesse prestes a dar o último suspiro, ele lhe disse: “Ó mãe espiritual, te conheço o bastante pelo pouco que vi, pois estais toda com Deus e que quase não vives mais na terra; e posso crer que Ele vos concedeu dons muito extraordinários; pois, sem terdes jamais me visto, chamastes-me pelo meu nome; mas visto que na dignidade das funções onde se é chamado não acontece que tenhamos uma graça igual ao cargo que temos de exercer, e que esta graça se conhece principalmente pelos efeitos maravilhosos que produz nas almas, abençoai-me pelo amor de Deus e assisti-me com vossas orações, a fim de tornar-me um digno de imitar a vossa virtude”.
Então, compadecendo-se da teimosia do santo ancião, ela diz: “Bendito seja o Senhor que opera a salvação das almas”. Ao que Zózimo respondeu: “Assim seja”, e levantaram-se os dois e ela disse-lhe: “Quem, então, vos trouxe até uma pecadora como eu? De todo o modo, já que o Espírito Santo vos conduziu até aqui por Sua graça, a fim de prestar-me alguma assistência à minha fraqueza, dizei-me, suplico-vos, de que maneira se conduzem os Cristãos hoje; de que maneira agem os imperadores; e de que maneira o rebanho de Jesus Cristo é agora governado na Santa Igreja?”. Zózimo respondeu: “Minha mãe, Deus concedeu às vossas santas orações uma paz concedida aos fiéis. E não recuseis, suplico-vos em Seu nome, a um bastante indigno Solitário, o consolo que vos peço, pelo amor de Jesus Cristo, por todo mundo, e particularmente para este pobre pecador, a fim de que não tenha feito inutilmente um tão longo e laborioso caminho através desta vasta solidão”. Ela respondeu-lhe: “Meu pai, já vos disse que cabe a vós, honrado com o Sacerdócio, rezar por todo mundo e por mim também, visto ser uma das funções às quais a vossa vocação vos obriga. Visto que a obediência é uma das coisas que nos são mais recomendadas, farei de bom grado aquilo que me ordenares”.
Concluindo estas palavras, ela se voltou para o Oriente e, elevando os olhos ao céu e estendendo as mãos, começou a rezar, mexendo somente os lábios e sem que se pudesse ouvir sequer uma de suas palavras. Como mais tarde relatou, Zózimo ficou bastante espantado e, sem dizer nada, baixou o olhar contra a terra; depois, vendo que ela continuava longamente em oração, levantou os olhos e viu que ela elevava-se um côvado da terra e que rezava assim, suspensa no ar; aquilo que tinha Deus por testemunho era muito verdadeiro. Então, se sentiu repleto de uma tão extrema apreensão; empapado de suor, jogou-se no chão, sem ousar partir, e dizia somente consigo: “Senhor, tem piedade de mim”.
Capítulo 5
Como ele estava neste estado, veio-lhe uma tentação de que talvez fosse algum espírito maligno fingindo rezar. Então, a mulher, voltando-se para ele e reanimando-o, disse-lhe: “Porque, meu pai, vossos pensamentos vos levam a escandalizar-vos a propósito de mim, fazendo-vos crer que não sou senão um espírito e que minha oração não é senão fingimento? Não duvideis de que sou uma mulher e uma pobre pecadora; mas, tal como sou, recebi o Batismo, e bem distante de ser um espírito não sou senão pó e cinza, senão carne, e não tenho ao menos espírito para conceber as coisas espirituais”. Concluindo estas palavras, ela fez o Sinal da Cruz sobre a sua fronte, sobre os seus olhos, sobre os seus lábios e sobre o seu estômago, e acrescentou: “Meu pai, Deus nos livra se quiser do demônio, e de tudo o que vem dele; que de nós tem sem dúvida, muita inveja”.
A estas palavras, o ancião prostrou-se a seus pés e disse-lhe chorando: “Conjuro-vos, por Nosso Senhor Jesus Cristo, nosso verdadeiro Mestre, que por nossa salvação dignou-se nascer de uma Virgem e, pelo amor de quem estais revestida desta nudez e fizeste sacrifício de vosso corpo para Lhe serdes agradável, não escondais nada, suplico-vos, ao vosso servo, mas dizei-me quem sois, de onde vinde, quando e por que razão viestes para esta solidão, e, de maneira geral, sobre todas as coisas que vos dizem respeito; a fim de que eu conheça assim a grandeza das obras de Deus, pois que benefício pode trazer um tesouro escondido e uma ciência não declarada, assim como diziam as Escrituras? Dizei-me, então, sem escrúpulos, todas as coisas pelo amor de Deus, pois não será por vaidade, mas para satisfazer este pobre pecador, ainda que ele seja indigno disso. E tomo como testemunha o mesmo Deus para quem vives somente e com quem conversais continuamente, e não creio ter sido trazido para esta solidão senão pelo desejo Dele de tornar manifesto tudo o que se passou convosco, visto que não está em nosso poder resistir às Suas vontades, e que se nosso Senhor Jesus Cristo não tivesse desejado fazer-vos conhecer e fazer saber os combates que empreendestes em Seu serviço, Ele não teria jamais permitindo que alguém vos tivesse visto, e, na fraqueza em que me encontrava que mal me permitia sair de minha cela, Ele não me teria dado forças para fazer com tanta diligência um tão longo caminho”.
Falando assim, e acrescentando várias coisas semelhantes, aquela mulher disse-lhe: “Perdoai-me, meu pai, se morro de vergonha de vos deixar ouvir qual foi a infâmia de minhas ações. Entretanto, como vistes que eu estava nua, descobri-las-ei também completamente, para que conheçais a força com que as minhas impurezas encheram a minha alma de confusão e vergonha. E estou longe, como dissestes, de querer contar, por algum sentimento de vaidade, as coisas que me concernem; pois de que me poderia glorificar tendo sido um vaso de eleição não de Deus, mas do diabo? E estou certa de que assim que começar a vos fazer ouvir toda a história de minha vida, vós fugireis de mim como de diante da serpente, e vossos ouvidos não quererão escutar os inúmeros crimes que cometi. Contudo, contá-los-ei com verdade e sem nada disfarçar, após vos ter suplicado não interromper nunca as orações por mim, a fim de que me torne digna da misericórdia de Deus e que eu a receba no dia do julgamento”. O ancião, com estas palavras, derramou muitas lágrimas e ela começou, então, a sua narrativa.
Capítulo 6
Meu pai, meu país é o Egito. Estando meu pai e minha mãe ainda vivos, parti com 12 anos contra a vontade deles para Alexandria, onde não consigo pensar, sem enrubescer, que perdi primeiramente a honra, e me deixei levar pelo desejo contínuo e insaciável da volúpia infame e criminosa. Precisaria de muito tempo para dizer tudo em pormenores, mas dir-vos-ei tudo o mais breve que puder, e tanto quanto seja necessário, para vos fazer saber como era o ardor excessivo que me consumia no pecado. Permaneci publicamente durante mais de dezessete anos neste abrasamento funesto, e não foi absolutamente por causa de presentes que deixei de ser virgem, pois recusava tudo o que me ofereciam; o furor que me agitava e que me levava a um tamanho excesso fazia-me julgar que haveria muito mais urgência quando eu não desejava absolutamente outra recompensa pelo pecado senão o próprio pecado. Mas, não vos espanteis por eu me preocupar tão pouco com o dinheiro, visto que eu queria viver de esmola ou daquilo que roubava, tanto que, como já vos disse, eu não tinha outra paixão senão mergulhar continuamente na lama das minhas impudências. Esta era a única coisa que me agradava, e acreditava que era verdadeiramente viver o abusar assim incessantemente do corpo que Deus me dera.
Como vivia ao acaso, vi um certo dia de verão um grande número de egípcios e líbios que corriam na direção do mar. Tendo perguntado ao primeiro que encontrei: “Para onde correm eles com tanta pressa!”, ele respondeu-me: “Vão para Jerusalém, para a Exaltação da Santa Cruz, que, como de costume, deve ser celebrada dentro de alguns dias”. “Crês”, perguntei-lhe, “que eles me aceitariam se eu quisesse ir com eles?”. “Isto é simples”, respondeu-me, “se tivesses os meios de pagar a passagem”. “Com certeza”, repliquei, “não tenho com que pagar a passagem, nem como pagar as minhas despesas, mas não deixarei de ir, subirei no navio que eles alugaram e, se se recusarem a me receber, dar-me-ei eu mesma como dinheiro, e, tendo desta forma meu corpo em seu poder, me receberão como pagamento. Ora, o que me fazia desejar ir com eles – perdoai-me meu pai o que ouso dizer – era ter muitos cúmplices para o meu furor.
Disse-vos bastante meu pai; sofrei, suplico-vos, e ficarei por aqui. Não me obrigueis a continuar a relatar aquilo que me cobre de tão estranha confusão. Pois Deus sabe que eu não poderia falar disso sem tremer, e parece-me que todas as minhas palavras são como manchas, que sujam a pureza do ar onde ecoam”. Zózimo respondeu-lhe, regando com suas lágrimas a terra: “Em nome de Deus, minha mãe, continuai e não omitais nada de uma tão difícil narrativa”. Ela continuou então:
“Aquele jovem foi-se indo com a resposta que eu lhe havia dado, e eu, jogando fora o fuso que trazia na mão e do qual de tempos em tempos servia-me para viver, corri na direção do mar como os outros, e vi em pé, na margem, nove ou dez jovens cujos rostos e porte agradaram demasiadamente à minha paixão desregrada. Havia outros também que já tinham subido ao barco, e jogando-me no meio deles despudoradamente como de costume, disse-lhes: ‘recebei-me convosco nesta viagem, e não serei cruel demais convosco’. Ao que, acrescentando outras palavras mais livres e piores que estas, fi-los rir a todos. Aquelas pessoas, percebendo o meu descaramento, pegaram-me e levaram-me num pequeno barco, e então começamos nossa navegação”.
“Ó servo de Deus, como poderia eu contar-vos o que aconteceu em seguida? Que língua pode proferir e que ouvidos escutar aquilo que se passou naquele pequeno barco durante o caminho, e de que maneira eu incitava ao pecado aqueles miseráveis que não queriam cometê-lo? Não há palavras que possam representar a imagem detestável dos crimes em que eu me mostrava tão sábia, e que fiz com que aqueles pobres miseráveis cometessem. Contentai-vos, portanto, meu pai, com que vos diga que não me espantaria que o mar pudesse sofrer pelas minhas iniquidades e que a terra se abrisse para me fazer descer viva ao Inferno, eu que fazia caírem tantas almas nas redes da morte. Mas Deus, que não deseja a perda de ninguém e que quer que todos sejam salvos, pedia com certeza que eu fizesse penitência; pois Ele não quer a morte do pecador, mas espera a sua conversão com paciência impar”.
“Fomos, assim, para Jerusalém, e empreguei todos os dias que aí permaneci antes da festa em ações tão detestáveis quanto as anteriores, e ainda piores, pois, não me contentando com o mal que fazia no mar com aqueles jovens, fiz ainda perderem-se muitos outros, tanto da cidade quanto os de fora, aos quais eu solicitava tomarem parte de minhas impudências”.
Capítulo 7
“Quando chegou a festa gloriosa da Exaltação da Cruz de Nosso Senhor, eu prosseguia como antes no desejo de perder as almas dos jovens e, tão logo o dia começou a despontar, vendo que todos corriam para a igreja, corri também como os outros, e fui com eles à praça que ficava diante do Templo. Na hora da cerimônia, esforçava-me para avançar. Enfim, com extrema dificuldade, cheguei à porta da igreja, mas quando quis entrar como faziam todos os outros sem nenhuma dificuldade, era impedida por um poder divino que me repelia para fora, e assim, miserável que estava, encontrei-me sozinha naquela praça diante da igreja. Imaginando que isso provinha de minha fraqueza, lancei-me de novo entre aqueles que acabavam de chegar, e, esforçando-me com todo o meu poder para entrar com eles, trabalhava sempre inutilmente”.
“Tão logo eu tocava a soleira da porta, pela qual todos os outros entravam sem dificuldade, eu era a única rejeitada; e, como se houvesse uma multidão de soldados que tivessem ordem de fechar-me a entrada da igreja, eu sentia de repente um poder escondido que fazia o mesmo efeito, e de novo encontrava-me na praça como antes”.
“Tendo acontecido assim três ou quatro vezes, e vendo que todos os meus esforços eram inúteis, desesperava-me para poder entrar, e não tendo mais quase força para sustentar-me, tanto que meu corpo havia sido imprensado, retirei-me para um canto daquela praça, onde comecei enfim a considerar qual poderia ser a causa que me impedia de ver aquele Santo Madeiro sobre o qual um Deus morreu para dar a vida aos homens. E, um pensamento salutar tendo-me sacudido o espírito e aberto os olhos de minha alma, julguei que a abominação de minha vida era o que me fechava a entrada do Templo. Então, inundada de lágrimas e bastante perturbada, dei socos no estômago, dei grandes suspiros do mais profundo do coração, e, misturando meus gritos com soluços, percebi acima de mim uma imagem da Santa Mãe de Deus”.
“Dirigindo-me logo a Ela, e olhando-a fixamente eu disse-lhe: ‘Santa Virgem, que concebeste segundo a carne um Deus todo poderoso, sei que não parece que, estando eu imunda como estou por causa de tantos crimes, eu ousaria adorar a Vossa imagem e lançar os olhos sobre Vós, que sois uma Virgem muito pura e cuja alma assim como o corpo estão isentos de toda mancha; mas que, ao contrário, é bastante justo que Vossa incomparável pureza tenha horror de uma pessoa tão abominável quanto eu. Entretanto, já que aprendi que este Deus a quem foste digna de carregar em Vosso seio, fez-Se homem para chamar os pecadores à penitência, suplico-Vos que me assistais no abandono de socorro em que estou. Recebei a confissão que Vos faço de meus enormes pecados, e permiti-me entrar na igreja, afim de que não seja tão infeliz, por ser privada da visão do Madeiro precioso onde Deus-homem, que concebeste permanecendo virgem, foi pregado e derramou Seu Sangue pela minha salvação. Ordenai, Rainha do Céu, ainda que eu seja indigna, que a porta me seja aberta para adorar a Divina Cruz, e dou-vos por caução o mesmo Jesus Cristo que deste ao mundo. Que não me aconteça jamais no futuro cair nas detestáveis impurezas com a qual sujei meu corpo; corpo este que deveria ter cuidado para conservá-lo casto. E, tão logo tenha visto o Santo Madeiro onde Vosso Filho quis sofrer por nós, renunciarei ao mundo e a todas as coisas que vem dele, e partirei na mesma hora para ir ao lugar que Vos aprouver levar-me, ó Virgem Santa, como minha caução e meu guia’.”
“Tendo concluído estas palavras, e o ardor da fé que já começava a sentir no coração dando-me algum consolo, e fazendo-me ter confiança na bondade tão terna e tão caridosa da Mãe de Deus, parti do lugar onde havia feito a minha oração e, misturando-me àqueles que iam à igreja, não encontrei mais nada que me repelisse nem que impedisse a minha entrada. Então, fui tomada por um tremor, como transportada fora de mim; todas as coisas espantavam-me, e os obstáculos que antes encontrei haviam cessados, e aquele poder secreto que me repelia parecia agora facilitar-me a entrada; cheguei sem nenhuma dificuldade até o coração da igreja, onde recebi a graça de adorar o precioso Madeiro da Cruz gloriosa, que dá a vida aos homens”.
“Conhecendo, assim, o incompreensível excesso da misericórdia de Deus, e como Ele está sempre pronto para receber os pecadores na penitência, joguei-me na terra e, após haver beijado o santo chão da igreja, sai e corri para Aquela que havia me respondido. Tendo chegado ao lugar onde minha promessa estava escrita, ajoelhei-me diante da imagem da Santa Virgem e dirigi-Lhe a minha oração desta maneira: ‘Muito misericordiosa Mãe de Deus, fizestes-me ver os efeitos da Vossa incomparável bondade, visto que não rejeitastes minha humilde súplica, ainda que indigna de ser ouvida. Vi a glória que os maus são justamente privados de ver, a glória de Deus todo poderoso, que por vossa intercessão recebe a penitência dos pecadores. Mas, miserável que sou, que necessidade há de lembrar-me e de falar mais sobre meus crimes? É tempo, Virgem Sagrada, de realizar com Vossa assistência aquilo que Vos prometi. Envia-me, então, onde Vos aprouver, sede meu guia no caminho da minha salvação; instrui-me na verdade e mostrai-me a via que conduz à penitência’. Falando assim, ouvi uma voz como de alguém que me chamava de muito longe: ‘Se passares o Jordão, encontrarás um feliz repouso’. Escutando estas palavras e acreditando que eram ditas para mim, gritei chorando e olhando a imagem da Virgem: ‘Rainha do Universo, por quem a Salvação chegou aos homens, não me abandoneis, suplico-vos’. Depois destas palavras saí daquele lugar e fui-me com grande pressa. Alguém que me viu, deu-me três peças de dinheiro e disse-me: ‘Recebei isto’. Tomando-as, comprei três pães para a viagem que ia empreender com a graça de Deus, e tendo pedido ao padeiro o caminho do Jordão, soube por ele por qual porta da cidade deveria sair, e fui-me, então, correndo e chorando.
Empreguei, assim, o resto do dia fazendo sem cessar reflexões sobre mim mesma. Ora, era por volta da terceira hora do dia quando tive a felicidade de ver a Santa e Preciosa Cruz de Nosso Salvador; e, o sol estando prestes a se pôr, percebi a Igreja de São João Batista que se assentava ao longo do Jordão. Fui logo para o rio e lavei as mãos e o rosto com aquela água santa, e voltei para a sua igreja onde recebi o precioso Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, que dá a vida às almas. Depois, tendo comido a metade de um dos meus pães e bebido a água do rio, descansei a noite na terra.
Capítulo 8
Tendo chegado a alvorada, passei para o outro lado do Jordão, e lá pedia ainda à Santa Virgem, como meu guia, que me conduzisse ao lugar que Lhe agradasse; e cheguei, assim, nesta solidão onde desde aquele tempo até hoje afasto-me cada vez mais, o quanto posso, evitando o encontro com quem quer que seja, e esperando a vinda do meu Deus, que salva os pequenos e os grandes que a Ele se convertem”.
Então Zózimo lhe disse: “Minha mãe, há quantos anos estais nesta solidão?”.
Ela respondeu: “Segundo os cálculos que fiz, há 47 anos saí da Cidade Santa”.
“E o que encontrastes desde então, e o que podeis encontrar ainda todos os dias”, retorquiu Zózimo, “com que vos possais alimentar?”.
Ela replicou: “Quando cruzei o Jordão, tinha ainda dois pães e meio, que logo ressecaram e ficaram duros como pedras, e durante alguns anos comia um pouco de cada vez”.
Zózimo lhe disse: “Pudestes passar assim tanto tempo sem sofrer muitas penas e sentir muitas perturbações em vosso espírito, por tão grande mudança?”.
“Fazeis uma pergunta”, disse ela, “à qual não saberia responder sem tremer pela lembrança de tantos perigos,que pela minha maldade fizeram agitar demais a minha alma; pois temo que, relatando-os, eles me inquietem ainda”.
“Dize-me, eu vos suplico, minha mãe”, respondeu-lhe Zózimo, “sem esquecer coisa alguma, pois, tendo Deus querido que vós me conhecêsseis, não deveis esconder-me nada”.
Então, ela retomou a palavra: “É verdade, meu pai, que passei dezessete anos combatendo sempre contra desejos violentos, importunos e despropositados, quando começava a comer; pois desejava carne, lamentava os peixes do Egito e desejava muito vinho, do qual gostava tanto e que no mundo bebia em excesso, ao ponto de perder a razão; no lugar onde me encontrava, então, sem haver uma gota d’água somente, o que acendia em minhas veias uma sede tão ardente que me reduzia à extremidade. Também morria de vontade de cantar aquelas canções dissolutas, que são canções do diabo, que havia aprendido pela vida e que voltando à memória enchiam meu espírito de perturbação; mas, de repente, começando a chorar e batendo-me no estômago, representava-me a promessa tão solene que havia feito ao vir para esta solidão e, em espírito, punha-me diante da imagem da Santa Mãe de Deus que me tinha sob Sua proteção, suplicava-Lhe em lágrimas que afastasse de mim estes pensamentos que tanto afligiam a minha alma. Muito cheia de dor, depois de ter chorado extremamente e mortificado-me com golpes, via depois uma luz, e meu espírito voltava à calma”.
“Perdoai-me, meu pai, se não vos posso contar em detalhes todos os pensamentos que me agitavam ainda por me levarem no desejo do pecado. Sentia-me queimar com um ardor infeliz que me arrastava, como à força, no desejo de cometê-lo; mas, quando estas tentações me perseguiam, prostrava-me contra a terra, regava-a com minhas lágrimas e, acreditando ver verdadeiramente diante de meus olhos, Aquela que havia respondido por mim, parecia-me que Ela me reprovava com ameaças o excesso de fúria que me agitava e que, cheia de cólera, me fazia ver quais seriam os castigos assustadores pela minha horrível infidelidade; e não me levantava nunca, senão depois que aquela luz tão doce e tão favorável me houvesse iluminado como antes e banido estas perturbações de meu espírito. Era assim que eu elevava incessantemente o meu coração para aquela Santa Virgem, que carregava em Seu seio o Autor da castidade, e que eu havia tomado como minha caução para com Deus, suplicando a Ela que me assistisse naquela solidão e em minha penitência; ao que Ela jamais faltou”.
“Eis aí meu pai, como passei estes dezessete anos em um combate perpétuo, contra tantas tentações e perigos. E, desde então, esta feliz Mãe de Deus, que é todo o meu recurso e todo o meu auxílio, nunca me abandonou, e serviu-me de guia em geral em todas as coisas”.
Então, Zózimo disse-lhe: “De que vos alimentastes e vestistes?”.
Ela respondeu: “Aqueles pães, como vos disse, duraram dezessete anos; e, depois disto, vivi das ervas que encontrei no deserto. Quanto às roupas, as que tinha quando cruzei o Jordão, tendo-se estragado completamente, sofri muitas penas; o ardor excessivo do verão queimando-me, e os frios insuportáveis do inverno reduzindo-me a um tal estado que, traspassada e tremendo, caía frequentemente no chão e permanecia como morta sem poder me mexer, combatendo assim contra tantas necessidades e tentações diversas. Mas, no meio destas penas, o poder de Deus, de mil diferentes maneiras, conservou até hoje o meu corpo e a minha alma; e, repassando em meu espírito de que males o Senhor me livrou, alimento-me de uma carne que não me falta jamais, e estou saciada pela esperança que tenho de minha salvação. A palavra de Deus que contém todas as coisas, serve-me também de alimento e de abrigo. Pois o homem não vive do pão somente. E, quando àqueles que são despojados dos afetos do pecado faltam vestes, encontram rochedos que os cubram”.
Capítulo 9
Zózimo, vendo que ela citava passagens das Santas Escrituras, tiradas dos livros de Moisés, de Jó, e dos Salmos, disse-lhe: “Minha mãe, aprendestes os Salmos e lestes outros livros das Sagradas Escrituras?”.
Ela respondeu sorrindo: “Asseguro-vos que, desde que passei o Jordão para vir a este deserto, não vi outro homem do mundo senão a vós, nem encontrei nenhuma besta selvagem, nem nenhum outro animal. Também não aprendi, nem nunca escutei alguém que cantasse os Salmos ou os lesse; mas a palavra de Deus que é viva e eficaz, penetrando fundo no espírito humano, o instrui e ensina-lhe de maneira bastante particular. Agora, tendo acabado de prestar-vos conta daquilo que me concerne, conjuro-vos pela Encarnação do Verbo Eterno que orei por mim, pois sabeis que tenho cometido muitos crimes”.
A estas palavras, o ancião pôs-se de joelhos e prostrou-se contra a terra dizendo em voz alta: “Bendito seja o Senhor que, sozinho, faz maravilhas inumeráveis, tão grandes, tão admiráveis e tão gloriosas que enchem o espírito de espanto. Bendito sede vós, meu Deus, que me fizestes ver hoje quais são os favores com os quais cumularás aqueles que Vos temem. Ó Senhor, é bem verdade que não abandonais nunca as pessoas que vos procuram”.
A Santa, tomando-o pela mão, não lhe permitiu continuar por mais tempo contra a terra e disse, levantando-o: “Conjuro-vos, por Jesus Cristo nosso Salvador, não contar a quem quer que seja as coisas que vos disse, até que Deus me tenha libertado da prisão de meu corpo; conservai sob o selo do segredo e, com a graça de Deus, rever-me-eis ainda no ano que vem, na mesma época em que estamos. Peço-vos, também, em Seu Nome, para faltar com aquilo que vos pedi que, na próxima Quaresma, não passeis o Jordão segundo o costume do mosteiro onde estais”.
Zózimo, assombrado de ver que ela sabia deste costume e que ela falava disso como uma pessoa informada a este respeito, clamava sem cessar: “Glória seja dada a Deus, que concede àqueles que o amam muito mais do que eles Lhe pediram”.
Ela continuou assim: “Meu pai, não saiais, suplico-vos, durante este tempo do mosteiro, de onde, quando quiserdes, não estará em vosso poder sair e, na noite da Santíssima Ceia de Nosso Senhor, trazei-me num vaso sagrado e digno de tão grande mistério o Divino Corpo e Sangue vivificante de Nosso Salvador e esperai-me do lado do Jordão que encontra os países habitados pelas gentes do mundo, a fim de que, quando eu chegar, receba estes ricos presentes que dão a vida aos fiéis. Pois, desde que comunguei na igreja do bem-aventurado Precursor, antes de passar o Jordão, nunca mais recebi este Santíssimo alimento; o que me faz conjurar-vos com tanta insistência a que não recuseis meu pedido, mas trazei-me, peço-vos, o Divino Sacramento, que é a vida de nossas almas, à mesma hora que Nosso Senhor, criando-Os com Seus discípulos, tornou-os partícipes. Dizei a João, abade do mosteiro onde permaneceis, que vele por si mesmo e por seu rebanho, porque passam-se coisas lá que precisam de correção. Entretanto, não desejo que lhe deis este aviso presentemente, mas quando Deus vô-lo ordenar”.
Tendo acabado de proferir estas palavras e pedido a bênção do santo ancião, foi-se rapidamente para o fundo do deserto.
Capítulo 10
Zózimo, jogando-se no chão beijou o rastro dos passos da Santa e, depois, voltou glorificando a Deus e prestando-Lhe infinitas ações de graça. Passando pelo mesmo caminho que havia feito no deserto, ele voltou ao mosteiro no mesmo tempo que os outros, e permaneceu todo o ano seguinte no silêncio, não ousando falar daquilo que havia visto; mas orava a Deus que lhe permitisse ver ainda aquela pessoa por quem tinha tanto respeito e tanta admiração, e o tempo custava tanto a passar que ele suspirava pensando no quanto este ano era longo.
Quando chegou a época do Santo Jejum, e os outros Solitários depois da oração costumeira saíram no primeiro Domingo da Quaresma cantando os Salmos, ele foi impossibilitado de ir por uma febre que o obrigou a permanecer no mosteiro. Então, lembrou-se do que a Santa lhe havia dito, que, mesmo que quisesse, ele não poderia sair de lá, e alguns dias mais tarde foi aliviado de sua indisposição. Voltando os Solitários, ele realizou o que lhe havia sido ordenado, colocando em um pequeno cálice o Corpo e Precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e levou também, dentro de uma cesta de vime, alguns figos, damascos e lentilhas embebidos em água. Depois, chegando a noite, sentou-se à beira do Jordão para esperar a Santa, não se deixando adormecer, pois que ela tardava a chegar; mas olhava atentamente para o lado do deserto à espera do que desejava tanto ver, e dizia: “Não teria ela vindo, e não me tendo encontrado, teria retornado, então?”. Acompanhava suas palavras com lágrimas, e erguendo os olhos para o céu com ardor, fazia esta oração: “Meu Deus, não me recuseis ver ainda aquela que já me concedestes o favor de vê-la; mas temo que os meus pecados me tornem indigno de receber esta graça”.
Assim orando e chorando, ocorreu-lhe um outro pensamento, e dizia consigo: “Mas se ela vier, o que fará? Como passará o Jordão para vir a mim pobre pecador, já que não há aqui nenhum barco? Ai! Infeliz que sou, quem me terá feito perder a felicidade que eu tinha tanto motivo para esperar?”.
Estando o ancião assim, a Santa chegou e ficou do outro lado do rio. Zózimo, ao vê-la, levantou-se e, transportado pela alegria, dava graças a Deus. Mas, como ele estava sempre em extrema inquietação de como ela poderia passar o Jordão, ele a viu fazer o Sinal da Cruz sobre o rio (pois a lua estava então cheia, e seus raios tornavam a noite extremamente clara) e, em seguida, caminhar sobre as águas, como se estivesse em terra firme, o que o espantou de tal maneira que quis ajoelhar-se, mas ela impediu-o gritando: “Que fazeis, meu pai? Não vos lembrais de que sois padre de Deus e que levais os Divinos Mistérios?”.
Ele obedeceu a estas palavras, e ela, após ter passado o rio, disse-lhe: “Meu pai, dai-me a vossa bênção.”
Ao que ele respondeu ainda sob a impressão extrema que lhe havia causado tamanho milagre: “Em verdade, Deus é bastante fiel quando promete tornar semelhante a Ele aqueles que se purificam com tanto zelo pelo Seu amor. Meu Deus e meu Mestre, sede glorificado para sempre por aquilo que me fizestes ver na pessoa de vossa serva: o quanto estou longe da verdadeira perfeição”.
Ela pediu-lhe em seguida que recitasse o Símbolo e começasse a Oração Dominical. Quando terminou, segundo o costume, a Santa deu ao ancião o beijo da paz e depois, recebendo o Santíssimo Sacramento, estendeu as mãos para o Céu e, misturando seus suspiros às suas lágrimas, proferiu em voz alta: “Senhor, permiti agora à vossa serva, segundo a vossa Divina Palavra, partir em paz, pois meus olhos viram o meu Salvador,” e voltando-se para o ancião disse-lhe: “Perdoai-me, meu pai, o mal que vos causei, e concedei-me ainda este outro pedido: voltai agora sob a condução de Deus para vosso mosteiro, e, quando o tempo estiver terminado, ide à torrente onde vos falei pela primeira vez; mas, em nome de Deus, não falteis, e ver-me-eis então da forma que Ele quiser”.
O ancião respondeu-lhe: “Aprouve a Deus que estivesse em meu poder seguir-vos e gozar da felicidade da vossa presença. Mas, suplico-vos, minha mãe, não recuseis um pequeno pedido que tenho para vos fazer: que queirais comer alguma coisa daquilo que vos trouxe”.
Então, ela tomou somente 3 grãos de lentilha, os colocou na boca dizendo que a graça do Espírito Santo era suficiente para conservar a alma na pureza, e acrescentou dirigindo-se ao ancião: “Rogo-vos, meu pai, em nome de Deus, orai por mim e não esqueçais nunca as minhas misérias”.
Zózimo beijando seus pés santos, conjurou-a a rezar pela Igreja, pelo Império e por ele. E, chorando e suspirando, deixou-a partir, pois não ousava retê-la mais, e mesmo que quisesse não teria conseguido.
Capítulo 11
A Santa fez ainda o Sinal da Cruz sobre o Jordão e, depois, caminhando sobre as águas, atravessou-o da mesma forma que havia feito ao vir, e Zózimo voltou cheio de alegria e espanto, e com pena, por não ter-lhe perguntado seu nome. Mas esperava consertar este erro no ano seguinte. E, quando este ano foi concluído e os costumes ordinários do mosteiro tendo sido observados, ele voltou ao deserto que está para além do Jordão, e caminhava com muita pressa pelo desejo de gozar da felicidade de rever aquela gloriosa Santa. Mas, avançando naquela imensa solidão, e olhando e procurando de todos os lados encontrar alguma marca que o conduzisse ao lugar onde desejava com tanto ardor chegar, como fazem os caçadores para encontrar os animais que querem caçar, enfim não vendo nenhum vestígio, encharcou de lágrimas o seu rosto e disse erguendo os olhos para o céu: “Muito humildemente eu vos suplico, meu Deus, ver este Anjo em corpo mortal ao qual o mundo inteiro não é digno de ser comparado.”
Tendo terminado esta oração, chegou à torrente; e, como todo o alto deste lugar estava iluminado pelos raios do sol, ele percebeu na terra o corpo morto da Santa, cujo rosto estava voltado para o Oriente e as mãos cruzadas. Correu logo para lá, lavou seus pés com suas lágrimas, sem ousar tocar nenhuma parte de seu corpo. Tendo em seguida cantado os Salmos e recitado as orações costumeiras em ocasiões semelhantes, disse consigo: “É possível que a Santa não se agradasse daquilo que faço”. Como estava nestes pensamentos, viu estas palavras escritas na terra: “Meu pai Zózimo, enterrai o corpo da miserável Maria, devolvei à terra o que é da terra, pó ao pó. Em nome de Deus, orai por mim, neste décimo dia de Abril, na véspera da Paixão de Jesus Cristo Nosso Salvador, e após ter sido tornada partícipe de Seu Santíssimo e Divino Corpo”.
Tendo lido estas palavras, o ancião pensava consigo quem poderia tê-las escrito, visto que a Santa havia-lhe dito que ela não sabia escrever, e tivera uma extrema alegria por desta maneira ter sabido o seu nome. Ele soube desta forma que, no instante em que ela recebera o Santo Sacramento à beira do Jordão, viera para aquele lugar e passara ao Céu; e que assim ela havia feito, em um momento, o mesmo caminho em que ela havia empregado 20 dias inteiros caminhando sem parar.
Este bom ancião, tendo prestado infinitas ações de graças a Deus e encharcado com seu pranto o corpo da Santa, pôs-se a dizer: “É tempo, Zózimo, de executar o que te foi ordenado. Mas infelizmente como farei, pois não tenho como cavar a terra, nem pá nem coisa alguma”. Enquanto falava ao acaso, viu um pequeno pedaço de madeira e tomou-o, e começou a tentar abrir a terra; mas era tão dura, e ele tão extremamente fraco por conta de seus jejuns e com o caminho tão longo, que lhe foi de todo impossível. Então, encharcado de suor do esforço que havia feito inutilmente, deu profundos suspiros e levantando os olhos percebeu junto ao corpo da Santa um enorme leão que lhe lambia os pés, o que o encheu primeiramente de um maravilhoso pavor e principalmente porque a Santa lhe havia dito não ter jamais visto nenhum animal selvagem naquele deserto. Mas assegurou-se, pelo Sinal da Cruz e pela Fé, que aquele santo corpo poderia protegê-lo de todo o perigo. E o Leão começou a fazer-lhe carícias como para saudá-lo. Então, Zózimo disse-lhe: “Rei dos animais, já que Deus enviou-te aqui, a fim de que o corpo de Sua serva não permaneça insepulto, cumpre o teu encargo, dando-me os meios de colocá-lo na terra; pois, além de minha velhice que me tira a força de cavar, não há nada aqui que seja apropriado, e eu não poderia depois fazer um tão longo caminho como o que já fiz; mas visto que recebeste ordens de Deus para isso, usa tuas unhas nesta obra”.
Obedecendo ao ancião, o leão cavou de súbito uma fossa suficiente, e Zózimo, depois de regar com suas lágrimas os pés da Santa, e com muitas orações, implorando sua assistência para todo o mundo e particularmente por ele, cobriu o corpo de terra, deixando-o como o havia encontrado; coberto somente uma parte, por aquele velho casaco rasgado que havia jogado para a Santa dois anos antes. Enquanto isso, o leão permaneceu firme, e, quando o oficio de piedade acabou, retiraram-se os dois ao mesmo tempo. Este soberbo animal e uma doce ovelha foram-se para o fundo do deserto, e Zózimo voltou bendizendo a Deus e cantando um Cântico de louvor a Jesus Cristo Nosso Salvador.
Quando voltou ao mosteiro, contou-lhes desde o começo o que lhe havia acontecido, sem nada esconder-lhes do que vira ou escutara, para que, aprendendo os efeitos milagrosos da Onipotência de Deus, fossem cheios de admiração e que assim celebrassem, com temor e com amor, o dia da bem aventurada passagem daquela gloriosa Santa, por cuja opinião o abade João percebeu que alguns de meus irmãos precisavam de correção e converteu-os pela assistência da misericórdia de Deus.
Quanto a Zózimo, depois de ter vivido até a idade de 100 anos naquele mosteiro, foi-se em paz gozar da Presença de Deus pela Graça de Jesus Cristo, ao qual, com Seu Pai e o adorável Espírito Santo vivificador das almas, a honra, o poder e a glória pertencem pelos séculos dos séculos. Amém.
São Sofrônio de Jerusalém
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Fonte: Padres do Deserto: http://www.padresdodeserto.net
Tradução: Jandira Soares Pimentel
Fonte: http://patristicabrasil.blogspot.com.br/2009/12/sao-sofronio-de-jerusalem-sec-vi.html.
Visto também em:
- http://tarcisiosilva680.wordpress.com/2013/09/20/a-vida-de-nossa-santa-mae-maria-do-egito-parte-i/
- http://tarcisiosilva680.wordpress.com/2013/09/20/a-vida-de-nossa-santa-mae-maria-do-egito-parte-ii/
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