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MONS. MARCEL LEFEBVRE

Venerável Fundador Mons. Marcel Lefebvre
* Tourcoing, 29 de Novembro de 1905
+ Martigny, 25 de março de 1991




A PEQUENA HISTÓRIA DA MINHA LONGA HISTÓRIA

Vida de S.E.R. Dom Marcel Lefebvre contada por ele mesmo em forma de palestras na Abadia São Miguel.


Estas conferências foram proferidas por Sua Excelência Monsenhor Marcel Lefebvre na Abadia São Miguel nos dias 07, 08 e 12 de fevereiro de 1990.
A fim de preservar, nestas conferências, seu caráter próprio e pessoal, o estilo falado foi conservado, exceto algumas correções: os títulos e subtítulos são da redação.







Prólogo

Perguntaram-me se poderia dar conferências às Irmãs. Oh! Se elas me pedem, eu lhes darei a pequena história da minha longa história. Eu lhes falaria um pouco daquilo que o Bom Deus fez por mim durante minha existência, com toda simplicidade.

Pensei como intitular essas conferências e achei que seria: “Os rumos da Providência no curso da minha vida e como é bom se entregar totalmente a Ela para agradar ao Bom Deus”. “Ut placeat tibi Domine Deus”. Esta é a prece que lemos no ofertório : “Nós Vos oferecemos este sacrifício”, nosso sacrifício em união com o Vosso para que ele vos agrade. “Ut placeat tibi Domine Deus”. Reconheço que meus oitenta ou oitenta e dois anos de vida consciente, - porque não falo muito dos anos da infância -, me ensinaram justamente a seguir a Providência, a buscar nas circunstâncias, nos acontecimentos da vida, qual é a vontade do Bom Deus, para tentar segui-la.


A infância



Família Lefebvre
Passamos alguns anos de vida tranqüila em família, com nossos pais cristãos, profundamente cristãos. É verdade que a igreja paroquial não era longe, cinco minutos a pé. Todas as manhãs, meus pais lá chegavam cedo para comungar, e assistir à Missa quando podiam. Naquele tempo, na paróquia, um padre dava a comunhão a cada quarto de hora, de cinco e quinze da manhã até nove horas, creio. Era o costume daquele tempo, porque muitas pessoas iam para o trabalho e não tinham tempo de ficar para a Missa. Chegando, pois, à igreja alguns minutos antes do quarto de hora, ficava-se seguro de poder comungar. Alguns minutos para se preparar, outros tantos depois de comungar, e partia-se para o trabalho. Habitualmente, meus pais assistiam à Santa Missa, senão iam ao menos comungar.

Observando as leis de Deus, começaram por ter cinco filhos, ano a ano, depois três outros mais tarde. Três em 1903, 1904, 1905, os três primeiros (René em 1903, Jeanne em 1904 e Mons. Marcel Lefebvre em 1905 – Nota do Editor); depois, em 1907, minha irmã Marie-Gabriel, em 1908 minha irmã Marie-Christiane, e, em 1914, bem às vésperas da guerra, Joseph. Depois, os dois outros após a guerra.

Vivemos felizes durante esses anos que precederam a guerra. Meus pais se casaram em 1902, eu nasci em 1905. Tinha, portanto, nove anos quando a guerra foi declarada.


A ambiência da vida no norte


A ambiência da vida no Norte era uma ambiência de trabalho. O trabalho é a usina que comanda tudo. Todos vão ao trabalho: patrão, empregado, operário; uns às seis da manhã, outros às sete e meia. O operário permanece no serviço até a batida do sino, e o patrão, algumas vezes até às nove ou dez horas da noite. E isso todos os dias, todos os dias.

Fábrica de tecidos: às cinco e meia – seis horas da manhã ouvia-se os teares começarem a funcionar. As chaminés começavam a soltar fumaça, porque tudo era alimentado a carvão; ainda não havia eletricidade. Era a vida regular, um tanto quanto monótona. Geralmente, o tempo está coberto, naquela região, um pouco cinzento, e isso não convida ninguém a passear. Por isso as pessoas amam o trabalho e ficariam infelizes se não pudessem trabalhar. Penso um pouco na Suíça alemã: é a mesma coisa – não vá me desdizer. Quando visitei Ibach na região de Schwytz, havia uma senhora, Mme Elsener, boa pessoa, que tinha uma metalúrgica, cutelaria. Ela empregava mil operários, se me faz o favor! Não é um pequeno negócio. Quando seu marido morreu, foi ela que virou patroa, passou a dirigir a fábrica com seus filhos. Todos eles trabalhavam: as moças no escritório, os rapazes na fábrica. Ela também trabalhava, de manhã à noite, e me dizia na sua simplicidade: “Você sabe, nossos operários ficam tristes nos Domingos, porque não podem ir trabalhar na fábrica… assim é a vida”.

No Norte, era assim também, numa época que já passou. Hoje, praticamente, a indústria têxtil está falida, está morrendo por causa da concorrência estrangeira, por causa das novas condições. Havia, então, a bacia mineira que corresponde a da Bélgica, perto de Mons, que se estende ao Ruhr, na Alemanha, uma imensa bacia mineira que atravessa toda a Europa, até a Inglaterra. Essa era a fonte de energia de onde se retirava o carvão para tocar as fábricas, etc. As fábricas eram construídas junto dessa fonte de energia, e não longe dos portos, para receber o algodão, a lã da Austrália, da Argentina, do Egito. Como era uma zona populosa, industrializada, trabalhadora, as fábricas floresceram ali, naquele momento, por causa das condições favoráveis.

Mais tarde, com a eletricidade e o petróleo, as condições de vida, os transportes, sei lá, tudo mudou. Veio, então, a concorrência estrangeira: Japão, Estados Unidos, a América do Sul, todos se puseram a montar indústrias, e isso causou, praticamente, a falência por toda a parte. Agora, não há mais quase fábricas de tecidos no Norte.

Convivemos com essas coisas tranqüilamente. Tínhamos um bom colégio, a cinco minutos de casa, uma boa instituição, as Ursulinas, também pertinho. As meninas iam às Ursulinas, os meninos ao colégio e a vida corria, assim, regularmente. Às oito horas, saíamos; tínhamos, pela graça do Bom Deus, duas boas pessoas que ajudavam a mamãe a cuidar das crianças. Antes de sairmos, elas nos diziam: “Não esqueceu de nada, pôs o lenço no bolso, não se esqueceu de pegar a merenda, não esqueceu isto, e aquilo...”. Davam um beijo e ainda diziam: “Vão, até mais, prestem atenção, andem pela calçada...”. Éramos cercados pelo afeto de três mamães, pode-se dizer. Éramos crianças felizes naquela época.


Primeira Guerra Mundial

Veio, então, a terrível guerra. É uma coisa assombrosa a guerra como essa de 1914-1918. Apavorante!

Houve a mobilização, evidentemente: todos os homens partiram, e as mamães ficaram sós com seus filhos, de um dia para o outro. É assustador quando se pensa em coisas como aquelas, apavorante. Como vão elas fazer para trabalhar, como vão comer? O que acontecerá quando não houver mais homens em casa?

Nas escolas é a mesma coisa: os professores partiram, mobilizados. Restam alguns, fracos ou doentes. Nas paróquias, os vigários também são mobilizados, não há mais que um ou dois padres, onde havia cinco ou seis.

E depois, rapidamente, ocorreram os combates, a invasão, os mortos, os prisioneiros, etc., as novidades que chegam do “front”: tantos mortos, muitos prisioneiros. Muitos, da gente do Norte, foram feitos prisioneiros.

Meu pai, ele não partiu logo em seguida: não era mobilizável porque tinha seis filhos. Então ficou. Mas, quis ajudar os prisioneiros ingleses e franceses a fugir das linhas inimigas, das prisões, dos campos onde estavam internados, a voltar para casa. Em janeiro de 1915, sentiu que estava sendo perseguido pelos alemães, e que seria fuzilado com certeza, se não estivesse preso. Tinha que fugir. Saiu através da Bélgica, Holanda, Inglaterra e voltou à França para evitar ser abatido pela política alemã.

O papai tinha partido, então permanecemos lá durante a guerra, quatro anos de ocupação. Os alemães ocuparam a cidade dois meses depois. Vimos hussardos, lanceiros, todos a cavalo naquele momento, desfilar pelas ruas, com capacetes e lanças que mediam três metros de comprimento. Eles ocuparam a cidade que foi mobilizada, desta vez, pelos alemães; era preciso alojar os militares, cuidar deles. Até mesmo as meninas e as mulheres já um pouco idosas, todos aqueles que fossem capazes, foram mobilizados e deveriam trabalhar para o exército alemão.

A cidade distribuía, ao meio dia, sopas populares e nós íamos tomar sopa numa das salas da prefeitura, porque não se encontrava muito o que comer. Os americanos, supostamente, nos enviavam alimentos: galinhas, que chegavam de longe completamente podres e farinha. Era de se perguntar por onde tinha passado esse trigo, pois quando o pão chegava estava preto, preto, não secava, estava úmido por dentro e o miolo soltava a casca, parecia betume, e era isso que se deveria comer. Era, provavelmente, não sei, farinha de grão preto ou farinha de batata, de legumes. Era um pão... comprava-se na padaria. Era preciso comer, o que você quer!

Foi verdadeiramente a privação e a miséria, a grande miséria, e, depois, as perseguições. Os alemães descobriram, dentro da fábrica, estoques de lã, escondidos nos porões, para evitar que os tomassem. Eles furaram, sistematicamente, todas as paredes de todas as fábricas, em todos os porões, cada três, quatro metros, para ver se não havia esconderijos de lã, etc. Descobriram em nossa casa, e minha mãe foi presa durante muitas semanas. Não me recordo mais se foram muitos meses ou muitas semanas, enfim, ela foi metida na prisão por causa disso.

Ela deixou seus filhos sós, nas mãos de suas criadas que eram muitos gentis mas, enfim, tudo isso foi muito emocionante. Então, ela contraiu uma descalcificação da coluna vertebral que resultou, no fim da guerra, na necessidade de engessá-la. Não obstante os anos, eu ainda a vejo, ela estava deitada na sala de jantar da casa, em conseqüência das privações da guerra.

Essa guerra causou, verdadeiramente, sofrimentos penosos. Para nós, que éramos crianças, não nos dávamos conta completamente, o que certamente ocorria com os mais velhos, porém, por vezes certas coisas não podiam nos escapar, porque estávamos muito perto da linha de frente, no sul da Bélgica. Ao lado de Ypres e do famoso Monte Kemel, onde se travaram batalhas terríveis. Via-se à tarde, à noite, o horizonte completamente iluminado pelos obuses que explodiam numerosos e sem parada. Ouvíamos o ribombo, o estrondo dos obuses. Por toda a linha de frente, o céu estava em fogo. Era medonho. No dia seguinte, via-se chegar ao hospital, em frente a nós, cortejos de feridos, às centenas, - sem contar os mortos -, também do lado aliado, do lado francês, como do lado alemão. Estávamos do lado ocupado pelos alemães, e eram, sobretudo, seus os feridos que víamos, esses pobres feridos...

Como vêem, isso marcou nossa infância. Mesmo que não se tivesse apenas nove, dez ou onze anos. As imagens ficaram gravadas na memória... A guerra, com certeza, é uma coisa terrível, e todas as conseqüências dessa guerra, todos os sofrimentos, as emoções contínuas...

Um dia, os alemães anunciaram a mobilização de todas as pessoas ainda válidas, era preciso ir trabalhar nos centros de triagem, de balas, não sei o que lá, de pedaços de cobre, e imediatamente, porque lhe começava a faltar cobre para os obuses, etc. tinham necessidade de pessoal. Então, ordenaram a todas as pessoas de cada casa que se colocassem nas calçadas, prontos para partir. Todas as pessoas, a partir de dezesseis anos ou dezessete (veja, dezessete anos!), todas as pessoas válidas deveriam estar prontas, com sua bagagem, nas calçadas, e, os alemães passariam e retirariam uma ou outra. Não se sabia, de antemão, quem partiria e quem ficaria. Então, era preciso sair, ainda bem me lembro. Éramos crianças, não nos prenderíamos, e as pessoas que nos serviam eram muito idosas para serem levadas. Mas, enfim, assistimos a esse desfile de pessoas que estavam lá, na calçada. Os alemães passaram com caminhões, recolhendo as pessoas requisitadas e as levando sem que elas soubessem o que aconteceria.

Evidentemente, tudo isso gerou inquietações, dores, separações, foi assustador. Não se pode imaginar o que é, o que pode ser a guerra. A crueldade, a brutalidade, os ferimentos, as separações, os sofrimentos morais, tudo isso é muito duro, duro. Essas coisas nos marcaram, nos amadureceram. Joseph não tinha mais que um ano, não se deu conta, mas nós cinco ficamos marcados por esses acontecimentos, e, penso que nossa vocação deve-se a eles, pelo menos em parte. Porque vimos que a vida humana é coisa pouca e que, por minha fé, era preciso sofrer. Vimos que naquele tempo a piedade era grande. Rezava-se o terço todas as tardes, e a igreja estava cheia, sobretudo de mulheres, mas também, de um bom número de homens velhos; os jovens não estavam lá. Todas as tardes, portanto, reza do terço, a última dezena com os braços em cruz, e adoração do Santíssimo Sacramento. Toda a paróquia enchia a vasta igreja. Orava-se, orava-se por todos que haviam partido, pelos prisioneiros, por aqueles que estavam no “front”. Havia um fervor evidentemente muito grande naqueles momentos. Tudo isso, vejam, criava uma atmosfera especial.

Meu irmão René era o mais velho, tinha completado quinze anos em 1918. Temia-se que os alemães acabassem prendendo, qualquer que fosse a idade, todos os que fossem capazes de fazer alguma coisa. Era possível evitar isso graças aos trens da cruz vermelha que passavam através da Suíça. Recolhiam as crianças, até quinze anos, que tinham parentes na França livre que os recebessem. Somente o Norte e o Leste da França estavam ocupados.

Como meu pai tivesse partido e se encontrasse em Versailles, meu irmão René atravessou a Suíça e depois o encontrou. Ele continuou seus estudos lá embaixo.


A vocação


Eis como a Providência conduziu, eu diria, minha própria existência, e a do meu irmão, por causa da guerra. Se não tivesse acontecido a guerra, está claro que ele não teria ido fazer seus estudos em Versailles, e se tivesse uma vocação missionária, teria entrado diretamente nos Padres do Espírito Santo, ou nos Padres Brancos. Mas, estando em Versailles, pediu ao meu pai para ir ao seminário de Grandchamp, cursar sua filosofia, e terminar os estudos. Foi aceito, embora não tivesse declarado imediatamente que tinha vocação. Não foi ao grande seminário para isso, mas, naquele momento suas portas estavam abertas para todos os que viessem das regiões ocupadas.

Ele, portanto, terminou seis estudos no Grandchamp, em Versailles, e seu professor de filosofia foi, nem mais nem menos que o Pe. Colin, autor de um livro de filosofia e, ele era muito romano, adido ao seminário Francês, onde fez curso completo. Quando meu pai lhe disse que achava que seu filho teria, talvez, vocação, foi decidido, consultado René, que ele faria seus estudos em Roma, no seminário Francês, porque a região de Lille ainda estava fechada. Partiu em 1919.

Vejam como a Providência conduz as coisas. Terminada a guerra, pudemos nos reencontrar, nos reagrupar. Em 1919, voltamos à casa da família, com meu pai. Meu irmão René, já no seminário, voltou de férias.

Enfim, em 1923, quando eu mesmo disse aos meus pais que “gostaria muito de ser padre”, pensava eu ser padre na diocese, padre, vigário, cura... num vilarejo. Pensava, então, em ir para o seminário da diocese de Lille; não me via de nenhuma maneira, eu, partir para Roma, não era um grande intelectual e precisava estudar latim... Ir para lá, cursar a Universidade Gregoriana, passar nos exames difíceis... “Não, eu, desejo ficar na diocese, porque desejo trabalhar na diocese, não vale a pena ir para lá”. Meu pai me disse: “Não, não, não, não, irás juntar-te ao teu irmão! Teu irmão está em Roma, tu, tu irás para Roma também. E depois, a diocese...” ele desconfiava um pouquinho do ambiente progressista do seminário e da reputação daquele que deveria ser o cardeal Liénart(1).

Meu pai não era de todo progressista, então “Não, não, Roma será melhor”. Tanto insistiu que eu, convencido, parti para o seminário Francês. Vejam como a Providência conduz as coisas. Se a guerra não tivesse estourado, meu irmão teria ido para uma congregação missionária, e eu teria entrado na diocese de Lille, não teria ido para Roma. Isso mudou completamente minha existência, completamente.


Rumo ao sacerdócio 



Então desci para Roma, para o seminário Francês, e agradeço ao bom Deus, todos os dias, que meu pai tivesse essa vontade, e que eu não tivesse seguido meus desejos. Roma foi uma revelação para mim: o Padre Lê Floch e os professores ensinavam como se deveria ver os acontecimentos da história atual, descobri os erros, o liberalismo, o modernismo, e tantos outros dos quais não estávamos sabendo, como era preciso buscar a verdade nas encíclicas dos papas e, particularmente, nas encíclicas de Pio X, de Leão XIII e de todos os padres que os precederam.

Eis o que se estudava no seminário. Para mim, isso foi uma revelação, total. Então, posso dizer, nasceu em todos nós suavemente, em todos os seminaristas (éramos duzentos e vinte), nasceu em nós o desejo de conformar nosso pensamento com o dos papas.

Perguntávamos: mas como os papas julgaram os acontecimentos, as idéias, os homens, as coisas do seu tempo, de sua época? E o Padre Lê Floch nos mostrava quais tinham sido as idéias e diretrizes desses diferentes papas, sempre as mesmas, exatamente as mesmas nas encíclicas. Isso esclareceu-nos verdadeiramente, mostrou-nos como se deveria julgar a história, como se deveria julgar os acontecimentos, onde estavam os erros, onde estava a verdade, como se deveria pensar... Isso foi uma revelação, com toda certeza, ficou em nós para sempre. Ficamos ligados a todas essas belas encíclicas dos papas que nos mostram o que é mau no mundo atual, as fontes do mal, as fontes dos erros e que nos dizem onde está a verdade.

Como podem ver, essa foi uma primeira etapa na minha vida que demonstra muito bem como o bom Deus me guia através de pequenos acontecimentos. O fato, por exemplo, de o meu irmão ter estudado com o Padre Colin, que era adepto fervoroso de Roma e aconselhou meu pai a mandar meu irmão para Roma. Se meu irmão não estivesse estado lá onde estava, esse famoso Padre Colin, ora! não se teria orientado para Roma e, eu, permaneceria na diocese. Incrível como a providência conduz as coisas, não é mesmo? Fui conduzido, portanto, a respeito das minhas apreensões, ao seminário Francês, junto ao meu irmão.

Esse seminário, confiado à Congregação doa Padres do Espírito Santo, estava sob a direção do R. P. Lê Floch. Como já lhes disse, para mim o Seminário Francês foi uma verdadeira revelação e uma luz para toda a minha vida sacerdotal e episcopal: ver os acontecimentos no espírito dos soberanos Pontífices que se sucederam, durante quase um século e meio, mas particularmente os acontecimentos posteriores à Revolução Francesa, todos os erros que brotaram de todas essas correntes de idéias contrárias à doutrina da Igreja. Os papas os denunciaram, os papas os condenaram, e em conseqüência, nós também deveríamos condená-los.

Mas, como chegaram os defensores da Igreja, os defensores da verdade, os defensores da Tradição da Igreja a atiçar a ira contra eles. Atiçaram a ira de todos aqueles que gostariam que se compusesse com o mundo, que não se necessitasse mais condenar os erros: “proclamemos a verdade, mas não condenemos os erros”. Uma espécie de gente de duas caras. Trata-se de gente perigosa que se diz católica, e que ao mesmo tempo pactuam com os inimigos da Igreja. Essa gente não pode suportar a Verdade. A verdade integral, firme. Não podem mais suportar que se combata o erro, que se combata o mundo e Satanás e os inimigos da Igreja e que se esteja, sempre em estado de cruzada. Está-se em estado de cruzada, em estado de combate contínuo. Nosso Senhor proclamou, Ele também, a Verdade. Pois bem! Eles o mataram. Eles o mataram porque Ele proclamou a Verdade, porque ele disse que era Deus. Sim! Ele o era. Não se poderia dizer que não o fosse. E todos os mártires preferiram dar seu sangue, sua vida, antes de se comprometer com os pagãos.

Passei seis anos em Roma (mais um ano de serviço militar). Ocorreu que, nos três primeiros anos (1923-1924, 1924-1925,1925-1926), tive, como diretor, o Padre Lê Floch. Gostei muito de ter recebido, também, os ensinamentos que nos foram dados pela Universidade Gregoriana de Roma, pelos jesuítas.

Chamado ao serviço militar, durante os anos de 1926 e 1927, tive a sorte, de certa maneira, de não assistir a essa operação monstruosa que foi a destituição do querido Padre Lê Floch, diretor do Seminário Francês. Soube por cartas, por colegas e, quando em novembro de 1927 deixei o serviço militar para retornar ao seminário, me dei conta dos detalhes, absolutamente escandalosos, de como o Padre Lê Floch fora liquidado, pode-se dizer eliminado. Por quê? Porque todos esses franco-maçons que já estavam no governo francês, e todos esses liberais que giram ao redor deles, temiam que os discípulos do Padre Lê Floch, os padres formados pelo Padre Lê Floch na Verdade, no combate contra o erro, e contra o mal, contra Satanás, se tornassem bispos. No mundo inteiro, a maior parte dos bispos estudou em Roma; isso é certo agora, mas era mais que verdadeiro então. Poderiam, com efeito, temer que dentre esses duzentos e vinte seminaristas, dos quais cento e oitenta seriam padres e retornariam à França, muitos deles poderiam ser escolhidos, mais tarde, como bispos. Aliás, foi o caso. Muitos dos meus confrades tornaram-se bispos na França, muitos, muitos. Infelizmente, muitos não tiveram a coragem de manter a Fé aos ensinamentos que receberam no seminário Francês. A ambiência do mundo, o meio mundano, o ambiente liberal no qual se vive, de uma maneira geral, tudo isso é como se fosse um envenenamento lento, mas, seguro.

Contaram-me como o fato se passou. Emissários do governo vieram até o Vaticano e disseram: “não queremos mais o Padre Lê Floch à testa do seminário Francês. È um homem perigoso, é um...”. Oh! Vocês sabem os termos que se usam: “integrista, fascista, ultramontano”, que sei lá, é fácil encontrar os termos descorteses para denegrir a situação.”O Padre Lê Floch pertence à Ação Francesa, o Padre Lê Floch é um discípulo de Maurras, o Padre Lê Floch é isso e aquilo...”.

O Papa Pio XI era um homem que tinha uma bela inteligência, uma grande inteligência, uma grande fé também, e que escreveu encíclicas maravilhosas, mas, que infelizmente, na prática do seu governo foi fraco, muito fraco e, sobretudo, tentou aliar-se um pouco com o mundo. Ele destituiu não somente o Padre Lê Floch, mas, também, o Cardeal Billot, que era um professor eminente da Gregoriana, um professor extraordinário. Pela mesma razão, destituiu-o, porque o cardeal Billot era um homem reto; nada de compromissos com o erro, a verdade firme e a luta contra os erros, contra o liberalismo, contra o modernismo, como São Pio X. Era um verdadeiro discípulo de São Pio X. Então, o cardeal Billot foi destituído, também ele um alvo do governo francês.

Foi o pobre Papa Pio XI que reinava por ocasião do massacre dos Cristeros no México, quando do pedido dos bispos americanos. Os católicos mexicanos se defendiam e queriam lutar contra o governo maçom e anticristão, anticatólico. Eles pegaram em armas, como o fizeram os vandeenses quando da Revolução Francesa, para salvar a religião, para salvar a Fé católica. No início, o Papa os encorajava, mas depois, um belo dia, o governo americano franco-maçon que sustentava o México – sempre a Franco–maçonaria – insistiu junto aos bispos americanos para que fizessem cessar o combate. Oh! Seria feito um acordo com os católicos, que eles não receassem! Então, os bispos pressionaram o Papa Pio XI, e o Papa Pio XI deu ordem aos Cristeros para deporem as armas. Eles depuseram as armas e foram todos massacrados. O governo mandou massacrá-los em massa. Horrível, absolutamente horrível. Foi verdadeiramente uma traição a essa pobre gente.

Foi a mesma coisa com a Ação Francesa. Empurraram o Papa Pio XI para a condenação da Ação Francesa, porque a Ação Francesa não era um movimento católico, era um movimento de reação contra a desordem que ameaçava a franco-maçonaria no país. A Ação Francesa pregava uma reação sã, definitiva, um retorno à ordem, à disciplina, à moral, à moral cristã. Então, o governo descontente em ver esse movimento, insistiu junto ao Papa Pio XI para que condenasse a ação Francesa. Eram os melhores católicos que faziam parte desse movimento e que tentavam endireitar a França. Portanto. O Papa Pio XII, seu secretário de Estado, que o sucedeu, levantou a condenação da Ação Francesa. Era muito tarde. O mal estava feito. A Ação Francesa caíra por terra. Foi demasiado, e isso teve conseqüências enormes. 



Para o Padre Lê Floch, foi a mesma coisa: fez-se uma investigação para ver se se encontrava, na direção do seminário, coisas que lhe fossem reprováveis; isso não seria difícil, sempre se encontra algo, e se faria o Padre Lê Floch compreender que seria melhor que ele pedisse sua demissão e, depois, que se fosse. A investigação foi feita por D. Schuster, um eminente beneditino(2). Resultado da investigação inteiramente favorável. Dom Schuster fez um elogio sem limites á ação do Padre Lê Floch, da direção, do seu seminário, da influência que tinha sobre os seminaristas, da fé que era a sua, e, assim por diante...

Os adversários de Padre Lê Floch, furiosos com o resultado da investigação, conseguiram convencer o Papa a fazer uma contra-investigação nomeando alguém que tivesse verdadeiramente o encargo de dizer algo que pudesse jogar o Padre Lê Floch para fora. Aí acabaram por encontrar um professor e um ou dois alunos do seminário que fizeram algumas observações: ele está muito à direita, muito maurrasiano, muito antiliberal, muito... etc. Isso bastou. Ele foi condenado e obrigado a sair. É absolutamente odioso.

Ora, é o mesmo combate que travamos atualmente. Por que somos perseguidos hoje; o que vocês são, o que somos na tradição? Porque afirmamos a Verdade e condenamos os erros, condenamos o liberalismo, condenamos o modernismo. Isso é inadmissível para a Igreja conciliar. O concílio, agora, mudou tudo aquilo, agora é necessário estar bem com os liberais, com os modernistas, com os franco-maçons, com os comunistas, com todo o mundo. Faz-se o ecumenismo com todo o mundo. Vocês são contra, logo, são contra o Concílio, logo são contra o papa, condenados! Vão, condenados! É a mesma coisa, os mesmos motivos, vocês sabem, é o mesmo combate.

Isso é, uma vez mais, providencial na minha existência. Para mim, foi uma lição prática considerável, por que enxerguei a malícia, a mentira desses inimigos da Verdade. Então, passei a ser sempre desconfiado, sobretudo mais tarde, quando fui bispo, sou desconfiado de toda essa gente que procuram sempre comprometer a igreja, comprometer o clero, comprometer os bispos com os erros modernos, com o mundo moderno. Isso tudo me ensinou a ser vigilante quando recebia padres, ou quando visitava as dioceses e travava relações sobre isso e aquilo. Imediatamente pensava: ah! Eles são, pode ser, opostos uns aos outros porque há os liberais e os conservadores, os tradicionalistas. Sempre... pode-se encontrar um  pouco disso por toda parte.

O pobre Padre Lê Floch, então, partiu, e, quando voltei em 1927, o Padre Berthet estava nomeado. Ele era um homem de duas caras, de aparência tradicional, mas, ao mesmo tempo muito acomodado... Nada de condenações, de lutas, de combate aos erros. Deixemos disso, sejamos prudentes. Então, os últimos anos no seminário foram penosos, por causa disso. Contudo, houve um certo número de seminaristas que não pôde suportar a condenação do padre Lê Floch e deixou o seminário naquele momento.

Fui ordenado em 1929, em Lille, por Mons. Liénart, mas era, então, costume fazer ainda mais um ano de estudos, como padre, no seminário. Disponível para o ministério em 1930, voltei à minha diocese de Lille.

Meu irmão, tendo ingressado em 1924 nos Padres do Espírito santo, tinha terminado seus estudos e partira para o Gabão no mesmo ano da sua ordenação, em 1927. Quanto a mim, o Cardeal Liénart nomeou-me vigário numa cidadezinha assaz importante do entorno de Lille, a Marais de Lomme. Contava com cerca de dez mil habitantes, quase todos operários. Era uma cidade operária. Esses operários trabalhavam nas fábricas das vizinhanças porque não havia uma só no território da paróquia. Tinha ruas compridas, com casas construídas no mesmo modelo. Havia muita gente vinda da região de Boulogne, onde grassava o desemprego, e que se amontoavam no Norte a fim de encontrar trabalho.

Era preciso fazer amizade com essa gente. Era necessário visitá-los. Eles ainda não tinham contato com a paróquia. Mas, havia um grupo de uma vida paroquial mais fervorosa, que freqüentava. Ai! Em dez mil habitantes, poucos eram praticantes. Talvez dois mil ao todo assistiam a Missa aos domingos, contando as crianças.


Primeira nomeação: Vigário
 



Já tinha, portanto, recebido minha nomeação, o cura estava advertido. Ele tinha um vigário. Procurei-o para dizer:
-Bem, estou aqui. O que fareis comigo?

Eu era o segundo vigário, e ele fez uma pequena reflexão, muito divertida. Disse-me como que amavelmente, um tanto queixoso, mas, enfim, desembuchou:
-Oh! Vós sabeis, eu não pedi um segundo vigário, não tinha necessidade. Pensava que não tinha necessidade de mais que um só!
-Está bem!

Ele disse:
-Para uma paróquia como a nossa, não vejo necessidade de se ter um segundo vigário.

E eu respondi:
-Se tentará trabalhar da mesma maneira!

Ele replicou:
-Mas, sois bem-vindo, certamente, estais em casa, etc. Recebereis um quarto.

Ele tinha duas sobrinhas que se ocupavam da arrumação, da cozinha, das roupas, etc. Eram pessoas de valor, tudo bem quanto a elas. E depois, eu já conhecia o vigário que foi um antigo aluno do Sagrado Coração, de Tourcoing. Ademais, já tinha alguns conhecidos por lá, mas, evidentemente, não conhecia toda a paróquia nem todas as pessoas. Para mim era novidade. Desejei que fosse encarregado do ministério dessas visitas, a essas pessoas. Oh, havia pessoas de toda espécie, por certo...
A paróquia estava dividida em quarteirões. Tal quarteirão era do cura, tal quarteirão era do primeiro vigário, tal quarteirão, do segundo vigário. Então, era preciso visitar essa gente toda. Geralmente, era-se bem recebido, gentilmente recebidos. Mas, algumas vezes, havia comunistas que nos fechavam a porta na cara... Então, ia-se à vizinha e se perguntava:

-Quem é aquele bom homem? O que ele é? Por que foi desagradável comigo?

Então ela dizia:
-Vós sabeis, é um comunista ferrenho, por isso não quis vos receber. Mas, não é um homem mau, vou tentar falar com ele, vou tentar arrumar as coisas, ele acabará vos recebendo.

E, de fato, depois de uma segunda passagem, ele abria a porta. Tentava-se saber um pouco qual era a situação das pessoas, e, muitas vezes, infelizmente, havia divorciados, outros que viviam  juntos sem serem casados. As crianças não freqüentavam o catecismo, etc. Enfim, era preciso levar toda essa gente para a paróquia. Não era sempre fácil, evidentemente. Colhia-se bons frutos, porque, no fundo, não eram maus, mas, era necessário dar a eles ocasião de conhecer um pouco melhor a paróquia e os padres. Quando já tinha contato com os padres, estava tudo bem. Assim mesmo em pessoa não se podia regularizar todas as situações.

E depois, havia a visita aos enfermos, visitas regulares que eram interessantes. E também as confissões, as prédicas, o catecismo, o patronato das crianças, os jovens, tanta coisa... não faltava trabalho, e o contato com uma população simples, uma população operária, - não era gente culta, mas digna – eram simpáticos.

Então, a providência... A providência, não quis que eu ficasse lá...


Pouco depois religioso, missionário

Eu continuo a história... Estava então, como vigário nessa paróquia do entorno de Lille, em Marais de Lomme, com um cura e um primeiro vigário. Durante aquele ano que lá passei, em 1930-1931, recebi, naturalmente, cartas seguidas do meu irmão que já era missionário no Gabão. Eram descrições do seu trabalho e do trabalho dos seus confrades. Eles estavam sobrecarregados. Não havia missionários suficientes. Por isso, ele insistia: “Por que você não vem? Considere que há abundância de padres na diocese de Lille”. É claro que essa frase correspondia um pouquinho àquela que me disse o cura quando acabara de chegar. Ele me disse:”Sabeis, eu vos recebo com agrado, certamente com prazer, mas não preciso de um segundo vigário”.

A despeito da insistência do meu irmão, não me sentia atraído pelas missões. Não sei porquê... Não, não fui feito para ser missionário lá longe; isso não me atraía. Teria preferido, como lhes disse, ser cura, ou vigário, num vilarejo, e conhecer todos, fazer-lhes o bem. Mas, percorrer a selva, no meio dos indígenas, aprender novas línguas, enfim, num mundo completamente estranho, diferente do meu, tinha a impressão que tudo lá me excedia, não era para mim. De fato, eu não estava atraído, mas, à força de compreender os apelos do meu irmão... tive uma vocação missionária de razão. Pensei: ”Desde que não sou absolutamente indispensável aqui, se, verdadeiramente, falta muito no mundo de lá, por que não? Por que não ir?”.

Então, no fim do ano, escrevi ao Cardeal Liénart, depois à Congregação dos Padres do Espírito Santo, dizendo-lhes que, se o Cardeal me desse autorização para deixar a diocese seria voluntário à Congregação dos Padres do Espírito Santo a fim de ser missionário.

Então, o Cardeal respondeu favoravelmente, ele me disse: “Oh! Sim, evidentemente, lastimamos sempre ver partir um dos nossos padres, mas, enfim, se verdadeiramente vós credes poder ser útil nas missões, não podemos vos recusar este pedido”.


No noviciado

Os padres do Espírito Santo, certamente, ficaram contentes em receber um padre secular, mesmo porque não precisariam cuidar da sua formação. Fui seu aluno no Seminário Francês, é verdade, mas não me destinava a eles, mas para a diocese de Lille. Eles não tinham contribuído de maneira positiva para a minha formação. Contudo, certamente, eles ficaram contentes em me receber.

Ingressei no noviciado em Orly, bem próximo ao atual aeroporto. Lá, os padres do Espírito Santo tinham uma propriedade para o noviciado. Éramos três padres, todos antigos alunos do Seminário Francês. Lá estava, também, o Padre Laurent. Fomos amigos no seminário, se pensar que a providência nos conduziria, um dia, ao mesmo noviciado. – De novo a providência! – Lá, reatamos uma amizade ainda mais profunda, já que nos tornamos, ambos, padres do Espírito Santo. Havia, também, o Sr. Abbé Wolf, que se tornou bispo em Madagascar, na diocese de Diego Suarez. Éramos, portanto, três padres e cerca de oitenta noviços, nenhum para a França! É uma enormidade. Quando se pensa em números como aqueles, pergunta-se se é possível, agora que não há ninguém mais.

O Padre Faure era o mestre dos noviços, e o Padre Desnats, o confessor: muito bons padres os do Espírito Santo. Passou-se um ano de noviciado, um ano frio, meu Deus, meu Deus! É possível fazer os noviços sofrer como sofremos? Inacreditável! Não sei se foi um ano excepcionalmente frio, penso que sim. Em todo caso, não tínhamos aquecimento nos nossos quartos, somente a sala de reuniões era aquecida, e não dispúnhamos, neles de água encanada, naquela época. Íamos buscar água nas bacias de uma torneira, no fundo de um corredor. A água congelava na bacia! De manhã era preciso quebrar o gelo para poder se lavar um pouco... empilhava-se quatro, cinco, seis cobertas, o que fazia peso, mas não esquentava. Tinha-se frio sempre. Oh! É espantoso! Não sei como não morri de frio!

E por cima, a praça, onde nos faziam ler o livro do Padre Rodriguez, um jesuíta, em quatro volumes: A perfeição Cristã. Devíamos ler Rodriguez, um após os outros, durante a aula, ao ar livre!!! Fazia um frio terrível! Não se sentia os dedos que postavam o livro e ficava-se, um depois do outro, lendo. Ah! Assim foi o noviciado!


Profissão e primeira nomeação

Enfim, o noviciado acabou, fiz profissão em 8 de setembro de 1932, Festa da Natividade da Virgem Santíssima. E depois, fui designado para o Gabão. Poderia ter sido designado alhures, mas, evidentemente, como foi meu irmão que me chamou... Mons. Tardy, o bispo do Gabão, já tinha vindo me ver, no noviciado, e me tinha dito:
-Vireis para nossa casa, vós o sabeis.

Eu disse:
-Não sei de anda, isso depende do Superior Geral.
-Sim, sim, sim, estou certo, estou certo, não se deve recusar, de modo algum! Vosso irmão está lá, deveis seguir vosso irmão.

Respondi:
-Se o Superior Geral está de acordo, irei para vossa casa.

Então ele prosseguiu:
-E depois, como fizestes vossos estudos em Roma, sereis professor no seminário.

Oh!... Agora essa... Era coisa que eu mais temia, oh! Não, não era possível! Gostava muito da pastoral, gostava muito do ministério, sentia-me feito para isso. Mas, professor, ah... não, não, não, professor do seminário, não. Eu lhe disse:
-Vos sabeis, não sou mais capaz que os outros! Não acrediteis que, pelo fato de ter cursado em Roma seria um melhor professor.

Mas, ele insistiu:
-Ah! Mas sim! Sim, sim! 



No Gabão: professor e diretor 

O Superior Geral designou-me, então, para o Gabão, e eu viajei em outubro. Desde que naquele tempo não se dispunha de avião, embarquei num navio, que gastou quinze dias para chegar ao Gabão. Dei adeus aos meus pais e parti em outubro de 1932. Não deveria ver mais minha mãe, ela morreu em 1938. Não pude mais revê-la, ainda me encontrava por lá.

Fui designado para o seminário, cujo diretor era o Padre Fauret. Dois anos mais tarde, quando ele tornou-se bispo de Loango, no Congo Médio, nos. Tardy nomeou-me diretor. Tinha como adjunto o Padre Berger, infelizmente já morto. Cuidei de todos esses jovens seminaristas, e isso não foi pouco trabalho, a fim de assegurar o funcionamento de todas as classes, pois, com uma quinzena dos maiores, tinha outra quinzena de pequenos seminaristas. Como tocar todas essas classes?

A fim de diminuir a carga horária dos cursos, procedia-se por ciclos, ano a ano, para ter todos os seminaristas de uma vez. É dentre aqueles que se contam, agora, os bispos do Gabão.

Lá estava mons. Ndong, meu aluno que se tornou bispo de Oyem, no Gabão. Também, Mons. Felicien Makonaka (3), que agora é bispo de Franceville, nos enfins do Gabão! E mais, Mons. Cyriaque Obamba, bispo atualmente em Movilla, que também foi meu aluno no Gabão (4). O arcebispo atual de Libreville Mons. Anguilé, ao contrário, não foi meu aluno. Poucos padres, que estão ainda vivos, também foram meus alunos. Entre os pequenos seminaristas, alguns morreram, os vivos passaram muito, no entanto, a casa dos sessenta e cinco, setenta anos. Alguns me conheceram bem, e foi isso que, graças a Deus, facilitou a implantação do Padre Groche, no Gabão. É bem certo que, se meu irmão e eu não tivéssemos sido missionários por lá, não se teria podido jamais implantá-lo. Os bispos teriam feito pressão, de tal maneira, que o governo nos teria impedido de fundar. Entretanto, foi difícil para esses bispos, que foram meus alunos, perseguir-me, e moverem uma verdadeira guerra contra mim. Foi, então, uma graça particular do bom Deus, com certeza, que a Fraternidade São Pio X pudesse se estabelecer no Gabão. Para mim é uma grande consolação pensar que, agora, a chama se acende de novo, lá no Gabão, graças ao Abbé Groche e aos abbés que estão com ele, que ressuscitam a Tradição, aquilo que demos a esses bispos. Foi o que fiz por eles, é o que damos continuidade, é o que o Abbé Groche continua a fazer.


A doença, depois, a missão de N’djolé

Passei, assim, seis anos no seminário: dois como professor e quatro anos como diretor. O trabalho era duro, e o clima terrível. Muitos missionários que foram enviados a esse país morreram, ao cabo de dois ou três anos. Quando se ia ao cemitério, via-se as sepulturas dos nossos missionários: morto aos vinte e seis anos, morto aos vinte e sete anos, morto aos vinte e oito anos. O clima era dificilmente suportável. Naqueles tempos, mal se podia defender contra os insetos e todas as doenças que havia: o impaludismo, a filariose, as amebíases, os vermes intestinais, a mosca tsé-tsé (a mosca do sono), era espantoso. Havia, também, a biliose hemática, isto é, hemorragias internas causadas por mal funcionamento do fígado em razão dos alimentos e do calor. A biliose hemática era muito grave, mortal. Meu irmão sofreu muito ao cabo de dois anos. E eu, no fim do sexto ano, estava, praticamente, à morte.

Naquela época, não deveria, em princípio, voltar à França senão a cada dez anos. Foi permitido que voltasse em 1939. Mas, eu tinha deixado o seminário antes, em 1938, e, durante um ano, fui para uma missão no interior.

Lá, encontrei mais satisfação, mas foi preciso aprender a língua. Fui muito feliz nessa missão de N’djolé, como vigário como o abbé Ndong, o futuro Mons. Ndong. Nos demos bem, nos entendemos bem. Havia religiosas de Castres, da Congregação da Imaculada Conceição, que lá estavam como missionárias. Em todas as nossas missões, tínhamos, sempre, uma escola... em N’djolé, tínhamos oitenta meninos e sessenta meninas. As Irmãs se ocupavam com as meninas, todas internas, e, nós, os padres, cuidavamos da escola dos meninos. Depois, fazíamos giros pela floresta, com segurança.


A Guerra de 1939 – Mobilização



Três irmãos no Gabão: Marcel, Marie Gabrielle e Renê
Voltei à Europa em 1939, no momento em que a guerra começava. A guerra surpreendeu-nos na Guiné Inglesa, em Freetown. O comandante advertiu-nos, o Padre Viril e eu, que éramos dois amigos de infância. Ele nos disse: “Creio que vai ser a guerra”. E, com efeito, a guerra foi declarada. Naquele momento, voltamos ao porto de Freetown, para camuflar o navio, para que ele não tivesse luzes, e pudesse escapar dos submarinos que viessem torpedeá-lo. Voltávamos à Europa. Em Dakar, esperamos algum tempo e, depois, fomos conduzidos em comboio. Dois ou três navios de guerra acompanhavam cinco ou seus de passageiros para protegê-los, eventualmente, contra os ataques de submarinos. Já tinham afundado navios nas costas da Mauritânia, depois da declaração de guerra, navios de passageiros.

Chegamos sem transtornou em Bordéus, mas como estávamos em guerra, fomos mobilizados. Passado um mês, foi preciso que eu partisse de novo para a África, como soldado! Tive, apenas, tempo de ver meus pais durante alguns dias, e também meus irmãos e irmãs que estavam lá.


Retorno à África – Desmobilização

Precisei voltar a Bordéus e embarcar novamente num navio, acompanhado, ainda, de navios militares, até Dakar. Depois, o navio prosseguiu, até Libreville. Lá, fui desmobilizado.


Missão em Donguila

Fui designado para Donguila, numa missão na selva, por Mons. Tardy. E lá, era como se a guerra não existisse, mas, fui de novo mobilizado, enviado ao Chade, etc., viagens inúteis. Fomos reunidos, em seguida, no Gabão. Sofremos muito, porque ocorreu a invasão do Gabão pelas tropas do general de Gaulle, ajudado pelos ingleses, o que trouxe ao Gabão “bagnards” e comunistas. Foi lamentável; isso deu um exemplo péssimo aos indígenas, que viram os franceses lutar entre si. Sim, foi lamentável. Até mesmo Mons. Tardy foi preso no navio mandado pelo general de Gaulle. Preso a bordo durante algum tempo. Foi preciso que fizesse tratativas para ser solto, etc. Coisas inacreditáveis que, evidentemente, escandalizaram esses pobres pretos. Não foi um bom exemplo e não facilitou o nosso ministério.


Outras missões – Nova designação

Num dia, estava aprontando um giro, numa pequena embarcação, com algumas crianças, - um barquinho a motor, para visitar os vilarejos – quando vi chegar uma canoa de muito longe. As crianças têm bons olhos, eu não a reconheci, mas elas me disseram:
-Ah! Padre, aquela não é uma canoa da missão. É uma canoa que vem da missão.

E eu disse:
-Da missão? Por quê? O que está havendo? O que eles vêm fazer? Há novidades?
-Ah! Sim, é certo, é uma canoa da missão, é isso mesmo.

E a canoa se dirigiu para perto de nós Acostou...
-Meu Padre, tenho uma carta urgente que chegou para o senhor, etc.

Ai, ai, ai! Estávamos em 1945, perto do fim da guerra, as comunicações foram novamente restabelecidas, e era o famoso Padre Laurent, o Abbé Laurent, que esteve comigo no noviciado, que se tornara Provincial da França, e que pedia insistentemente a Mons. Tardy, que de boa vontade me dispensasse para que eu assumisse o cardo de Superior do Seminário de filosofia de Mortain! Ai! Ai! Ai! Oh! Eu chorava... Ah! Eu não queria mais voltar à Europa, minha mãe estava morta, meu pai num campo de concentração, meus irmãos e irmãs, esses, estavam bem. Eu, eu queria ficar no Gabão definitivamente, sem jamais retornar à França. Oh! Asseguro a vocês que aquilo foi para mim uma enorme, enorme provação: “Eis que me vejo, agora, obrigado a deixar o Gabão!”.


Retorno à Europa

Então, as etapas se sucederam. Foi a etapa do Gabão que terminou: treze anos de missão no Gabão. Daqui para frente, uma pequena estada na Europa. Parti, portanto, do Gabão, em 1945, no fim da guerra. Os primeiros aviões militares que vieram retomar o contato com as colônias, retiraram, nas primeiras viagens, as pessoas mais velhas, adoentadas, ou que tinham razões particulares para sair. As autoridades da Congregação, conseguiram embarcar-me num desses primeiros aviões que partiram de Libreville rumo à França. Agora, gastava-se seis ou sete horas para alcançar o Gabão mas, daquela vez, mesmo de avião, gastávamos três dias... A primeira etapa até Donala, a segunda, até Kano, no norte da Nigéria, e a terceira etapa Argel, depois, Argel-Paris. Os aviões não viajavam à noite e eram pequenos aviões que voavam muito lentamente. Eu parti com um dos meus confrades, que estava um tanto doente, e, assim, voltamos à França.


Superior no Seminário de Mortain

Lá, evidentemente, recebi a designação para o superiorato do escolasticado de Mortain. Escolesticado dos Padres do Espírito Santo. Mortain era uma edificação muito bonita, um tanto artística, uma velha abadia do século XI, parecida com a de Ruffec, menor, um pouco mais estreita, mas também bela, com bonitos transeptos, inteiramente reconstruída pelas Belas Artes. Era absolutamente magnífica, dotada de uma casa que tinha sido, noutros tempos, o pequeno seminário da diocese. Tinha sido desinfetada, e, durante a guerra, serviu para recolher feridos, doentes. Depois foi gentilmente entregue à Congregação dos Padres do Espírito Santo, para ser o escolasticado de filosofia.

Comportava cento e dez alunos nos dois anos de filosofia. Cinqüenta e cinco alunos por ano, o que era muito, magnífico naqueles tempos. Gostaríamos muito de ter o mesmo. Havia, certamente, um corpo de professores, professores de filosofia e de todas as matérias anexas. Eu próprio dirigia e dava, à noite, conferências espirituais. Dessas conferências, saíram livretos que mandei reproduzir. Passei dois anos lá, muito diferentes daqueles do Gabão, sem dúvida, porém entre jovens, bons jovens que saíram do noviciado, que estavam em conseqüência, cheios do zelo do noviciado, preparando-se para seguir para o escolasticado de teologia, que se encontrava em Chevilly-Laure, bem próximo a Paris.


Roma chama, o episcopado

No final do segundo ano, no mês de junho, o direitos adjunto veio ao meu encontro e me disse:
-O superior geral nos chama ao telefone.

Atendi, e Mons. Lê Hunsec me disse:
-Sr. Padre, eu vos informo, vós estais... vós estais nomeado Vigário Apostólico de Dakar.


Vigário Apostólico de Dakar! Isso quer dizer, Bispo de Dakar.


 Se ele tivesse dito estais nomeado Vigário Apostólico do Gabão, - eu não tratei de nenhuma maneira, de ser Vigário Apostólico ou de ser bispo, seja como fosse, não busquei, na verdade, nada disso -, eu teria compreendido. Do Gabão saí. Aos treze anos de missão, conhecia os padres, conhecia a língua, conhecia bem as pessoas. Teria entrado imediatamente em contato pleno, e sem dificuldades, com os padres e toda a comunidade católica do Gabão.

Mas, em Dakar! Quando passava por Dakar, só via muçulmanos e uns poucos padres, poucas obras católicas. Ir para uma diocese como aquela, onde não conhecia ninguém, nem os padres que lá estavam, nem as congregações de irmãs: as Irmãs de Cluny e as Irmãs do Imaculado Coração de Castres. Era preciso travar conhecimento com todos, viver no meio dos muçulmanos, muito mais numerosos. Em três milhões e meio de habitantes, havia milhões de muçulmanos, cerca de cinqüenta mil católicos, e, o resto, era animista. Enfim, não tinha escolha. Mons. Lê Hunsec disse: “Sois religioso, deveis obedecer! Não tendes escolha, não podeis responder sim ou não. Deveis responder sim”. Disse a mim mesmo: “Que posso fazer?”.

Fui, então, a Paris, apresentar-me ao Superior Geral, precisava decidir quem me consagraria bispo. Para mim, no mínimo, era uma grande mudança. Sabia bem que ser missionário, ou mesmo superior de seminário, era ter contatos diretos com a população, com os jovens, com os fiéis. Bispo, você fica num plano superior, não tem mais contato senão com os missionários, mas, nada de contatos diretos com a população. E depois, o simples fato de ser bispo põe uma distância entre as pessoas: “Tendes visto... Monsenhor, Monsenhor! Ide receber o bispo!...” Oh! Passa-se a viver como se estivesse num pedestal, não é mesmo? Não se têm mais relacionamentos... e, ao mesmo tempo, as maiores responsabilidades, sem dúvida: a carga espiritual de toda uma diocese, não é fácil.


A Sagração EpiscopalPediu-se ao Cardeal Liénart, considerando que ele era o bispo de Lille, o bispo que me ordenara padre, se aceitaria fazer a sagração. O Cardeal aceitou, e foi decidido que a sagração seria em 18 de setembro, na minha paróquia natal de Nossa Senhora dos Anjos, de Tourcoing. No discurso de praxe, fiz alusão à formação que recebi do Padre Lê Floch, no seminário Francês: como agradecia ao Padre Lê Floch de me ter passado princípios sólidos com respeito à fé, de me ter ligado a Nosso Senhor até à morte, e de me ter feito compreender os dramas que a Igreja atravessava, os erros contra a Verdade, contra Nosso Senhor. Bem! Isso não se passou a sós. Pois é, nada me foi dito naquele momento, mas o Cardeal tinha escutado e não se encontraria ninguém melhor para ir contar essas coisas ao Núncio em Paris, que era Mons. Roncalli, o futuro para João XXIII.


Vigário Apostólico em Dakar

Então, segui viagem – acho que foi em meados de outubro -, para Dakar, onde as autoridades, os Padres, me fizeram uma grande recepção. E me vi encarregado dessa diocese onde acreditava, pensava me devotar como pudesse, conforme minhas possibilidades. Uma das primeiras realizações que pensei, porque faltava com certeza, foi a fundação de um colégio para os rapazes. Aí, todas as famílias, em seguida vieram ter comigo:
-Monsenhor, espero que façais alguma coisa para que tenhamos um colégio para os nossos rapazes. Temos algo para as moças, mas não temos ainda o que faz falta para os rapazes.
-Está certo, disse, é surpreendente que não haja um colégio para os rapazes.
-Então, saí em campo, e, um ano depois, viajei novamente para a França, a fim de encontrar-me com os Padres Maristas, com o padre Thomas, em particular, superior da Província da França, que se encontrava em Saint-Brieuc.


Delegado Apostólico


 Quando cheguei à Casa Mãe, em setembro de 1948, o Superior Geral me esperava. Ele foi até à portaria:
- Vinde, Monsenhor, vinde, tenho algo para lhe dizer.
- O que há... O que desejais de mim ainda?
- Vinde, vinde, a um parlatório.

E disse-me:
- Não digais não! Vós fostes nomeado Delegado Apostólico pelo Papa.
- Que história é essa? Sou Vigário Apostólico de Dakar, sou bispo da diocese de Dakar. Delegado Apostólico? O que significa?
-Sereis encarregado, junto ao Papa, de todas as dioceses de língua francesa na África. Será preciso que façais contatos. É, contudo, muito simples, o Papa vos receberá no mês de outubro. É preciso irdes a Roma. Sereis recebido pelo Papa e, depois, ireis à burocracia de Roma. Dirão o que tendes a fazer.
-Ai! Meu Deus! Não se pode deixar-me tranqüilo. Viajar, percorrer toda a África! E as outras congregações? Os Padres Brancos, os Padres Jesuítas, os Padres das Missões Africanas de Lião, Vão ficar com ciúmes de que seja um Padre do Espírito Santo, Delegado Apostólico, que os vá visitar! Calma...!
-Não vades recusar! É uma honra para a congregação, nós nunca tivemos um Delegado Apostólico!

Respondi:
-Sim, percebo claramente... (Oh! É muito bom... Meu Deus, meu Deus...).

Então, viajei, fui ver o Santo Padre. O Santo Padre recebeu-me como um verdadeiro padre, e, imediatamente, senti que havia uma comunhão de pensamentos, uma comunhão de desejos de dilatar o Reino de Nosso Senhor, e de viver, verdadeiramente, a vida cristã e a vida sacerdotal... Verdadeiramente fiquei emocionado em essa visita ao Papa Pio XII.

Conversamos, ele me disse que confiasse na tentativa de desenvolver a evangelização por todo o território africano, que eu não teria, ficava claro, de dirigir, mas visitar. Deveria prestar contas do que visse, do que soubesse, dar sugestões para o desenvolvimento da evangelização, encorajar os bispos, e, também, constituir as conferências episcopais nos diferentes territórios. “Enfim, acrescentou, tudo isto lhe será dito pelo cardeal Prefeito da Propaganda, que devereis visitar, por certo; ele vos dará ordens muito precisas a esse respeito”.

Fui ter com o Cardeal Prefeito da Propaganda, que me explicou a situação, com precisão. “Veja, tendes quarenta e seis dioceses para visitar; verificar se não é necessário multiplicar, dividir essas dioceses, sagrar novos bispos... Quando houver bispos que se resignem ou morram, sereis encarregado de apresentar os nomes a Roma para a nomeação dos bispos, etc. Isso implica em preparar dossiês. Entrareis em contato com os superiores gerais das Congregações Religiosas, também, a fim de saber quais seriam os indivíduos mais aptos para o episcopado, etc, etc, etc”.

Meu Deus, meu Deus, eu que pensava ficar bem tranqüilo na diocese de Dakar, ocupando-me dos afazeres da minha diocese... “Tereis um auxiliar”, disseram-me. Tive um auxiliar, com efeito, dois anos depois, em 1950, Mons. Guibert, que sagrei na catedral de Dakar, e, que, evidentemente, ajudou-me um pouco na diocese, porque eu estava, praticamente, sempre ausente. Vejam bem, vocês, que era preciso que eu viajasse constantemente – quarenta e seis dioceses, não era pouco -, e, depois, era tudo longe: Madagascar, Ilha da Reunião, Djibuti, Marrocos, toda a África Equatorial Francesa, Camarões. Para todas essas viagens eu precisava de semanas, pensem bem.


Desenvolvimento das Missões

Depois, quando havia um bispo a nomear, era preciso que eu fosse ver o Superior Geral da Congregação, e, assim, ir até Roma, onde todos eles se encontravam. Era necessário discutir o caso e, sobretudo, não esquecer de ir à Congregação da Propaganda. Deveria, assim, estabelecer a Delegação apostólica, que é um cargo diferente do da diocese.

Esforçava-me, também, em atender aos pedidos dos bispos que desejavam receber irmãos docentes ou religiosos para sua diocese: importava o Bispado, de um lado, e, a Delegação Apostólica, do outro. Então, buscava ligar-me com os superiores gerais das Congregações Religiosas, a fim de encorajá-los a mandar irmãs para a África, lá onde elas me tinham sido pedidas. Eu lhes apresentava propostas. Foram anos muito, muito, muito trabalhosos... Mas, devo confessar, eu não esperava que esses anos fossem tão encorajantes, diria até mesmo entusiasmantes, porque assisti, nos territórios de todas aquelas dioceses, o desenvolvimento das missões, a partir de 1946, entre a guerra e o Concílio, portanto, no espaço de uma boa dezena de anos, quase quinze.

Houve um desenvolvimento extraordinário das missões. Extraordinário! Foram construídos seminários, os padres se multiplicavam. Muitas Congregações Religiosas vieram e, quando havia padres, puderam ser enviados como missionários. Fundaram-se, multiplicaram-se as missões, os conventos, instituições de toda sorte. Encontraram-se irmãs para os dispensários, para os hospitais. Fiz trazer as Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria para atender os hospitais, as Irmãs de São Tomás de Villeneuve, as irmãs Hospitalares... Muitas irmãs docentes vieram para a África ajudar. Um magnífico desenvolvimento, extraordinário. Era verdadeiramente estimulante. Foram grandes anos.

Todos os anos eu ia visitar o Papa Pio XII, o que me permitia travar contatos com muita gente da Cúria Romana. Estava obrigado a visitar, tanto a Congregação dos Religiosos, quanto a Congregação da Propaganda, do Santo Ofício, a Secretaria de Estado. Delegado Apostólico, eu dependia, como os núncios, da secretaria de Estado, pelo qual me tinham dado um código secreto para correspondência. E, depois, era preciso que eu fizesse relatórios, que apresentasse a situação das dioceses e, tudo isso, me punha em contato com muitos cardeais, monsignori..., enfim, com todo o mundo da Cúria Romana.

Sentia muito bem que havia quem me encorajasse, quem me apoiasse, particularmente o Papa, felizmente. O Papa me encorajava muito. Foi um apoio considerável, o principal, é evidente. Contei, também, com o apoio do Cardeal Tardini, da Secretaria de Estado. Porém, havia certo número, entre os quais Mons. Montini (o futuro Papa Paulo VI), Mons. Martin, que estava, na época, na Secretaria do Estado, e outros monsignori da propaganda, que julgavam que eu lhes tinha tomado um, por assim dizer, bom lugar. Delegado Apostólico! É quase um núncio! E isso sem ter passado pela hierarquia normal de secretário de nunciatura, secretário disto, secretário daquilo... sem ter feito carreira! Você não passou, em Roma, pela Academia dos Nobres, que forma os futuros diplomatas, os núncios... De improviso Arcebispo de Dakar e pronto, pam, Delegado Apostólico! Você é um intruso, um intruso! Você veio tomar um lugar que gostaríamos de ocupar, nós mesmos. Então, havia uma espécie de desconfiança.


Fim da Delegação Apostólica, Arcebispo de Dakar

Cheguei ao fim do meu mandato de Delegado Apostólico em 1959. O Papa Pio XII morreu em 1958, ora, foi o Papa Pio XII que tinha me nomeado e, posso dizer, apoiado firmemente, porque eu o visitei todos os anos. Vir a Roma e poder vê-lo era, para mim, um grande estímulo, uma grande consolação. Era, verdadeiramente, um homem de Deus, da Igreja.

Quando eu era Delegado Apostólico, e passasse por Paris, revi, algumas vezes, Mons. Roncalli na nunciatura. Ele me convidava e queria, com certeza, ver-me a cada passagem. Então, ele me havia transmitido esta reflexão: “Eu, eu não estou de pleno acordo que arcebispos como vós, que têm uma diocese, tenham ainda mais o cargo de Delegado Apostólico. Parece-me que isso não é desejável, não estou de acordo com o Papa Pio XII”.

Isso não era da minha alçada, não é mesmo? Mas, ele me fez essa reflexão. Então, quando ele foi eleito papa, em 1958, evidentemente, disse a mim mesmo: “Está bem! Isto não vai durar muito, receberei, seguramente, de Roma, um convite: Deixai um cargo ou outro”. E isso não faltou.

Menos de um ano passado, recebi uma carta de Roma, dizendo-me que deveria escolher entre o Arcebispado de Dakar (portanto, a diocese de Dakar), e a Delegação Apostólica, considerando que os dois cargos seriam separados. Respondi: “Não cabe a mim escolher, posto que não fui eu quem me nomeou nem Arcebispo de Dakar, nem Delegado Apostólico, em conseqüência submeto-me às autoridades que fizeram essas nomeações; que elas me digam se devo permanecer  Delegado Apostólico ou Arcebispo de Dakar.”

Aí, a resposta foi bem romana: “Desde que escolhestes ser Arcebispo de Dakar, em conseqüência permanecereis Arcebispo de Dakar, não sereis mais Delegado Apostólico”.

Ah! Eles tiveram a audácia!”, pensei. Guardo, ainda, a carta, a resposta de Roma. Não quiseram endossar a responsabilidade, não é; então era uma coisa bem simples: atribuir-me a escolha, e dizer: “já que escolheste o Arcebispado de Dakar”... Seja!...

(...) Ficou, portanto, entendido, que eu permanecia no Arcebispado de Dakar, mas que não era mais Delegado Apostólico. Continuei como Arcebispo de Dakar de 1959 a 1962, mas não tinha mais o encargo de todas essas dioceses e de todas essas delegações apostólicas do passado.

Meu auxiliar, Mons. GUIBERT, não sendo mais absolutamente necessário, posto que agora eu tinha o tempo todo para me ocupar da diocese de Dakar, foi nomeado bispo da Ilha da Reunião.


A demissão do arcebispado de Dakar

Os acontecimentos políticos tornam-se mais rigorosos, sempre em quantidade maior, após a guerra. Nas colônias, um vento de independência soprava, geralmente vindo dos Estados Unidos, independência favorecida mesmo por muitos membros do clero. Independência de todas as maneiras: independência política, econômica, religiosa. Do ponto de vista religioso, independência queria dizer: substituir os bispos europeus por bispos africanos, simplesmente. Eu percebia, em Dakar, como os outros bispos também percebiam, que pouco a pouco nos tornávamos indesejáveis, que deveríamos deixar os lugares para os africanos... sem problemas, se Roma concorda... e sentia-se que era, igualmente, desejo de Roma.

Ouvi, dito por Mons. COSTANTINI, na Congregação da Propaganda, esta frase, que me pareceu inverossímil, mas, na minha opinião, não de todo falsa. Ele disse: "Se acreditais que são os bispos europeus que converterão, de verdade, a África e esses países de missões, estais enganados; é preciso que haja bispos africanos". "Que haja bispos africanos", é bom, não sou contra os bispos africanos, mas ainda falta que eles sejam capazes, ainda falta-lhes os meios para prosseguir esse apostolado.

Então, quis-se precipitar as coisas, senti isso... em meados de 1962. Como eu fazia parte da comissão preparatória do Concílio, era necessário que fosse a Roma freqüentemente, muitas vezes no ano. Aproveitei para escrever uma carta à Propaganda, dizendo: “Aí está, se desejais pôr um bispo africano no meu lugar, estou pronto para pedir minha demissão, e voltar à Europa. Não tenho dificuldades”. Então, eles disseram: “Está bem, aceitamos vossa demissão e vós voltareis à Europa”.

Pedi, ao mesmo tempo, de viva voz, poder aguardar por seis meses, antes de receber uma designação qualquer, se eles quisessem nomear-me para algum lugar. Com efeito, haveria nos Padres do Espírito Santo um Capítulo Geral, em 22 de agosto de 1962. Ora, segundo conversações que mantive com meus Confrades, era possível - eu não desejava -, mas era mesmo provável que eu seria eleito Superior Geral. Tinha a intenção, caso fosse realmente eleito, de aperfeiçoar meu inglês, que sabia muito pouco, porque tínhamos, na congregação, imensos territórios de língua inglesa, paróquias demais na América, etc. Nesses países, tínhamos um ministério enorme. Como eu não falasse corretamente o inglês, esse retardo facilitaria minha tarefa.

“Não, não, não, não pode, não pode. Deveis ser bispo na França...”. Calma! Quando soube a opinião dos bispos da França sobre mim! Eles me temiam, de certa maneira, porque eu era o bispo, por assim dizer, tradicionalista, integralista, desde então o era; porque tinha apoiado a posição de Jean OUSSET.

Jean OUSSET tinha fundado um movimento, "La Cite Catholique", um movimento de leigos, na França. Eu fazia freqüentes visitas a Solesmes, e, um dia, o prior de Solesmes me disse: “Monsenhor, devereis - eu estava ainda em Dakar - apoiar essa brava gente, eles são muito corajosos, muito fervorosos, são militantes e se esforçam estabelecer ligações com os bispos, mas os bispos desconfiam deles, eles não são, na verdade, apoiados pelos bispos. Vós os ajudaríeis se fosseis vê-los e dizer-lhes que estais de acordo com ele, que os ajudareis no seu movimento para restaurar a Cidade Católica”.

Então, fiz contatos com eles. Mais tarde, publicaram um livro "Pour qu'il règne" (sua regra, de certa forma), um livro grosso, um belo livro, que valeu a pena ser lido, ainda agora. Eu o li, algumas vezes, em Ecône, porque é um livro magnífico, um livro de fé na cristandade, em Nosso Senhor, no reino social de Nosso Senhor, um livro magnífico! Perguntaram-me se poderia fazer um prefácio.

Mandei uma carta, fiz o prefácio. Furor dos bispos da França que eram contra esse movimento da “La Cité Catholique”: - Ah, aí está! Era preciso ainda que Mons. LEFEBVRE se metesse nos nossos assuntos e que viesse escrever uma carta para “La Cité Catholique”.

Não fui bem acolhido. A melhor prova é que João XXIII, querendo firmemente que eu ocupasse uma diocese na França, deveria, sendo eu arcebispo, dar-me um arcebispado. Ora, havia juntamente um arcebispado que estava vago, o de Sebi. Eu poderia muito bem ser arcebispo de Sebi, que não é uma diocese excelente. Porém, os bispos da França impuseram uma condição: “Se tendes, absolutamente, que nomear Mons. LEFEBVRE bispo na França, vos pedimos”:

   - Em primeiro lugar, que ele não faça parte da assembléia dos cardeais e arcebispos.
  Naquela época, as conferências episcopais, que atualmente reúnem todos os bispos existentes, eram, somente, a Assembléia dos Cardeais e Arcebispos, e aquela, de certo modo, dirigia o episcopado francês. Então, normalmente, sendo arcebispo, eu teria que fazer parte dessa assembléia, estava claro.

   - Em segundo lugar, que ele não tenha um arcebispado, mas apenas uma pequena diocese.

   - E, terceiro, que isso não abra um precedente.

Três condições! Li as cartas dos bispos enviadas ao Papa. Eis aí! Eis como eles acolhiam seu confrade no episcopado. Vejam a caridade episcopal dos bispos da França. Bolas! Para mim isso dá no mesmo, isso me é completamente indiferente! Não fazer parte da Assembléia dos Cardeais e Arcebispos, não importa! Ademais, uma pequena diocese, ora! Uma pequena diocese está muito bom. Empresto uma frase de São Francisco de Sales: “Uma só alma é uma grande diocese...” Então, disse: “Bem, tenho duzentos e vinte mil almas, isso faz, certamente, uma grande diocese, está bem”.


Bispo de Tulle 


Fui, então, nomeado bispo de Tulle! Não conhecia ninguém, ninguém da diocese de Tulle, era uma diocese perdida no Maciço Central. Eu não sabia exatamente onde se encontrava a cidade de Tulle. Enfim! Aí era necessário que eu tomasse contato, bem firme, que fosse ver os vigários gerais. Lá encontrei o velho bispo, Mons. CHASSAGNE, a fim de saber qual era a situação na diocese. Ele pediu sua demissão. Um bispo muito santo, um bom bispo que me recebeu gentilmente. Os vigários gerais me receberam amavelmente também.

Tudo foi bem. Não tive dificuldades. Já estava um pouco habituado a dirigir, quando fosse o caso, uma diocese. Porém, infelizmente, essa pobre diocese - como muitas outras dioceses da França -, se encontrava num estado de estrago inacreditável, a degringolada era geral: crise de vocações, as irmãs abandonavam os hospitais, ou fechavam as escolas católicas; diminuíam os padres, aumentavam o número de paróquias com um só padre, quase nenhuma vocação no seminário, três ou quatro vocações para a diocese...

Era uma diocese que morria. Mas, era possível fazer-se qualquer coisa. Esforcei-me a fim de reunir os padres, ir vê-los, estimulá-los e lhes dizer: “nem tudo está perdido, vamos cuidar de fundar escolas católicas, é nelas que encontraremos as crianças para as vocações. Tentaremos apoiar a única Congregação diocesana de freiras, fundada na diocese. Elas se ocuparão de muitas paróquias - de um pouco daquilo que já fazeis, os dispensários, as pequenas escolas primárias, ajudando os padres nas paróquias. Elas prestam um serviço incrível, elas são amadas pela população”. Aí, encorajava os padres lhes dizendo: “Mas, será necessário mandar vocações, mandar meninas para essa Congregação”. Porém, não fiquei muito tempo... nada mais que seis meses. 


Superior Geral da Congregação dos Padres do Espírito Santo 

Aconteceu o Capítulo Geral em 22 de agosto e nos dias seguintes, em Chevilly - Larue. Primeiro escrutínio... Eram necessários dois terços dos votos. Um bispo não pode ser nomeado Superior Geral apenas por maioria absoluta. Não bastava ter somente cinqüenta e um por cento dos votos, precisava que eu tivesse dois terços, ou seja, sessenta e sete por cento. Ora, no primeiro escrutínio eu estava a dois por cento do necessário, já eleito.

Então, levantei-me e disse: “Escutai, por favor, deixai-me na diocese de Tulle. Lá cheguei faz seis meses, estou começando a conhecer os padres, as pessoas, as obras da diocese... Eles passaram dois anos sem bispo, se vão ficar sem bispo, mais uma vez... Deixai-me na diocese de Tulle, foi o Papa João XXIII que me nomeou...” Segundo escrutínio...setenta por cento, setenta e dois... Oh! O que posso fazer?

Vejam! Como o bom Deus me guiava a cada golpe! Sempre contra meus desejos! Bem! Tentei receber esse de boa vontade e depois, com coragem, e acredito que essa é uma lição que gostaria que vocês tomassem como exemplo: Quando se faz a vontade de Deus, e não a nossa, Deus abençoa. Depois se acaba gostando da tarefa que o bom Deus nos deu. Não se assustar.

Faltava, ainda, a aprovação do Papa. Considerando que eu era o bispo do Tulle, a Congregação não poderia me retirar da diocese sem a autorização do Papa, sem dúvida... Foi necessário telegrafar ao Secretário Geral para que ele, por sua vez, enviasse este telegrama: “Peço confirmação da eleição de Mons. LEFEBVRE como Superior Geral dos Padres do Espírito Santo”.

Então, o Papa João XXIII respondeu: “Abençôo a eleição de Mons. LEFEBVRE, Superior Geral Padres do Espírito Santo”.

Bem! Tulle acabou. Superior Geral dos Padres do Espírito Santo! No momento da abertura do Concílio, vejam! Agosto de 1962, o concílio começou em outubro de 1962. Então! Em plena confusão! A terceira guerra, como digo. Suportei a Guerra de 1914 - 1918, a guerra de 1939 - 1945 e a guerra de 1962 - 1965, do Concílio... E essa foi a pior no meu julgamento! A pior, a que mata as almas. Ela não mata somente corpos, mata as almas!

Então! Eis-me Superior Geral dos Padres do Espírito Santo. Foi com os Padres do Espírito Santo que estudei em Roma. Mas, o seminário Francês não era um seminário da Congregação, onde se formavam seus futuros membros; terminados os estudos, os seminaristas voltavam às suas dioceses. Se eu conhecia tão bem a Congregação, não conhecia, por outro lado os Padres do Espírito Santo e, não teria que fazer um ano de noviciado antes de partir, em seguida, em missão.

Mas, enfim, pouco importa, tinha muito bons assistentes. Tinha seis assistentes, porque havia cinco mil e duzentos membros na Congregação, e sessenta bispos. Sessenta bispos na Congregação que tinha dioceses na África, na América do Sul, nos Estados Unidos, no Canadá. Tinha-se bispos um pouco por toda parte, mas não chegava a ser no mundo inteiro, porque a congregação dos Padres do Espírito Santo era destinada à evangelização dos negros para justificar nossa presença. É por isso que a Congregação tinha cinqüenta e duas paróquias nos Estados Unidos, particularmente na Luziânia.

Tínhamos até uma no famoso bairro de Nova York, o bairro do Harlem, onde a polícia não ousava entrar!... os táxis não entravam! Quando você precisava ir a esse bairro, o taxista parava antes da entrada e lhe dizia: “Agora, você vai a pé, nós não entramos nesse bairro”. É assombroso. Mas, nós mantínhamos uma paróquia lá. Agora, parece que alguns padres, creio que dois padres, ainda lá vão até o hospital que fica a quinhentos metros, quando ocorrem acidentes.... e os acidentes acontecem a todo momento. Os negros, naquele lugar, são porto-riquenhos, gente que vem de toda a parte, alguns se matam entre si, se ferem, dão facadas, durante as brigas nos cafés, e assim por diante... Bem, então, são levados ao hospital e, algumas vezes, quando declaram ser católicos, vai-se buscar o Padre, porque podem morrer, e é preciso lhes dar a Extrema Unção. Num trajeto de quinhentos metros, os Padres andam a pé. Como são padres, e vestem batina, são respeitados, não sendo roubados ou atacados. Atualmente, são obrigados a pedir um jipe da polícia para protegê-los. Inacreditável, inacreditável!

Então, vejam! A Congregação do Espírito Santo é muito, muito estendida, imensa. Ocupando-se especialmente dos negros, ela está estendida por não poucos países, nos Estados Unidos, como já disse, depois no Canadá. A África evidentemente, era o campo de ação mais importante para os missionários, nos países de língua francesa, de língua inglesa, de língua portuguesa, na África, na África do Sul. Encontrava-se, também, nas Antilhas, na Martinica, em Guadalupe, na Trindade, na Guiana Francesa, na América do Sul, na Amazônia, no Sul do Brasil, no Estado de Santa Catarina, no Estado do Rio, e por aí vai... Enfim, onde houvesse negros.

Por certo, a Europa, - e também o Canadá com a América -, era a região onde se podia recrutar vocações, manter casas, mais particularmente na França, posto que a Congregação fora fundada pelo Padre LIBERMANN, um judeu alsaciano, muito curioso, mas foi assim.

Tinha, também, uma província na Bélgica, uma província na Inglaterra, na Irlanda, na Alemanha, na Suíça. Não havia província na Itália, somente alguns italianos, não muitos. Os italianos preferem as Congregações italianas. Muito família... eles são muito "família". Quando um italiano se muda, quando vai para os Estados Unidos, para a China, ou não importa onde, ele leva todos os sobrinhos, os primos, toda a família. Não trabalha com as pessoas do país, mas traz toda a família para trabalhar... são muito "bairristas"... Para uma Congregação que não foi fundada na Itália, é muito difícil se implantar no país. Chegou-se a ter não mais que suíços alemães. Na Suíça romande, (onde se fala o Francês N.d.T.) sim, mas na Suíça alemã, impossível de se implantar. Seria o mesmo para a Fraternidade?

Embora não se tenha feito nada de especial, suíços alemães vieram e, em seguida aos suíços alemães, os italianos. Há italianos... pelo menos três ingressaram neste ano em Flavigny, é maravilhoso. Graças ao Bom Deus! A Congregação do Espírito Santo era, pois, muito importante, sobretudo com todos os seus bispos, mas eu tinha sido nomeado justamente quando o Concílio começava, e isso foi, evidentemente, um acontecimento imenso dentro da vida da Congregação. E eu tinha ao mesmo tempo, desde o início, no cargo de Superior Geral, de mudar a Casa Mãe. Esta se encontrava, então, a rua LHOMOND, em Paris, e, naquele momento, ela estava junto com a Casa Provincial, o que causava, freqüentemente, pequenos transtornos... Então o Capítulo Geral insistiu junto ao Superior Geral para que transferisse a Casa Mãe para Roma, como muitas outras congregações religiosas.

Foi, portanto, durante os dois primeiros anos que deixamos a Casa Provincial e nos instalamos numa outra casa em Paris, rua dos Pirineus, e, de lá, dois anos depois, fomos para Monte Mário, em Roma, onde a Casa Mãe se encontra hoje. Tudo isso, evidentemente, não deu pouco trabalho, depois o Concílio, além das visitas. Certamente, era preciso que eu visitasse todos esses países, todas essas regiões. Era, com certeza, um trabalho considerável.


O Capítulo Geral Extraordinário e a demissão

Após o Concílio, o Papa exigiu que todas as congregações Religiosas fizessem um Capítulo Geral Extraordinário, a fim de adaptar suas constituições ao Concílio. Era bem vago, nada fácil e perigoso, muito perigoso. Em 1968, todas as Congregações, inclusive a nossa, deveriam reunir esse capítulo. Tendo sido eleito por doze anos, isto é, de 1962 a 1974, nada me obrigaria, em 1968 a demitir-me: eu deveria permanecer como Superior Geral ainda por seis anos. Porém, deparei-me com uma verdadeira revoluçãozinha dentro da congregação: membros do Capítulo Geral, principalmente os holandeses, manifestaram seu desejo de que as constituições não fossem mais aplicadas, antes mesmo que fossem modificadas, e, que as mudanças fossem aprovadas pela Congregação dos Religiosos. Mesmo com esse Capítulo Geral, as Congregações deveriam propor a mudança de constituições à Congregação dos Religiosos, que a aprovaria ou não. Mas, lá, não! Mesmo sem nenhuma autorização da Congregação dos religiosos, queriam que o capítulo fosse presidido por um triunvirato. Eu, que era o Superior Geral, não presidiria o Capítulo, mesmo considerando que, nas constituições, estivesse bem regulado que cabia ao Superior Geral a direção de todos os trabalhos do Capítulo Geral.

Quando soube desse desejo, quis fazer uma votação e, se a votação fosse favorável a esse triunvirato, dessa mudança radical no Capítulo Geral, bem... veríamos ... Resultado: houve uma maioria a favor do triunvirato, impondo, praticamente, a eliminação do Superior Geral: seria o triunvirato que conduziria o Capítulo, o qual três Padres para dirigir a reforma da Congregação conforme o espírito do Concílio. Senti, perfeitamente, que tudo seria bagunçado, completamente mudado, que um espírito novo se instalaria na Congregação, espírito que eu não podia admitir, contra o qual lutara no Concílio. E pensar que, como fosse ainda o Superior Geral, teria de assinar todos esses atos que, no fundo, consagravam a demolição da Congregação, e, que na história da Congregação se diria que foi Mons. LEFEBVRE quem, praticamente, por sua assinatura, era o responsável: isso não poderia aceitar.

Então, após votar, como de qualquer maneira eles quisessem tomar o meu lugar, fui embora, tomei meu carro, voltei à Casa Mãe. Antes, fui até a Congregação dos Religiosos para falar com o Cardeal Prefeito e perguntar a ele se estava de acordo com coisas como aquela, se era uma coisa admissível. O Cardeal ANTONIUTTI não estava; Encontrava-se em visita à América do Sul naquele momento, e foi o Secretário da Congregação, segunda pessoa depois do Cardeal, que me recebeu. Expus-lhe o caso: “Estais de acordo, ou não?” Ele respondeu-me: “Vós sabeis, depois do Concílio, é preciso compreender. Sobre o assunto, saiba que o Superior Geral da Congregação dos Redentoristas veio ver-me pela mesma questão, quis-se mudar... enfim... as pessoas que dirigem o Capítulo Geral... Então, aconselhei ao Superior Geral que fizesse uma viagem à América e depois...” Ele me aconselhava a fazer uma viagem à América, abandonar minha congregação, eu, o Superior Geral, abandonar o Capítulo Geral a si mesmo! Mas, isso é insensato, insensato.
 Disse para comigo: “Agora essa, não vou nem mesmo discutir com esse secretário. Se é assim, é inútil!”. Voltei para o carro. Segui para a Casa Mãe e redigi uma bela carta ao Papa, dizendo que me demitia diante do que me era pedido, face à situação que se desenvolveu na Congregação, e que não me sentia capaz de tomar a responsabilidade de semelhante transformação. Minha demissão foi aceita. Eu não era mais Superior Geral e não podia mais ficar na Congregação, num meio revolucionário.

Aquilo me era absolutamente impossível. Então, palavra de honra, procurei um endereço em Roma, onde pudesse me abrigar. E me refugiei nos padres lituanos, na Via Lituânia. Esses padres lituanos tinham um seminário e defronte ao seminário, do outro lado da rua, uma espécie de hospedaria, na qual ficavam os padres da Lituânia que vinham e, alguns padres residentes, que trabalhavam em Roma. Pedi se poderiam aceitar-me. Muito gentilmente, eles me acolheram.

Então, resolvi alguns negócios pessoais e instalei-me nessa hospedaria dos padres lituanos, da qual se ocupavam as irmãs alemãs de Santa Catarina. Essas irmãs têm grandes hospitais em Friburgo e alhures. São muito numerosas e aceitaram receber o encargo do seminário lituano e dessa hospedaria dos padres. Travei conhecimento com essas irmãs, muito gentis, muito dedicadas. Havia no meio delas algumas brasileiras, que vieram do Estado de Santa Catarina.

Eu me encontrava instalado lá; e, durante esse tempo, não tinha mais cargo. Mantive certas relações com os Padres que conhecia bem, no Capítulo Geral e no Conselho Geral. Mas, tudo tinha mudado, evidentemente, depois da minha partida.

A Congregação da Propaganda pediu-me que os ajudasse, cuidando da questão do catecismo na África. Fui, mas por breve tempo, porque depois... bem, vocês conhecem os fatos, não sei se vale a pena continuar com as conferências, pois chegou-se ao fundo...

Fui visitar esse seminário interdiocesano. O superior recebeu-me amavelmente. Ele me disse: “Monsenhor, recebemos estudantes leigos, queremos ainda alguns jovens seminaristas, melhor ainda se eles freqüentem a universidade. Não tem problema. Mas, saiba bem que aqui não há nenhuma formação especial para os seminaristas. Aqui é como uma pensão, eles fazem o que querem, se organizam como querem, podem muito bem ter um regulamento e segui-lo; podem, muito bem, praticar os exercícios de piedade entre eles, juntos, na capela... sem problemas. Mas, da nossa parte, não esperem nada. Nós os alojamos, alimentamos, mas não fazemos mais nada”.

Pensei: “Volto a encontrar a mesma situação da casa dos Padres do Espírito Santo. A liturgia oficial será, agora, uma liturgia nova, e, depois, tudo o mais será mudado... por isso, não vale a pena que eles vão para lá. Não há disciplina, podem sair não importa quando, até mesmo à noite. Isso não é possível! Não posso aceitar a responsabilidade da formação de seminaristas em tais condições”.

Que fazer? Tinha que se encontrar uma solução. Sabendo que eu me ocupava com seminaristas, o Padre Philippe, dominicano, o Sr. Bernard FAŸ, um leigo, ambos professores na universidade, o Abade d'Hauterive, e um outro leigo, também nosso amigo, que ensinavam em Friburgo, pediram para me visitar. Queriam conversar um pouco sobre essa questão da formação dos seminaristas. Eles se interessavam e indagaram se não haveria um meio de fazer qualquer coisa...

Então, fizeram-me ir à casa do Sr. Bernard FAŸ e insistiram comigo. Disseram-me: “Monsenhor, é preciso que façais algo, não podeis deixar esses seminaristas assim. Nós nos encarregaremos de vos mandar outros, não é difícil. Com certeza, conhecemos muitos outros que desejam ter uma formação séria”.

Respondi: “Estou com sessenta e cinco anos, é preciso recomeçar tudo!... Bem, gostaria muito de me interessar por esses seminaristas, quero muito encontrar o dinheiro para lhes pagar a pensão, quero muito orientá-los para que façam bons estudos, quero muito ajudá-los. Que encontrem um padre, um arrecadador que se dedique um tanto a eles; algo assim eu desejo! Mas, eu, agora, estou em Roma, não tenho intenção de deixar Roma. Não gostaria de empreender mais nada”.

Diante desse projeto, que não me atrai de todo, uma vez mais ainda foi a providência que me obrigou a ir em frente. Eu disse: “Bem! Escutai, é simples, vós insistis, será Mons. CHARRIÈRE quem decidirá. Conheço Mons. CHARRIÈRE, o bispo de Friburgo, vou visitá-lo. Se ele me encorajar, bem, verei se posso organizar alguma coisa para esses seminaristas”.

Mas, não era ainda, de modo nenhum, uma questão de se fazer uma Fraternidade: simplesmente, ocupar-me, de maneira mais particular, desses seminaristas.

“E depois, se Mons. CHARRIÈRE não estiver de acordo, então, não faço nada ou farei o que ele me disser”.

Fui visitar Mons. CHARRIÈRE e expus-lhe a questão.Ele me disse: “sim, sim, mas com certeza, vós sabeis, a situação é muito grave, vós vereis, as coisas vão piorar. Fazei, fazei, eu vos suplico. Buscai algo aqui na cidade, alugai uma casa, ponde lá vossos seminaristas e vos ocupeis deles. Sem isso, não terão formação. É preciso fazer alguma coisa por eles. Não se deve abandoná-los”. Está bem! Respondi: “considerando que sois a voz da Providência, vai se ver o que se pode fazer. Vou refletir, e depois buscar se se pode encontrar um provedor”.

Então, com nossos amigos de Friburgo nos pusemos à procura, para ver se poderíamos encontrar para alugar, um lugar na cidade onde pôr nossos seminaristas, a fim de que eles estivessem numa disposição mais de acordo com a formação que desejávamos lhes dar; uma verdadeira formação, uma formação de seminaristas com uma capela, com a Missa, com conferências intelectuais, com um regulamento, uma disciplina, etc, uma obediência de seminário.


Estrada de Marly

Encontramos algo nos Padres de Dom Bosco, na estrada de Marly. Os Padres aceitaram me alugar, praticamente, um pavimento da sua casa, onde se poderia pôr uma capela, os quartos, ali se poderia alojar uma dezena de pessoas. Aceitamos, também, nos dar um refeitório à parte. Eles alojavam os estudantes na esperança de que um ou outro pudesse ter vocação Salesiana. Mas, de fato, ainda não havia quase nenhuma vocação. Era, se concordam, como um lar de jovens que foram estudar na cidade, porém, o lar não estava lotado, então, os Padres Salesianos, que o administravam sós, ficaram contentes, certamente, de alugar uma parte do imóvel porque isso lhes dava renda para equilibrar seu negócio. Ele recebeu-nos gentilmente, tivemos sempre bom entendimento com ele durante o ano que se passou lá. Começou-se, tratando de ver quem viria... o Abbé AULAGNER, o Abbé TISSIER de MALLERAIS, o Abbé PELLABEUF e mais seis outros, mandados pelo Padre PHILIPPE e outros amigos de Friburgo, no começo, eram nove. Tentei encontrar um padre para me ajudar, porque ainda estava ocupado em Roma, com a Propaganda. Não pensava, aliás, em me entregar completamente a essa obra. Esses seminaristas fariam seu estudo de filosofia, de teologia, na Universidade de Friburgo, não haveria curso de seminário, propriamente dito, nessa Casa de Dom Bosco. Seria, sobretudo, uma disposição espiritual para ajudá-los a tocar seus estudos e, também, se formar espiritualmente, sacerdotalmente.

Então encontrei o Abbé CLERC, que veio me ajudar por um certo período. Em outubro de 1969 foi, portanto, o começo dessa pequena morada...

A Providência, ainda uma vez, me punha nos caminhos que não seriam, ao que parece os meus. Mas, eu os trilhei!


Uma doença estranha

E depois, eis que caio doente, bem doente mesmo, partir de 8 de dezembro. Estava em Roma, gripado, uma gripe horrível, a gripe "Hong Kong". E, não sei que doença contrai, estava indisposto, doía o fígado, doía o corpo todo, dormia mal. Fui obrigado a me tratar, não poderia fazer de outra maneira. Fui para a casa dos Padres do Espírito Santo, repousar um pouco, durante algumas semanas, contando com o Abbé CLERC para cuidar dos seminaristas. Mas, meu estado de saúde piorava.

Então, dessa vez tive que me internar num hospital, em Friburgo. Acreditem, pensava que ia desaparecer! Não podia comer, tinha a língua completamente ressecada, uma língua de madeira, poderia dizer. Não podia beber mais nada. Os doutores... Exames... Vocês sabem como é: exames em cima de exames. Tudo era analisado: “Nada tendes, não tendes nada, nada”. Não tendes nada, mas, no entanto, eu não podia mais comer, emagrecia, estava desanimado. Aí, resolveram fazer uma sondagem no estômago e no fígado. Não sei quem teve essa idéia, felizmente. Foi a providência, suponho, e, em todo caso, descobriu-se que eu tinha parasitas. Parasitas que estavam a ponto de me roer o fígado: estrongilíase. Mandaram analisar as amostras no Instituto Tropical de Bâle; e a resposta foi: “Estrangilóides, é necessário que ele tome tal e tal medicamento para expurgá-los, e, depois de um pouco de convalescença, pode dar alta”. Onde foi que contrai aquilo? Não sei dizer! Falaram, ora! Na África, certamente. Mas a África, já tinha se passado muito tempo que a deixara, não era possível.Então fostes envenenado! Por que não? Não sabia responder! Mas, então surgiu a resposta mais divertida, da minha irmãzinha Marie-Thérèse, da Colômbia. É uma teimosa! Foi buscar no dicionário médico Larousse a definição do termo "strougle": parasita que se encontra, geralmente, nos porcos e que não se descobre senão após a autópsia! Oh! Estou bem arranjado! Ela ficou muito contente ao descobrir a coisa no LAROUSSE de medicina. Felizmente, não se descobriu isso após a autópsia, mas antes... Então, fui tratado e felizmente me curei.

Pude, aí, retomar um tanto, o trabalho com os seminaristas. Porém, acreditava que o bom Deus não queria que eu fizesse essa obra, porque no estado que encontrava...

E novas provas aconteceram! Três seminaristas se foram, depois, um quarto. Chega o fim de maio e não resta mais que o Abbé AULAGNER, o Abbé TISSIER de MALLERAIS e o Abbé PELLABOEUF. “Meus caros amigos eu lhes disse, creio que no ano que vem ireis vos instalar no seminário interdiocesano que se visitou ultimamente. Tentareis vos organizar vós mesmos a fim de fazer um pouco de exercícios de piedade e outros. Não vou mais prosseguir como estamos, não vale a pena, a experiência vai se acabar”. Então, o Abbé AULAGNER e o Abbé TISSIER de MALLERAIS sobretudo, disseram: “Não! Ah não! Não, não é necessário parar, não queremos ir para essa casa onde não tem nada. Não queremos ser formados como se faz lá, não! Não! Vamos continuar, pode ser que alguns venham”.


Nunca se antecipar à Providência

Chegou-se ao fim... Ao fim e ao começo...
Ao começo da fundação da Fraternidade, e ao fim do meu périplo... após a Congregação. Foi aí que padres, como o Abbé Aulagnier, o Abbé Cottard, os abbés que estavam no Seminário Francês em Roma, e outros, uns cinco ou seis, vieram me visitar e contar a situação do Seminário Francês, onde tudo ia de mal a pior: nada de disciplina, os seminaristas saindo à noite, nada de batina, uma mudança na liturgia a cada semana. Havia uma equipe litúrgica encarregada, cada semana, de inventar uma novidade... Reinava, verdadeiramente, uma desordem incrível nesse Seminário Francês que conheci próspero e do qual guardei tão boas lembranças.

Então, esses jovens seminaristas insistiram para que eu fizesse alguma coisa por eles, sabendo que daí para frente eu estava livre. Pessoalmente, não precisava reencontrar um trabalho. Estávamos em 1969, e eu tinha, - tinha quase sessenta e cinco anos -, não era o momento para que eu recomeçasse qualquer outra coisa. Muitas pessoas se aposentam aos sessenta e cinco anos; então, eu tinha direito a fazer da mesma maneira. Diante da insistência, resolvi cuidar deles, mas, sem nunca pensar em fundar nenhuma sociedade. Longe de mim tal idéia!


Friburgo

Quando era Superior Geral, mantive contato com a Suíça, e com a província da Suíça que tinha uma casa destinada ao acolhimento de estudantes e para mandá-los cursar a universidade de Friburgo. Conhecia bem Mons. Charrière, ele veio a Dakar quando eu era Arcebispo, o conhecia pessoalmente. Com ele, era possível um entendimento a fim de colocar esses poucos seminaristas no seminário dos Padres do Espírito Santo, em Friburgo, para que eles pudessem prosseguir seus estudos na universidade. Vi ali a solução mais simples.

Então, cheguei até mesmo a mandar alguns imediatamente, a fim de retirá-los do meio no qual se encontravam. E eu fui uma ou duas vezes a Friburgo, naquele tempo, para ver como andavam a coisas. Mas, lá também se fez “aggiornamento”. Lá também se fizeram mudanças. Eles não se agradavam mais da comunidade dos Padres do Espírito Santo, porque se estava em vias de mudar a liturgia, usava-se trajes civis, não havia mais disciplina. “Oh! Disseram eles: não se vai ficar muito tempo, não se tem mais formação, não nos dão nada, nem conferência espiritual, nada, absolutamente. Não se pode ficar como aquilo lá”.

“Oh! Aquilo é aborrecido”, pensei.

Então, fui visitar Mons. Charrière, e perguntei a ele se não dispunha de algo, mesmo em Friburgo que fosse melhor que essa Casa dos Padres do Espírito Santo, onde os poucos seminaristas dos quais cuidava, pudessem encontrar moradia e uma certa formação. Ele me respondeu: “Sabeis, Monsenhor, a situação atual é muito má, piora a cada dia; e, eu estou muito pessimista quanto ao futuro mesmo da diocese e da formação sacerdotal. Estou pessimista, não sei como as coisas vão mudar. Em todo caso, temos, sim, um seminário interdiocesano, que serve a tosas as dioceses da Suíça, e que recebe até mesmo estudantes civis. Em conseqüência, bem poderia receber, também, os vossos estudantes. Pois é, pode ser, vamos lá ver”.

E depois, durante o mês de junho, recebi onze pedidos. Onze pedidos! Não é possível! Então, é preciso que eu prossiga. Não se pode fazer nada.

De repente, nossos amigos, o Abbé Aulaigner e o Abbé Tissier de Mallerais, me disseram:
-Monsenhor, o que acontecerá depois? Quando se deixar o seminário, o que se vai fazer?
-Pois bem, voltareis às vossas dioceses e depois trabalhares nas vossas dioceses.
- Mas, então, o que fazer?
-Seria necessário que se continuasse juntos, que se criasse uma sociedade que nos reunisse, depois, tentar encontrar um bispo que nos aceite e permita continuar a Tradição, trabalhando juntos, não de outra maneira.
-Está aí, como disse, tenses, talvez, razão... Tentaremos fundar uma sociedade. Mas, seria preciso, contudo, que Lea fosse aprovada. Primeiro, vamos fazer os estatutos.

Redigi, então, os estatutos da sociedade e, ao  levá-los ao Mons. Charrière me dizia: se Mons. Charrière aceita, tudo bem, ficaria surpreso, no entanto. Ele sabe que somos pela Tradição, ele, de qualquer forma, termina seu tempo, deseja renunciar no mês de janeiro, próximo; ele não vai se engajar num caso como este. Enfim, vamos ver!

-Bem, vou examinar isto, disse-me. Volte depois das férias, será visto.

Enquanto isso, que se fará com os onze jovens, vindos por último, e os três seminaristas que ainda estavam lá? Os salesianos não queriam mais ficar conosco. Eles compreenderam que éramos pela Tradição, posto que não queríamos adotar a Missa nova. O Padre disse ao sei Provincial: “Vós sabeis, são tradicionalistas, não querem a Missa Nova, dizem, sempre, a Missa Antiga, então, não se pode mantê-los em nossa casa, isso não é possível”. Informaram-nos, no fim do ano, acabaria. Era necessário, pois, procurar uma outra casa.


La Vignettaz

Depois, o bom Deus, nos deu, em Friburgo, essa magnífica casinha de “Vignettaz”. Para lá transferimos nos afazeres, no fim do mês de junho, e, lá também, os seminaristas puderam prosseguir, como tinham começado na casa dos Salesianos. Mas, para os onze novatos, era preciso prever uma espécie de noviciado. Onde alojá-los? Buscou-se ao redor de Friburgo, por toda parte. Estava difícil encontrar.

E eis que, da França, me disseram: “Ide ver Mestre Lovey. Existe, no Valais, uma casa que ele poderia, talvez, pôr à sua disposição, uma casa que pertenceu aos monges do Grande São Bernardo”. Mestre Lovey mora em Fully... Eu não conhecia Mestre Lovey. Mas, Fully me lembrou de algo: conhecia bem o cura Bonvin, que lá, era um dos meus antigos confrades do Seminário Francês. Havíamos nos reencontrado muitas vezes.

Então, fui a Fully visitar o cura Bonvin e lhe disse:
-Conheceis o Mestre Lovey?
-Certamente, o conheço. Por quê?
-Bem, parece que ele tem uma casa que poderia pôr à nossa disposição para uma espécie de noviciado, um ano de espiritualidade. Gostaria de saber se, realmente, seria possível.
-É fácil. Vamos convidá-lo, almoçaremos juntos e, depois, avalieis, conversareis.


Mestre Lovey chegou. Foi a primeira vez que o encontrei, e ele me disse: sim é verdade! Temos uma casa em busca de uma destinação. Os monges do grande São Bernardo venderam sua casa em Ecône, que era sua casa destinada à agricultura e, ao mesmo tempo ao noviciado. Tinham lá a criação dos seus cachorros. Então, quando soube que queriam vender, não quisemos nada além dessa casa, que tinha sido, durante seiscentos anos, uma casa dos religiosos do Grande São Bernardo, transformada numa casa de não sei o quê, poderias ter sido, até mesmo, uma má casa. Então, nos reunimos com cinco senhores do Valais: Sr. Genond, Sr. Rausis, Ssr. Marcel Pedroni, seu irmão Alfhouse Pedroni e eu mesmo, e decidimos formar uma associação e comprar essa casa do grande São Bernardo... Vamos lá! Veremos se ele encontra uma destinação. Já tinha sido proposto ao Carmelo de Montélimar, que desejava se instalar por lá, mas a asa não conveio. Agora, existem alguns beneficiados que estão lá dentro, mas, tenho a impressão que não ficarão... Enfim, pode-se ver... conversar com eles... Se fordes até lá, está bem. Caso não vos convenha, ireis embora.

A idéia era boa. Então fomos visitar a casa dos beneficiados. Foi a primeira vez que encontrei o Sr. Cura de Riddes. O Sr. Cura de Riddes ficou muito satisfeito em pensar que poderia ter, talvez, seminaristas, não longe de si, do seu lugarejo. Visitou-se a casa e cantou-se um “Salve Regina”, na capelinha de Nossa Senhora dos Campos. Era quase uma ação de graças. Ainda não estava fechado, mas, enfim!

As coisas se precipitaram, verdadeiramente... Aconteceu que a Providência nos ultrapassou. Era preciso andar, andar e encontrar padres para cuidar dos jovens que viriam para lá. Os beneficiados não permaneceram e Mestre Lovey me disse: “Bem, aí está, à vossa disposição. Quando quiserdes podereis vos instalar. E depois, acertaremos!”.

Foi o que fizemos. No mês de outubro, viemos nos instalar. Já eram duas etapas importantes. Vejam, uma casa em Friburgo, e a casa de Ecône. Três seminaristas de um lado, o que não era grande coisa; mas, depois, um outro veio se juntar, o Abbé Waltz, o que somava quatro, depois, o Abbé Cottard, o que fazia cinco. Cinco em Vignettaz e onze em Ecône. Já era um bom começo.


A Aprovação


 Entretanto, era preciso saber se Mons. Charrière estava de acordo com essa famosa sociedade. Sim ou não! Fui com muitas dúvidas e temendo muito que ele não aceitasse. Estávamos em novembro, e ele me disse: “sim, sim, concordo, estou, de fato, de pleno acordo. Sim, sim. Chamarei o secretário”. E ele disse ao secretário: “Preparai um documento, etc. Batei a máquina minha aprovação canônica dos estatutos da Fraternidade São Pio X, fundada por Mons. Lefebvre, etc”.

Disse comigo mesmo: “Não é possível!!! Estou sonhando! Isso não é possível!”. Eu me vi então, retornar com os estatutos, a assinatura de Mons. Charrière e a minha, para os seminaristas, em Vignetaz, e lhes dizer: “Bem, aí está, os estatutos da Fraternidade estão aprovados!”. Oh! Eles não acreditavam. Ah, é um sinal da Providência! Aprovados pelo bispo local... é formidável! Porque três meses depois foi Mons. Mamie que o sucedeu. Já estava contra nós. Não queria que Mons. Charrière, do qual era o vigário geral, desse a sua assinatura a essa Fraternidade. Ele não estava de acordo, mas, estava feito.

E depois... foi o nascimento da congregação das Irmãs da Fraternidade São Pio X.

Aí está a história de Ecône. Vocês a conheceram. Depois, foi a história das Irmãs.

A primeira que se apresentou, para ser Irmã da Fraternidade, pensava que a Fraternidade já existia. A Fraternidade das Irmãs ainda não existia, mas já existia na minha cabeça. Então, ela se apresentou: “Estava decidida, queria entrar na Fraternidade! Nas Irmãs da Fraternidade. Que fazer? Não me sentia capaz de fundar uma congregação de Religiosas, mas gostaria muito que houvesse uma. Então ela veio, com uma outra moça, e, depois, Irmã Marie-Gabriel (5) veio em socorro, etc, etc”.

Epílogo


A Providência, com toda certeza, nos puxou. Eu, eu fui um peso, assegurado a vocês, tinha pés de chumbo. Mas, fui arrastado, arrastado, sempre um pouco mais, um pouco mais, estava preso. E, agora, vocês conhecem a história da Fraternidade. Nesse caso, não posso dizer que fosse eu, verdadeiramente, quem dizia: “Vou fazer aquilo, isto será assim... e penso que... e vejo que...”. Não houve nada disso. Constato, e vocês também puderam compreender, que toda a minha vida foi a mesma coisa. A cada momento, é sempre a Providência que decide. Eu, eu antes resisto, não sou inteiramente de acordo, não sou inteiramente desejoso. Mas, ela me puxa mesmo assim: “Ah! Não, é preciso crescer!”. Eu, seguida, depois, minha fé, vejo, com efeito, que o bom Deus abençoa, abençoa as coisas, e tudo vai bem. “Deo gratias!”. Esperemos que continue assim...






A Missa é, essencialmente, um sacrifício, o Sacrifício da Cruz; não é outra coisa. 
Substancialmente, o Sacrifício da Cruz e o Sacrifício da Missa são a mesma coisa e o mesmo e único Sacrifício.
(Mons. Marcel Lefebvre, La Misa Nueva, Editora ICTION, Buenos Aires, 1983)


Fonte: FSSPX
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Fotos de Mons. Lefebvre: FSSPX, Jan Peeters16 

NOTAS:
(1)Achille Liénart, nascido em 1884, em Lille, foi o diretor do grande seminário antes da guerra. Em 1919, foi nomeado cura-deão da igreja de São Cristóvão, em Tourcoing. Nomeado bispo de Lille em 1928, cardeal em 1930, ele será, até o concílio Vaticano II, uma da figuras de proa do progressismo francês.
(2) Dom Ildefonso Schuster, abade do mosteiro beneditino de São Paulo fora dos muros, em Roma, tinha sido nomeado Visitador apostólico dos seminários da província eclesiástica da Lombardia (1926-1928). Foi encarregado, ademais, de uma visita apostólica ao Seminário Francês de Roma. Em 1929, seria nomeado arcebispo de Milão e cardeal. Foi beatificado em 1996. (Nota do Editor).
(3) Mons. Makonaka é bispo emérito de Franceville. Mons. Modibo – Nzockina sucedeu-o em novembro de 1996 (N.d.e.).
(4) Mons. Obamba faleceu em 7 de julho de 1996 (N.d.e.).
(5) Madre Marie-Gabriel era a própria irmã de Monsenhor. Missionária do Espírito Santo, como ele.

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