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quarta-feira, 9 de abril de 2014

Sentenças e avisos úteis para a direção da alma no caminho da perfeição cristã - I

Sentenças e avisos úteis para a direção da alma no caminho da perfeição cristã


Não é minha intenção que este volume cresça nimiamente, e me acho já muito adiante, quando ainda restam doutrinas em outras matérias não menos importantes que as passadas. Pelo que, mudando de estilo, reduzirei a documentos breves os que podiam ser discursos mais difusos. Espero que assim seja mais grato e útil aos leitores, em razão da brevidade e variedade amigas da natureza humana. Por isso porventura seguiram esta forma de escrever S. Martinho Dumiense Arcebispo de Braga, S. Diadoco Bispo Foticense, João Bispo de Carpácia, S. Nilo Abade, S. Hesíquio, S. Isaac Siro, S. Hiperíquio Presbíteros, S. Simeão Júnior, S. Máximo Mártir Constantinopolitano, Talássio, Evágrio Monges, S. Marcos Eremita e outros Padres. Dos quais, e de outros autores espirituais famigerados são excertos pela maior parte os avisos que aqui damos, omitindo outros, cuja luz por ser muito alta e forte, poderia ofender os olhos menos puros. Vão distribuídos em seis classes: 


I – Dos que são mais especulativos ou teóricos. 09/04/2014
II — Algumas outras sentenças notáveis por sua brevidade e substância. 16/04/2014
III — Avisos e Documentos práticos que respeitam o trato da alma com Deus. 23/04/2014
IV — Os que respeitam o trato da alma consigo. 30/04/2014
V — Os que respeitam o trato da alma com os próximos. 07/05/2014
VI — Os que pertencem ao conflito da alma com o tentador. 14/05/2014





I – Dos que são mais especulativos ou teóricos. 



1. Amar a Deus é grande ofício: só este basta para nos levar todo o tempo da vida e todas as forças da alma. Por certo não tem pouco que fazer quem tem a Deus que amar. E assim todas as mais ocupações e ofícios hão de ser ministros deste.

2. Só duas coisas merecem toda a admiração da criatura racional: a Bondade de Deus e a malícia do pecado. E uma com outra se exageram reciprocamente; pois vemos quão facilmente costuma o pecador agravar a Deus e Deus perdoar ao pecador.

3. Entre Deus e os homens se atravessa um mar imenso, que são nossos pecados. Porém ninguém desconfie de chegar a salvamento, porque o Salvador sobre este mar, fez de outro mar ponte para passar-mos; sobre o mar de nossas culpas, ponte do mar de suas penas; sobre a corrente de nossas maldades, caminho pleas correntes de seu sangue. Oh Piloto sábio, que no vosso naufrágio constituístes a nossa salvação; e na tempestade de poucas horas, a bonança de toda a eternidade!

4. Deixem embora os moços a consideração e temor da morte para os velhos, se se atrevem a conceder-me, que o vidro que hoje sai das mãos do Artífice não é tão frágil, como o que saiu há muitos anos. A hora, que a cada um toca, essa o quebra; e todas podem tocar a todos. Desde que o primeiro homem quebrou o preceito de Deus, tão sujeita a se quebrar é a vida de um Abel, como a de um Matusalém.


5. Diz-me, pecador de costume: Acaso passarás mais seguramente o rio, quando o engrossaram as cheias? Curarás mais facilmente a febre, quando se apossar das entranhas e se fizer ética? Vencerás melhor teus inimigos, quando forem mais no número e nas forças? Lançarás fora do monte a serpente, quando houver vivido nele por muito tempo e souber as entradas e saídas? Arrancarás ligeiramente a árvore, quando tenha alçado altas raízes? Pois sabe, que maior engano é cuidares que não querendo tu agora converter-te a Deus, e arrepender-te de teus pecados, quererás depois e poderás facilmente.

6. Acaon furtou uma régua de ouro e em pena perdeu a vida. Queremos sem delito e sem castigo furtar outra mais preciosa? Tomemo-la a S. Paulo: Domine quid me vis facere: Senhor, que quereis que faça? Quem regrar por esta régua de ouro todas as suas ações, palavras e pensamentos, não perderá a paz do coração, nem o tempo da vida, nem a vida da eternidade.

7. Quatro mães muito formosas parem quatro filhos muito feios. A verdade pare ódio, a prosperidade orgulho, a familiaridade desprezo, e a segurança perigo.

8. Ao Pródigo e ao Avarento falta o mesmo que lhes não falta: porque todos os tesouros da terra e do mar são poucos para tornar, um a lançá-los no mar outro a escondê-los na terra.

9. Que vão ao inferno Caim pela sua inveja, Abiraon pela soberba, Zambri pela luxúria, Nabal pela avareza, o Rico do Evangelho pela gula e regalo, as Virgens loucas pela negligência, não é para admirar; isto é para admirar, que pelo jejum e Oração, pela esmola, continência e silêncio, pela pobreza e penitência haja também caminho trilhado para o inferno. Por este vai a hipocrisia; mas enfim para no mesmo fim, porque secretamente se comunica e abraça com todos os mais vícios.

10. As obras a que falta a pureza de intenção reta parecem-se com moeda falsa, ou que tem liga. Pelo cunho correm e muitos se enganam; pelo metal não têm valor intrínseco. Daqui vem que não servem para comerciar com Deus, e comprar-lhe o Céus; porque este Senhor não pode ser enganado.

11. O que é dotado de verdadeira virtude tem os seus males por fora e os seus bens por dentro. Pelo contrário, o amigo dá glória vã, o hipócrita, o mundano, os seus males estão por dentro, porque são verdadeiros; e os seus bens por fora, porque são imaginados e aparentes.

12. Como a rosa entre espinhos, assim a castidade se defende entre recatos. O recolhimento e modéstia são a casca da continência; e a fruta sem casca facilmente se corrompe. Verdade disse, quem disse: Prope se se consequuntur proponi formam, et exponi pudicitiam.

13. Entre todas as virtudes somente a humildade se ignora a si mesma; como traz os olhos baixos e fitos no abismo no seu nada, não reflete sobre o seu conhecimento, porque o verdadeiro humilde não presume que o seja.

14. Da boca de um leão tirou Sansão um favo de mel; e de um favo de mel tirou Jonatas o perigo de sua morte. Deste modo os bons sabem tirar dos trabalhos o doce fruto do seu prêmio, e das mesmas culpas bem choradas a suavidade da clemência Divina. Pelo contrário, os ímpios da suavidade da clemência Divina fabricam o perigo de sua morte eterna.

15. A melhor coisa deste mundo e do outro é ser santo. A razão é clara: porque a melhor coisa absolutamente é Deus; e os que mais participam de Deus, são os que neste mundo vivem em sua graça, e no outro em sua glória; e estes são os Santos.

16. Dá a tua vontade ao próximo: e dar-te-á o seu entendimento. Quando se inteirar de que o amas, então lhe persuadirás o que quiseres. O anzol da razão há-de ir coberto com a isca da caridade. Caridade é língua universal que entendem até os bárbaros e os mesmos brutos: fala nesta língua e logo serás bem ouvido.

17. Aceitar com estimação os benefícios, ainda quando os escusas, e eles são tênues, e o benfeitor os reputa por grandes, é sinal de condição benigna e humilde.

18. As raízes da concórdia com o próximo são as semelhanças dos ditames do entendimento e inclinações da vontade. Nas três Divinas Pessoas onde há suma união, há um só entendimento, uma só vontade, uma só natureza.

19. Com a tenaz de ouro pegou o Anjo da brasa do altar; e levando a brasa, levava juntamente o fogo. Não vás a Deus senão por Cristo; nem a Cristo senão por Maria. Quando não vás, mas és levado, vai por onde Deus te leva.

20. O ramo que tem muita fruta inclina para a terra; o que nenhuma, levanta-se para o ar; e dizem que se lhe penduram uma pedra, então leva fruto. Os servos de Deus, quanto mais e melhor obram em seu serviço, mais se humilham; e os que nada fazem, mais se ensoberbecem. Mas, para levarem algum fruto, os carrega Deus com a tribulação e desprezo.

21. No mundo espiritual e interno o Sol é a Cruz; desta nasce toda a luz da inteligência e todo o fervor do afeto: e se daqui não nasce, temo que sejam luz e fervor falsos.

22. Os exercícios e penitências que a alma toma, alguma coisa a purgam: a perseguição dos demônios, mais; a dos próximos, ainda mais; mas sobretudo Deus com as subtrações de sua graça.

23. Não tens inimigo mais poderoso, mais astuto, mais emperrado, e mais doméstico, do que é teu amor-próprio. Se queres errar frequentemente, sentenceia pelo seu voto.

24. Quem pelo discurso humano presume esquadrinhar os juízos divinos, sonda o mar com uma bóia; e quem ao juízo divino pretende encobrir os discursos humanos, tapa o Sol com um vidro. Porque para a profundeza de seus conselhos, toda a nossa consideração é leve; e para os raios de sua vista, todo o nosso coração é transparente. Vidro chamei ao coração humano; ainda mal que se lhe parece em muitas propriedades; porque não só é para os olhos divinos patente, mas também para a impressão de seus avisos duro, e para os golpes de seu castigo frágil: In flagellis tuis infirmitas nostra teritur, et iniquitas non mutatur: mens aegra torquetur, et cervix non flectitur.

25. A mais importante, a mais difícil e a mais gloriosa empresa que o coração humano pode acometer, é vencer a si próprio. Dura o combate quanto a vida dura; porém morrer no conflito é o mesmo que vencer, e as armas na mão são o mesmo troféu.

26. Desconfia de ti, e confia em Deus; que é o mesmo que não fundar em areia movediça, mas em penha viva; nem defender-te com escudo de cera, mas de aço. Ou presumas da tua fortaleza, ou desconfies da bondade de Deus, sempre o desobrigas de socorrer-te.

27. Muito proporcionado modo de alcançar graças é render graças. Para ali correm as coisas estimáveis, para onde são estimadas. O agradecimento é aqueduto da liberalidade. Um ingrato pedindo, apara uma mão à fonte e com a outra a entope.

28. O soberbo é filho do diabo, assim como o humilde o é de Jesus Cristo. O soberbo parece em certo modo que afeta negar-se de criatura e constituir-se Deus sobre o altar de seu coração, incessando-se com os fumos da sua vaidade e sacrificando-se às inferioridades que considera nos mais: Non sum sicut caeteri homines. O soberbo esteriliza, quanto em si é, a Divina Misericórdia e renuncia o Espírito Santo.

29. Na maior pobreza está encantado o maior tesouro. Dos espinhos dos trabalhos rebetam rosas das consolações. O jugo de Cristo sobre nossos ombros, converte-se em asas. Pela aniquilação se entra a ser tudo. Abaixando-te tocarás no Céu. Sofrendo se vive à vontade. Quanto mais atribulado, mais mimoso. Quanto te aborreceres, maior bem te queres. Oh doutrina altíssima, ensinada enfim pela Sabedoria do Eterno Padre! Oh paradoxos de verdade Católica e de fruto de vida eterna!

30. Não há modo de mandar ou ensinar mais forte e suave do que o exemplo: pesuade sem retórica, impele sem violência, reduz sem porfia, convence sem debate, todas as dúvidas desata, e corta caladamente todas as desculpas. Pelo contrário, fazer uma coisa e mandar ou aconselhar outra, é querer endireitar a sombra da vara torcida.

31. Não há coisa mais doce que o Amor de Deus, nem mais robusta, nem mais sublime, dilatada, aprazível e preciosa no Céu e na terra. Todas as dificuldades alhana: para todo o peso lhe parece que tem ombros; envergonha-se da palavra: Não posso; não se queixa, nem murmura, nem regateia obséquios com o amado; vive, e se conforta de padecer e trabalhar. Como nasceu de Deus, é generosíssimo, e não afeta o mínimo interesse próprio. Quem reparar como é ativo, e leve, e amigo de liberdade, e simples, e sutíl, e penetrativo, e purificador, logo dirá que é da natureza de fogo. Procura, alma minha, arder neste fogo, e serás bem-aventurada.

32. No Evangelho está escrito que os de Nazaré levaram a Jesus ao pico de um alto monte, para dali o precipitarem. Montes são as dignidades: Jesus é a graça e estudo da perfeição espiritual; se subires a alguma dignidade, olha não precipites dali a Jesus.

33. Verdadeiramente são inexplicáveis os proveitos que vêm a uma alma das injúrias e tribulações bem levadas. Se o demônio não destruíra a fazenda de Jó, não lha dobrara Deus; se Saulo não perseguira a Igreja, a Igreja não fora defendida, honrada e propagada por Paulo; José foi adorado de seus irmãos, porque de seus irmãos foi vendido. Só o proveito de nos meterem as tribulações mais com Deus, não tem preço; porque enfim somos (diz Crisóstomo) como meninos; que quando nos fazem cocos, então fugimos para a mãe: Ad Deus currimus, sicut pueri, cum larvas aspiciunt, ad matrem.

34. Os Santos não se diferençam dos pecadores e imperfeitos em não ser tentados e perseguidos; senão, em que o pecados e imperfeito com qualquer leve impugnação cai; e o Santo contra a mais forte se sustenta.

35. Se o homem não tem dentro de si mesmo pela assistência e manutenção divina tudo o que é necessário para se defender dos inimigos da alma, nenhum lugar, nem companhia, nem estado, nem outra qualquer ajuda extrínseca o pode assegurar.

36. Desculpar-me do pecado é agravá-lo; porque se estou inocente, o silêncio é a melhor prova disso; e se o não estou, a escusa envolve soberba e mentira. A boca dos ímpios (diz Salomão) tapa a maldade: Os impiorum operit iniquitatem. E pouco antes tinha dito: Que a maldade tapa a boca dos ímpios: Os impiorum operit iniquitas. Como lhes tapa a maldade a boca, se com a boca tapam eles a maldade? É que, tapando a maldade, a descobrem mais; e então com a desculpa ficam tão convencidos, que não tem mais que dizer.

37. A memória de Deus é saúde e limpeza da alma. Parece que a alma não tem o rosto e mãos lavadas enquanto se não purifica, refresca e aligeira na memória daquele Senhor, que é fonte de toda a consolação e pureza.

38. O azeite afugente as sevandijas asquerosas que se criam no leito; e o nome de Jesus os pensamentos torpes que se criam no ócio: Oleum effusum nomen tuum.

39. Água de lágrimas e fogo de amor conduzem a alma ao refrigério da união com Deus:Transivimus per ignem, et aquam, et eduxisti nos in refrigerium.

40. Tribulações tomadas como da mão de Deus, com submissão e paciência, são a divisa dos Predestinados. A quem Deus não açouta é sinal que não perfilha (disse S. Agostinho): Si exceptus es a passione flagellorum, exceptus es a numero filiorum. O lavrador mete no jugo os bois que reserva para si, e manda pastar os que há de vender para o talho. De Salomão sabemos que pecou, e sabemos que logrou contínuas prosperidades; por isso não sabemos se se salvou.

41. Há uma conversação, que é pasto da alma; e há outra, de que a alma é pasto. Quando falamos com Deus, ou de Deus, a alma come, porque a devoção se lhe aumenta; porém quando falamos com o mundo, ou do mundo, a alma é comida e carcomida; porque a devoção se lhe gasta e consome.

42. O encalmado de amor de Jesus Cristo, diz das injúrias e calúnias, como se foram fruta colhida pela fresca: Estão ricas! Não há mais?

43. Se espancas os cães da vinha, pareces ser também ladrão. Não és tu dos reformados, pois murmuras e intimidas os zelosos. Mas lá está o Senhor da vinha, a quem darás conta dos frutos, que nem defendeste, nem deixaste defender.

44. A nossa alma é como a espada; que, se não passa por fogo e água, isto é, por trabalhos voluntários e involuntários, e por tentações de prosperidade e adversidade, nunca toma têmpera, com que sem quebrar, dobre e logo torne a ficar direita.

45. Sem dinheiro não há mercador, ainda que tenha grande agência, e muita indústria. E sem humildade não há homem espiritual; por solícito e prudente que seja, não embolsará virtudes.

46. Que maior altura que a de Deus? E para topar com ele, o remédio é baixar bem a cabeça. Porque tantos a erguem, tão poucos lhe chegam.

47. A mão bem despegada dos bens terrenos, não é a que dá esmolas do supérfluo; senão a que não desvia faltas do necessário.

48. A porta do Céu, diz o Evangelho que é estreita; o mesmo se pode dizer da anteporta, que é a Oração. Mal podem entrar por ela espíritos, ou muito inchados de confiança própria, ou muito enfeixados de cuidados de fazenda, ou muito acompanhados de amor de parentes.

49. Quando à custa de trabalhos e suores tiveres já domado e obediente teu vil e desprezível corpo, e te vires livre de suas dependências e cativeiros, e que já se espiritualizou de modo que não remurmura da fome, sede e trabalhos, então verás, mais claramente que em um espelho, aparecer no centro da tua alma aquele Senhor, que é sobre toda a capacidade do nosso conceito. Vê-lo-ás, não obstante ser invisível: e a alma profundamente chagada de seu doce amor, misturará com o gozo, muitas lágrimas mansas e suspiros inenarráveis. Neste estado lembra-te de mim: ora por este pecador vilíssimo, porque sabe que tens chegado à união com Deus, com a qual te deu juntamente uma tal confiança, que nunca sairás envergonhado de sua presença.

50. Repare-se na indústria com que o Autor da Natureza criou na espiga cada grão armado com sua aresta por amor das aves roubadoras. Assim também na Oração nenhum fruto nos concede, que juntamente não nos dê virtude para o defendermos das tentações.

51. Enquanto não sou capaz de vitupério, também o não sou de louvor. Porque impossível é, que o louvor me não esvaeça, se o vitupério me exaspera. E a grimpa que se move para uma parte com este vento, por que se não moverá para a contrária com o contrário?

52. Está escrito: Lança de casa a escrava Agar e seu filho Ismael; porque não será herdeiro o filho da escrava com meu filho Isaac. A escrava é nossa vontade; seu filho é o amor-próprio; Isaac é o amor divino; a herança o Reino de Deus, que está dentro em nós.

53. Sumamente odiosa aos demônios é a Oração pura; e o que a faz pura é a concórdia do sentido com o espírito e do espírito com Deus; porque o inimigo não cobra terror, tanto do exercício numeroso, quanto do bem formado.

54. Quando todos os próximos te parecem bons, nem descobres neles coisa que se te represente imunda e contaminada, então és limpo de coração e por conseguinte poderás ver a Deus. Procede isto de reinar na alma um especial sentimento e participação da simplicidade Divina, que não é discursivo, senão que como coluna de nuvem e luz, por uma parte encobre todas as virtudes próprias e defeitos alheios; por outra, mostra todas as virtudes alheias e defeitos próprios.

55. Um Santo Padre define a ciência deste modo: Scientia est se ipsum nescire extra se positum in Deo: É não saber um de si mesmo, por estar fora de si posto em Deus. Isto se faz na Oração e contemplação. Por onde só os que a exercitam e logram, são os verdadeiros sábios.

56. A Sabedoria Divina com uma alma é uma mãe com o seu menino. Para que o menino pegue no seio, não há diligência que a mãe não faça: canta, embala, afaga, acaricia e trata-o com todo o mimo e brandura. Porém tanto que é necessário dar-lhe comida sólida, porque já tem dentinhos; afasta-o de si e diz-lhe rigorosamente: não, não, isto amarga. O mesmo usa Deus com os principiantes, consolando-os e mostrando-se amoroso. Depois que tem pegado na Oração e adquirido alguma firmeza na vontade, seca-se, e leva-os por tribulações, que é o pão sólido, com que se fazem homens.

57. Onde no mundo grande se ajuntam e continuam as trevas com a luz (que é na superfície da terra) aí quis Deus que o mundo pequeno peregrinasse, até que as suas trevas se alumiem, ou pelo contrário, a sua luz se escureça eternamente. Peça logo a Deus, como David pedia:Quoniam tu illuminas lucernam meam Domine, Deus meus illumina tenebras meas.

58. Deus, como Criador, é nosso princípio; como Glorificador é nosso fim; e como Redentor é nosso meio, para conseguirmos esse fim. Porque nada, que saiu de Deus, pode tornar para Deus, senão pelo mesmo Deus.

59. Verdadeiro bom Pastor é aquele, que por tratar melhor do seu aprisco, se fez Cordeiro, se fez pasto, e se fez aprisco: Cordeiro tomando o nosso corpo na Encarnação; pasto, dando-o no Sacramento; aprisco, rasgando-o na Cruz para nos recolher e amparar nas suas Chagas.

60. O coração multiplicado pela diversidade de desejos, nem sabe buscar, nem pode achar aquilo que é um de tudo; isto é, o bem que por ser sumo, é também simples; e por ser simples quer nosso coração totalmente um. E esta é a limpeza, a quem o Senhor prometeu sua vista, porque este é o um necessário que se não descobre, sem escusarmos a multidão supérflua:Turbaris erga plurima: porro unum est necessarium.

61. De que te jactas, homem vanglorioso? Do mau, ou do alheio? Tudo o que tens de bem, é mercê alheia; tudo o que tens próprio, é miséria pura. Escolhe agora, qual destes títulos se faz louvável. Qualquer dos dois, que assines, sempre te mostras néscio; porque ou desconheces o Autor do Bem, o a natureza do mal: Unde igitur (diz S. Agostinho) gloriabitur omnis caro? Nunquid de malo? Haec non est gloria, sed miseria. Sed nunquid gloriabitur de bono, nunquid de alieno? Tuum, Domine, est bonum, tua est gloria.

62. As tábuas da Lei, que eram de pedra, mandou Deus guardar na Arca, que era de ouro; para que entendessem os homens quanto maior estimação deviam à observância da Lei, do que às riquezas da terra; e que mais desvelo haviam de ter em guardar os Mandamentos, do que em guardar os tesouros.

63. O mundo é mar, a ambição é sede. Não me espanto que o ambicioso se não sacie com os bens do mundo; porque a água salgada não apaga, antes acende as securas. Impossível é apagar bebendo, a sede que nasce de beber; e satisfazer possuindo, a cobiça que nasce de possuir.

64. As tribulações dos Santos são enigma: uma coisa parecem, e outra são e significam; parecem misérias da fortuna e são conselhos da Providência Divina e sinais da felicidade eterna.

65. O pão sustenta o corpo; a Oração a alma. Se o corpo anda falto de sustento, com qualquer tropeço ou encontro, cai; e se a alma anda falta de Oração, com qualquer tentação peca:Aruit cor meum, quia oblitus sum comedere panem meum.

66. Quando o pecador considera a grande miséria de seu estado, então começa ela a não ser já tão grande: porque o princípio de contentar a Deus é descontentar-se de si; e sem tornar em si, ninguém torna para Deus. Assim nos ensina a parábola Evangélica daquele moço mal aconselhado e bem arrependido: In se reversus dixit, ibo ad Patrem.

67. Se importou que Cristo padecesse, para entrar na glória própria, como não importará que tu padeças, para entrar na sua? No Céu todos são Reis, mas os seus ceptros não se fazem senão de Cruzes. Decretou Deus fazer Bem-aventurados de miseráveis; tu não hás de ensinar-lhe a fazer a glória. Se te não serve para ti do modo que a dispôs Deus até para com seu Filho, faz outra a teu modo, que então serás miserável eternamente.

68. O estado melhor em si, nem sempre é o melhor para ti. No mesmo terreno pega bem uma planta, e floresce, e frutifica; e outra murcha ou pasma e seus frutos são desmedrados.

69. Sub umbra dormit in secreto calami, et in locis humentibus. Protegunt umbrae umbram ejus, et circumdabunt eum salices torrentis. Neste texto de Job lhe fala ao pé da letra o demônio. O homem é mundo pequeno; as moléstias com que por divina permissão o demônio persegue ao homem são várias. O mais, Qui legit intelligat.

70. Vícios da nossa natureza não saram senão com a graça; porque a graça é participação da natureza de Deus; e só a natureza daquele que é bom por si pode retificar a natureza daquele que não é bom senão por Ele. Mas esta graça quer-se muito pedida e solicitada e esperada; e depois muito agradecida, guardada e empregada. Porque tão raros isto fazem, por isso tantos morrem com os mesmos vícios com que viveram.

71. A caridade do próximo é a mesma caridade de Deus quando abunda; assim como a água que trasborda é a mesma que enche o vaso. Daqui se mostra, que se cuidas que amas muito com verdadeira caridade o próximo, sem amares ainda muito a Deus, te enganas; porque esse não é mais que um amor, ou natural, ou político. Vê-lo-ás pela facilidade com que se desata com qualquer impugnação contrária; o que não sucede, quando era caridade sobrenatural e de legítimo nascimento de Deus.

72. A mão grosseira e calosa não percebe distintamente pelo tato as coisas materiais; muito menos se tiver calçada a luva. Ao nosso espírito sim foi dado sentimento e percepção das coisas espirituais e divinas; porém, como o temos envolvido e calçado entre tantos sentimentos grosseiros das coisas terrenas, daqui vem não poder formar notícia que o afeiçoe e faça sábio das coisas divinas.

73. Muitos ainda dos que aspiram à perfeição se enganam na eleição do bem, ou declinação do mal, movidos de razões claras que lhes propõem o seu entendimento, não advertindo que há outras razões de superior ordem, das quais haviam de fazer regra. Não basta só seguir a razão em aparecendo; é necessário compará-la primeiro com outra razão e então seguir a que for maior. E sempre as razões Divinas e eternas e Evangélicas são maiores que toda a razão humana, temporal e política.

74. Quanto mais te sujeitares, mais sábio serás. O caminho da humildade e o da luz não são dois, mas um só. Tu não crês que Deus é Luz e Sabedoria? E que se afasta dos que estribam sobre si mesmos? Logo como pode ser, que afastando-se Deus de ti, fiques ainda com luz e sabedoria? O corpo inteiriçado perde a sensibilidade; e se o espírito também se inteiriçar, também perderá o tato espiritual das verdadeiras verdades.

75. A vida da alma é o amor de Deus; a vida do amor de Deus, é a Oração pura; a vida da Oração pura é a mortificação contínua; a vida da mortificação contínua é a resolução generosa. Resolvamo-nos: de outro modo nunca viveremos ao amor de Deus.

76. Onde não há silêncio, não há muita Oração; onde não há muita Oração, não há muita virtude. Agora, se entendes que te é necessária a virtude, entenderás se o silêncio te é necessário.

77. Enquanto não amares os desprezos, as mofas, detrações e contradições do próximo, não hás de fazer coisa grande; e tanto que o demônio vir que a intentas, aí tem com que derrubar-te quantas pedras fores pondo no edifício. Assim como o abanador enxota as moscas, assim afugenta os soberbos o temor de serem desprezados.

78. Não emendarás a língua, enquanto não emendares o coração. E porque uma vez emendado o coração somos perfeitos; por isso disse o Apóstolo S. Tiago: Que quem não tropeçasse na palavra, era varão perfeito.

79. O demônio é cozinheiro (Nabuzardan princeps coquorum): se vê que não gostamos do pecado guisado dum modo, tantos temperinhos lhe busca, até que nos abre a vontade; e se não levamos todo, contenta-se com que provemos algum bocado.

80. Samuel disse a Saul, quando este lhe desobedeceu: Que a dureza de juízo era como a idolatria: Quasi peccatum arilandi est, repugnare: et quasi scelus idolatriae, nolle acquiescere. O homem aferrado ao seu parecer, em concebendo alguma coisa que intenta, ou ajuíza, faz ídolo daquele conceito, e o coloca no altar do seu coração, e com ele consulta o que há de fazer; e as respostas que ouve em si mesmo, essas segue, e tem como vindas do Céu, sendo que vem do demônio, que fala por aquele ídolo.

81. Mortificação é crucifixão: e assim como ninguém pode crucificar a si mesmo de todo, se outro de fora o não crucifica, assim ninguém se mortifica perfeitamente, se outro não ajuda a isso. Pregará quando muito os pés com as mãos, e uma mão com a outra; e isso com esperas muito detençosas, e grande mágoa de si mesmo, mas a outra mão sempre lhe ficará solta.

82. Quem tem frio, chega para si a roupa; e quem tem calma, a afasta. Assim, quem tem amor de Deus, logo lhe enfadam as coisas deste mundo e deseja alongar-se delas. E pelo contrário, quem está frio neste amor, como não tem consolação por dentro, a busca por fora nas criaturas: e isto é chegar para si a roupa: Quid enim (disse S. Gregório) sunt terrena omnia, nisi quaedam corporis indumenta?

83. O Santo Frei Egídio, discípulo do Seráfico Padre S. Francisco, dava esta doutrina, que é a substância de toda a vida espiritual. Se queres bem sentir, tira de ti todos os sentidos. Se queres bem amar, tem ódio a ti mesmo. Se queres bem ganhar, sabe perder. Se queres viver deliciosamente, aflige-te; se estar seguro, está sempre em temor; se ser honrado, despreza-te; e honra aos que te desprezam; se ser abençoado, deseja haver maldições. Oh quão grande sapiência é saber fazer isto! E porque são grandes coisas, não são concedidas a todos.

84. O demônio parece-se com a serpente Amphisbaena, que na cauda tem outra cabeça. Porque consistindo as virtudes no meio, ele morde por ambos os extremos; já nos quer arrojados, já pusilânimes; ora presumidos, ora desesperados; agora nos puxa para o silêncio indiscreto e logo para a loquacidade vã; se nos examinamos devagar, carrega para o escrúpulo; se só de passo, para a relaxação e liberdade da carne.

85. Se aceitares os conselhos de Cristo, não sentirás pesada a lei de Deus. Ponhamos exemplo: manda Deus que não cobiçemos coisa alheia; e aconselha Cristo que não possuamos coisa própria. Manda Deus que não demos mal por mal; e aconselha Cristo que oremos pelos que nos perseguem e caluniam. Observa tu, como bom Religioso, estes conselhos; não quebrarás, como mau secular, estes mandamentos. Toma sobre ti maior carga, sentirás menor peso. Mais custara aos bois levar a carga, se não levassem justamente o carro e as rodas; nem a ave pudera levantar o corpo, se não levantasse juntamente as asas.

86. O demônio, para casar com a alma, fala-lhe de noite. Porque se a alma vira como é feio, nunca em tal consentira: Ita se habet peccatum (diz S. João Crisóstomo); ut priusquam fiat et ad opus perveniat, obtenebret, et decipiat mentem.

87. Faz com Deus o que podes, Deus fará contigo o que não podes. A sua graça dá de si, quanto racionalmente puxamos por ela; e aos esforçados aumenta o esforço: Posui adjutorium in potente.

88. A formosura de qualquer criatura que vemos é mensageira ou precursora da formosura de seu Criador, que esperamos ver, como o Batista de Cristo. Serve de nos trazer recados da parte de seu Amor e novas de seu Poder, Sabedoria e Bondade. Nós, a esta ou aquela criatura, a queremos levantar por Deus, como os judeus queriam fazer Messias ao Batista. Porém responde-nos, como ele respondeu: Non sum: Eu não sou Deus, que é o mesmo ser, sou a que não sou; sivro de voz, que clama neste deserto da tua peregrinação, que endireites teus caminhos para o Senhor: Ego vox clamantis in deserto: Dirigite viam Domini.

89. Perguntado o Angélico Doutor S. Tomás que sinais tinha o homem espiritual perfeito, respondeu que dois: primeiro, se se abstém de palavras jocosas e ociosas; segundo, se leva bem ser desprezado.

90. O homem que naturalmente é pacato e manso de coração corre-lhe obrigação de sofrer a seus próximos, que não tiverem esse dom; assim como o filho a quem seu pai deu o morgado, deixando os mais irmãos pobres, leva o encargo de os sustentar. E nem aquele deve presumir de si, nem os outros desconfiar, porque pode o primeiro perder e destruir esse morgado com vícios; e podem os outros com seu trabalho e diligência granjear muitas riquezas de virtude.

91. Maior distância vai do obrar ao padecer; do que do dizer ao obrar. Dos que dizem, muitos obram; dos que já obraram muitas coisas e se exercitaram em várias virtudes da vida ativa, raros são os que metidos debaixo da Cruz, puramente ao passivo, saibam levá-la bem. É porém tão rendoso o campo do padecer; que pouca parte que se aproveite, enriquece muito a alma.

92. Se alguma coisa obraste, ou disseste por te vingar de teu irmão, no tempo da Oração o pagarás; porque buscas a um Senhor, que também do outro é pai; e quando tu só foras seu filho, então devias mais ensinar-te e repreender-te. A Oração (disse S. Nilo Abade) é mansidão, e criatura gerada no desabitado da ira: Oratio est mansuetudo, et faetus ex vacuitate irae procreatus.

93. Os grandes do mundo são escravos da sua grandeza. Não se podem arrojar, sem levar consigo tantos grilhões e bragas, quantos pontos de honra e razões de estado. Se descaíssem do estado, ou o renunciassem, então ficariam forros.

94. Se quebras com teu próximo tanto que achas ter grande razão para isso, brevemente ficarás só contigo; e contigo houveras de quebrar primeiro, pois és quem mais te persegue e arrisca. E sobre a razão, que tu achas grande, há muitas muito maiores, a que deves atender; que são o amor que deves a Cristo, que ele manda lhe pagues na mão do próximo: o prêmio do perdão de injúrias e sofrimento de ingratidões; o perdão que tu desejas de teus pecaods; a quietação da consciência na hora da morte; a esperança que todos temos de viver unidos em Deus eternamente, etc.

95. Quando os Persas, por morte de el-Rei Chorroas, restituiram o sagrado lenho da Cruz, ainda vinha fechada na mesma arca em que a tinham levado, e com o mesmo selo inviolado; sinal de que a não viram, nem tocaram, nem lhes servira de mais que de destruição do seu império. Deste modo, se não aproveitam os maus Cristãos dos frutos da Cruz. Os seus mistérios estão para eles fechados, nem olham mais que para o exterior. Têm fé, mas metida como numa arca, sem usar dela; e assim, em vez de se salvarem, perdem-se. Pelo contrário, o varão espiritual sabe abrir os selos da Cruz de Cristo, conhece seu preço e estima este tesouro.

96. Três sortes de pessoas (diz o V. Beda) são infelizes na lei de Deus: o que não sabe e não pergunta; o que sabe e não ensina; o que ensina e não faz.

97. S. Macário disse: Se o Monge tem o desprezo por louvor, e a pobreza por tesouro, e o jejum por iguaria, nunca morre. Porque impossível é que o que crê bem em Deus, e o serve pia e fielmente, caia em paixão imunda, ou engano dos demônios.

98. A vida espiritual ordinariamente consta de três estaçòes: na primeira edificamos nós; na segunda destrói Deus esse nosso edifício; na terceira edifica o seu. Na primeira há virtudes imperfeitas; na segunda virtudes purgando-se; na terceira virtudes já purgadas. Na primeira consolações sensíveis; na segunda desamparos e tribulações; na terceira, consolações espirituais e muitos dons e favores de Deus.

99. Uma onça de Oração, feita no meio de trevas e securas, com o ápice, ou ponta do espírito, vale mais que cem libras feitas entre consolações e ternuras.

100. Amontoas virtudes, devoções e exercícios pios, sem primeiro fazer cabedal de humidade? Pois supõem que levas pó nas palmas das mãos contra os ventos.

101. Conhecer-te por miserável não é logo ser humilde: é não ser bruto. Se desejas e trabalhas porque te tratem como a miserável, então tens humildade; porque então tratas contigo verdade.

102. A alma que deseja humildade deve lançar por primeira pedra deste alicerce; que não merece adquirir a humildade, e que todas as suas diligências e trabalhos não poderão fazer que a logre, mas somente a misericórdia de Deus.

103. A Cruz é a porta real para entrar no templo da Santidade: quem buscar outra, não entrará jamais, nem um passo.

104. Jejuar à minha própria vontade pode ser pura tentação do diabo. Oh que de jejuadores se hão perdido! Porém de obedientes, nenhum. O miserável Fariseu jejuava duas vezes na semana, e foi reprovado; o Publicano não jejuava, e foi justificado.

105. Quem pode exercitar a doçura de espírito no meio das dores, a generosidade no meio das fraquezas, a paz no meio das contradições, este é mais que perfeito. A mansidão, a suavidade de coração, a igualdade de humor, são virtudes mais raras que a castidade; e assim as devemos ter em grande estimação. Não há coisa que mais edifique, que a mansidão caritativa; nela, como no azeite da lâmpada, vive e se nutre a chama do bom exemplo.

106. Há umas fraquezas no doente, que se remediam tirando sangue; porque não nascem de falta de forças, senão de estarem agravadas e oprimidas. Assim, a debilitação e quebramento que sentimos para as obras de Deus, procede de agravação dos apetites, aos quais quanto mais mão damos, maior fraqueza contraímos. E assim, o remédio é sangrar-nos destes apetites.

107. Quem mais mortifica suas naturais inclinações, mais atrai as inspirações sobrenaturais.

108. A palavra revestida de brandura tem muito mais força e lustre; e revestida de cólera, uma e outra coisa persuade ao próximo, do que o que se lhe intenta persuadir com modo apaixonado ou imperioso.

109. Se fores humilde de verdade, acharás palpavelmente que é impossível fazer-te alguém agravo. Ao nada nunca pode faltar lugar, e sempre lhe sobra honra; e o prostado em terra, como temerá cair?

110. A maior segurança que neste mundo podemos ter de estar em graça de Deus, não consiste nos sentimentos que temos de seu amor, senão na pura e irrevogável entrega de todo o nosso ser nas suas mãos, e na determinada e absoluta resolução de não consentir jamais em pecado algum, grande, nem pequeno.

111. Importa perseverar dentro da barca em que estamos, para passar o golfo deste mundo e sair no outro. Porque ainda que muitas vezes nos não pusesse nela a mão de Deus, senão as dos homens, todavia, uma vez dentro, quer Deus que não saiamos. Mudanças e transmigrações, ainda de bem para melhor, são arriscadas; não por razão do termo, senão da passagem.

112. Quem quer outra coisa, senão a Cristo, não sabe o que quer; quem pede outra coisa, senão a Cristo, não sabe o que pede; e quem obra, senão por amor de Cristo, não sabe o que obra.

113. Foges da Cruz? Encontrarás outra maior. Quanto melhor estava a Jonas ir por seu pé a Ninive, do que ir no ventre de uma baleia? Se o povo de Israel não murmurara no deserto, não andara e desandara por ele quarenta anos: Qui timent pruinam, irruet super eos nix.

114. Mais aborrece a Graça o ócio, do que a Natureza o vácuo. Por isso tanto que receberes algum favor, prepara-te para a tentação, ou adversidade; porque quer Deus que negoceies com os talentos.

115. Santa Teresa de Jesus, já depois de estar no Céu, disse a uma sua filha cá na terra: Os do Céu e os da terra sejamos uma mesma coisa em pureza; os do Céu gozando, os da terra padecendo; nós outros adorando a Essência Divina, vós outros o Santíssimo Sacramento.

116. Os sentidos militam contra a Fé; porquanto o objeto desta respeita os bens futuros, e o daqueles os bens presentes. E assim tanto que a alma pelos sentido prende e pega dos bens presentes, despreza, e perde a vontade de sustentar-se na esperança dos bens futuros. Importa pois grandemente negar violentamente os sentidos, para que a fé tome forças, e o espírito fechado por uma parte, saia pela outra a buscar o que na verdade lhe convém.

117. A razão de obrarmos o mal tantas vezes e tão facilmente, é porque a alma está pronta para isto. E esta prontidão (entre outras causas) nasce de que a obra precedeu o pensamento consentido, ou ao menos tratado e revolvido morosamente no interior; e a este pensamento precedeu a memória simples, ou imaginação do mal. Por onde, enquanto não consumirmos estas memórias ou imaginações do mal, com a memória de Deus frequente, e se puder ser, contínua, sempre a alma se achará pronta para o mal.

118. Adverte que a frouxidão e ignávia é a mãe dos vícios; porque os bens que adquiriste, fará que os percas; e os que te faltam, fará que os não adquiras.

119. Os que agasalham no seio a recordação sentida das suas injúrias, e entretanto lhes parece que oram, são semelhantes aos que enchem o cântaro na fonte e vazam em outro furado.

120. Se a Moisés mandou Deus não chegasse à Sarça ardendo, sem primeiro se descalçar, como queremos nós chegar na Oração a Deus, que excede todo o sentido e pensamento, e tratar ali com ele, sem despir primeiro cuidados terrenos repreensíveis e paixões pertubadoras?

121. Quem sabe afogar a ira, mostra ser prudente e do número seleto dos que oram.

122. Na Igreja primitiva os Cálices eram de pau, mas os Sacerdotes de ouro; agora os Cálices são de ouro, mas muitos Sacerdotes são de pau.

123. Repara bem, que te deixará o demônio jejuar a pão e água, e cingir-te de cilícios, e carregar-te de disciplinas, e visitar Igrejas e Santuários, e comungar muitas vezes, contanto que não faças Oração Mental. Pelo que é comum sentir dos Santos Padres, que nenhum exercício pio aborrece tanto como este; porque por ele entra o homem em si, e abre os olhos, e lhe aproveitam muito mais todos os outros.

124. Quando o demônio, depois de aplicar todas suas artes e máquinas, não pode todavia impedir a Oração da alma diligente, então dissimula um pouco e finge retirar-se; e de súbito revolta sobre ela, vingando-se em acendê-la em alguma paixão de ira, com que lhe dissipa a boa têmpera de espírito que tinha adquirido pela Oração; ou a faz cair em alguma imundície das em que nos parecemos com os brutos, para injuriar a semelhança que pela Oração tínhamos com os Anjos.

125. Mais estima Deus a alma determinada a receber por seu amor todo gênero de interior desamparo e qualquer trabalho que lhe venha, do que se tivera muitas meditações e visitas espirituais, quantas ela possa receber.

126. Disse o Divino Esposo que a Alma Santa o ferira com um cabelo do seu pescoço: In uno crine colli tui: porque mais agrada a Deus o menor ato de sujeição e obediência, do que grandes obras em que o possamos servir.

127. O nosso Anjo nem sempre nos move o apetite a obrar, ainda que nos ilumine o entendimento para obrar. E assim não nos prometamos a suavidade sensível, quando basta a razão ilustrada; nem cuidemos que por nos faltar aquela, esta vai errada e a obra não é de Deus.

128. Se purgares a alma de paixões e apetites, que lhe são peregrinos, compreenderás espiritualmente as coisas, e se negares de ti o apetite acerca delas, perceberás a verdade que em si tem, conhecendo decerto o que há em cada uma.

129. Que sabe quem não sabe padecer por amor de Cristo? Quando se trata de trabalhos, quanto mais grave e maiores são, tanto melhor é a sorte que os padece.

130. Não consiste a perfeição nas virtudes que um em si conhece, senão naquelas que Deus aprova; e sendo isto tão oculto aos olhos do homem, nada tem de que presuma e muito de que sempre tema.

131. Procura chegar a estado, que todas as coisas para ti sejam de pouca ou nenhuma importância, nem tu para elas; para que, esquecido de todas, estejas com teu Deus no secreto do teu retiro.

132. Oh quanto nos importa ser solícitos e contínuos na Oração! Porque se não é mediante a graça de Nosso Senhor, impossível é ao homem crucificar sua carne; e muito mais impossível a mortificação interior e abnegação de si mesmo e o exercício das virtudes; por serem coisas muito sobre a nossa natureza.

133. Da conformidade e união da nossa vontade com a Divina, nasce na alma uma contínua alegria em todos tempos e sucessos; que então é pura e limpa, e segura do amor próprio.

134. A nossa vileza própria descende destes quatro costados: Nada, Pecado, Morte e Inferno. Nada que fomos antes de nos criar Deus; e nada que podemos sem Deus, para obrar assim natural, como sobrenaturalmente. Pecado que incorremos em nosso primeiro Pai; e pecado que cometemos por nossa vontade própria. Morte de que temos contraído a dívida antes de nascermos; e morte, que pagaremos certamente, incertos do quando, onde, e como. Inferno, que temos justamente merecido, e não sabemos se hoje cairemos nele, para não sair eternamente.

135. Eu te advirto (disse a Virgem Santíssima Senhor Nossa falando com sua serva) que não há exercício mais proveitoso e útil para a alma que o do padecer; porque dá luz, desengana e o leva a Deus, e Sua Majestade lhe sai ao encontro, porque está como atribulado, e o livra e ampara.

136. Linguagem da terra é falar bem de si, mal de outros, e nunca de Deus; linguagem do Céu é falar mal de si, bem dos outros, e sempre de Deus ou para Deus.

137. Deus se descobre a quem humildemente se encobre; e Deus se encobre a quem vãmente se descobre.

138. As ânsias de receber favores de Deus, pondo o cuidado no interesse, inabilitam para os receber; porque são indícios de pouca humildade, e pouca pureza de intenção, e entibiam o cuidado de obrar, pondo-o demasiadamente no receber.

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Tirado do livro "Luz e Calor", do Pe. Manuel Bernardes.
Visto em: http://www.permanencia.org.br/drupal/node/49
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