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quarta-feira, 23 de abril de 2014

Sentenças e avisos úteis para a direção da alma no caminho da perfeição cristã - III

Sentenças e avisos úteis para a direção da alma no caminho da perfeição cristã


Não é minha intenção que este volume cresça nimiamente, e me acho já muito adiante, quando ainda restam doutrinas em outras matérias não menos importantes que as passadas. Pelo que, mudando de estilo, reduzirei a documentos breves os que podiam ser discursos mais difusos. Espero que assim seja mais grato e útil aos leitores, em razão da brevidade e variedade amigas da natureza humana. Por isso porventura seguiram esta forma de escrever S. Martinho Dumiense Arcebispo de Braga, S. Diadoco Bispo Foticense, João Bispo de Carpácia, S. Nilo Abade, S. Hesíquio, S. Isaac Siro, S. Hiperíquio Presbíteros, S. Simeão Júnior, S. Máximo Mártir Constantinopolitano, Talássio, Evágrio Monges, S. Marcos Eremita e outros Padres. Dos quais, e de outros autores espirituais famigerados são excertos pela maior parte os avisos que aqui damos, omitindo outros, cuja luz por ser muito alta e forte, poderia ofender os olhos menos puros. Vão distribuídos em seis classes


I – Dos que são mais especulativos ou teóricos. 09/04/2014
II — Algumas outras sentenças notáveis por sua brevidade e substância. 16/04/2014
III — Avisos e Documentos práticos que respeitam o trato da alma com Deus. 23/04/2014
IV — Os que respeitam o trato da alma consigo. 30/04/2014
V — Os que respeitam o trato da alma com os próximos. 07/05/2014
VI — Os que pertencem ao conflito da alma com o tentador. 14/05/2014




III — Avisos e Documentos práticos que respeitam o trato da alma com Deus. 



1. Andar em presença de Deus, observar silêncio e não reparar em faltas alheias, desarraigam da alma inumeráveis imperfeições e lhe granjeiam grandes virtudes.

2. A mosca que se senta no mel, impede o seu vôo; e a alma que busca sabores do espírito, impede a sua contemplação.

3. Enquanto estás atribulado, e em desamparo, não busques consolação na criatura. Porque como essa tribulação é enviada da mão de Deus para prova, ou exercício, ou castigo teu, e não há de durar sempre: não a tirando a criatura, Deus a tirará. E como Deus quando vem, sempre deixa dons na alma; impedes estes dons, atalhando a sua visita. Portanto, importa ser forte e sustentar a Deus, até que ele mesmo nasça dentro em nós, e nos alegre e vivifique. "Sustine sustentationes Dei (diz o Espírito Santo pelo Eclesiastes) conjungere Deo, et sustine; ut crescat in novissimo vita tua. Omne quod tibi applicitum fuerit, accipe, et in dolore sustine, et in humilitate tua patientiam gabe. Quoniam in igne probatur aurum, et argentum: homines vero receptibiles in camino humiliationis" [Ecl. 2,v.3 e seg.]

4. Se conformes tens conhecimento da Majestade Divina e experiência de seus favores, não lhe tiveres sujeição e reverência, virão sobre ti pensamentos de blasfêmia. E se regares o corpo com muito comer e beber, até os pensamentos santos hão de degenerar em carnais: como as sementes boas, com a nímia chuva, dão em folhagens e espinhos, muito viço e pouco fruto.


5. Toda a obra boa, feita conforme ao agrado de Deus, ou leva diante, ou se lhe segue depois, alguma tentação ou tribulação; e senão houver este sinal, tenhamos por certo que não foi muito do seu agrado. Porque a sua fazenda, ao passar pela alfândega deste mundo, toda leva esta real marca da sua Cruz.

6. Por isso aproveitamos pouco no caminho espiritual, porque não sofremos quietos a mão de Deus que em nós obra, ainda que não ao nosso modo; antes nos afligimos e turbamos com os trabalhos e tentações e lhe furtamos os ombros, quanto podemos, e nesciamente queremos ajuntar virtudes e pouco custo.

7. Não peças a Deus com modo impaciente e imperioso, e querendo o despacho para logo; porque isto mais parece mandar, ou demandar, do que pedir. Além do que Deus Nosso Senhor te quer perseverante na Oração e que te detenhas em sua presença; e isto é excelentíssimo benefício de sua graça. Se a entrada de um vassalo à presença de seu Rei fosse tanto ou mais proveitosa do que a mercê que lhe vai pedir, o Rei que amasse a este vassalo, dilataria o despacho, só por lhe ocasionar as entradas mais freqüentes.

8. Quem faz a vontade de Deus, porque o ama, faz virtualmente todas as coisas. Quem faz a vontade de Deus, ainda que ore, prega; ainda que ande em negócios, ora; ainda que esteja entrevado, anda em negócios; confessando estuda, estudando faz missões, andando em missões serve na cozinha, servindo na cozinha converte almas. E não pode deixar de ser assim; porque a vontade de Deus, com a qual está unido, é tudo; e tudo fora da vontade de Deus, é nada.

9. Se não és amante da divina Escritura, sabe que nenhum espírito tens: porque qual é a pessoa, que ama a outra, e não gosta muito de ouvir a sua voz, receber os seus recados e ler as suas cartas? Devemos tratar a sagrada Escritura com grandíssimo respeito. S. Carlos a lia com os joelhos em terra. S. Pedro de Alcântara (que a sabia toda de memória) quando ouvia alguma palavra dela, fazia profunda reverência, e dizia que o Evangelho se havia de ouvir com as mãos levantadas ao Céu, e a cabeça inclinada.

10. Se a alma não for acompanhada de grande moderação, recato e abstração de acidentes, nas coisas que se percebem pelos sentidos, nunca poderá entrar na familiaridade com Deus, nem levantar-se às coisas invisíveis, nem vir ao conhecimento de sua própria dignidade.

11. As faculdades do corpo não se purificam, nem habilitam para servir a Deus, sem jejum e desvelo; nem as da alma, sem verdade e misericórdia; nem as do espírito, sem meditação e trato interior com o mesmo Senhor. Chamo verdade a intenção reta e coração simples; chamo misericórdia ao coração brando e pacífico com todos, e condição caritativa.

12. A vida do homem verdadeiramente espiritual, e modo com que emprega as horas do dia, parece-se com uma Missa. Porque nenhum intervalo se lhe passa sem obrar, já neste, já naquele exercício, servindo a Deus, já com os membros do corpo, já com os sentidos e potências da alma; e todas as suas ações interiores e exteriores, vão com ordem, decoro, madureza e devoção, sucedendo umas a outras conforme o dirigem as rubricas dos Santos e Padres espirituais, e assistido das luzes da Fé e razão o que sem dúvida é um contínuo sacrifício da vontade própria em honra do Altíssimo. E deste modo parece que podem também os Leigos ter alguma denominação de Sacerdotes; segundo aquilo de S. Pedro: Vos autem genus electum, regale Sacerdotium, gens sancta [I Pedro, 2,9]; e de S. João: Pecit vos regnum, et Sacerdotes Deo, et Patri sul [Ap. 1,6]. Pelo que disse S. Agostinho: Sacrificium est omne opus quod agitur, ut sancta societate inhaerear Deo, reatum ad illum finem, quo beati esse possimus [10 De Civit., 6].

13. O que se adquire com o trabalho e dificuldade, guardar-se com estimação e cautela; e o que pouco nos custou a haver, pouco se nos dá de o demitir como coisa que facilmente nos tornará à mão. Daqui se mostra que o retardar-nos Deus o benefício, é preveni-lo com outro novo benefício; porque serve de nos preparar, para que recolhamos bem o que nos der e lhe pedimos. Olhe para este ponto o impaciente das tardanças do Senhor em lhe conceder as virtudes que pede; parecendo-lhe que quanto a petição tem de honesta, tanto o despacho havia de ter de pronto. O estilo de Deus é dar mais do que se lhe pede; e assim retarda a dádiva para dar, além dela, a firmeza em a lograrmos.

14. Costuma-te a referir, ou encaminhar todas as obras boas que fizeres, em ordem até dispor mais com elas para receber a Comunhão sagrada. Assim se escreve e praticava a Rainha das virtudes Maria Santíssima Senhora Nossa, desde que seu benditíssimo Filho lhe revelou havia de obrar esta portentosa fineza de amor em proveito dos homens; até que comungou a primeira vez no Cenáculo.

15. Corrente de negócios seculares, e remanso de contemplação divina, não se dão juntos. Marta e Maria, sim, são irmãs no sangue, mas não costumam ser irmanadas no espírito. Ter um olho no Céu, outro na terra, custa violência e mostra fealdade. Em uma Anuário da Companhia de Jesus se refere de um China que era cego só quando olhava para a terra, mas para ver o Céu nenhum impedimento tinha; assim devem ser os contemplativos. El-Rei de Babilônia vazou os olhos a el-Rei Sedécias em Rablata; nome que (segundo alguns padres interpretam) significa: Estas muitas coisas, Multa haec[S. Greg. 7, Mor. S. Petr. Dam., lib. 1, epist. 5]. Estas muitas coisas do mundo visível e seus negócios, são as com que o demônio nos priva da vista e contemplação das celestiais e eternas. Negócios (na opinião de S. Agostinho) são brincos, ou joguetes de gente maior: Maiorum nugas [1 Confess., 9]. Deixe brincos quem anda na presença do Altíssimo e perto de sua cortina.

16. Acautela-te muito de esperar, ou desejar ver na Oração alguma forma ou figura dos Anjos, ou Santos, ou de Cristo Senhor Nosso. Porque merecerá tua soberba que despache o Senhor os memoriais que contra nós lhe mete continuamente nosso inimigo; e este se tornará fátuo, de modo que recebas o lobo por pastor e estimes a lata por ouro. Quando vires alguma representação semelhante, converte depressa teu espírito a Deus, que é o teu princípio, rogando-lhe te assista e alumie. E está de bom ânimo; que se pegares firmemente da Oração, os demônios fogem dela, como os cães do pau; e o poder, para quem te chegas, é maior que todos os poderes.

17. Senão curas de evitar os pecados veniais, parece que não tens a Deus amor de filho; porque os filhos nisto se distinguem dos servos; que fazem a vontade aos pais em coisas muito miúdas. E assim, contra os veniais, observa os seguintes avisos: 1o. Confessa-te e comunga a miúdo; 2o. Fala pouco, e com pessoas ou perfeitas ou timoratas; 3o. Procura ter amor ao desprezo, pobreza e dor; 4o. Não te introduzas no que te não pertence, nem te empenhes demasiado em negócio ou pretensão alguma; 5o. Anda em presença de Deus; 6o. Faz antes o pouco, e bem feito; 7o. Guarda na mesa e no sono as regras da abstinência e modéstia.

18. Há uns pobres que pedem pelas ruas, gemendo, queixando-se e exclamando; e há outros (os estrangeiros têm este uso) que pedem cantando devotamente alguma Oração ou as Ladainhas. Estes não movem menos que aqueles, nem tiram menos esmola. Todos nós somos mendigos de Deus: omnes mendici Dei sumus (disse Sto. Agostinho). Nem sempre lhe havemos pedir com vozes e angústias e exclamações; senão também com alegria e sossego, deleitando-nos primeiro na sua bondade, e fazendo regozijo da nossa penúria e comodidade dos nossos trapos e remendos; e esperando com paz a esmola que nos vier de cima, quando o Senhor for servido.

19. Uma das indústrias que mais manualmente encaminham a alma à presença de Deus, sem quebradeiro de cabeça nem fábrica de considerações, é ter cuidado de mortificar-se a si, e deixar mortificar-se por outros. Porque como ninguém faz boa cara à Cruz se não é por amor de Deus, o mesmo nosso amor-próprio faz, que a alma, por sarar, ou mitigar sua dor, vá buscar a Deus, querendo comunicar com ele e metendo-se em companhia de Cristo, e fazendo-lhe oferta daquele donzinho de sua paciência, e esperando de sua bondade o prêmio.

20. Quando a alma está em desamparo e sente a Deus muito ausente de si, ou quase perdido, não lhe valem penitências para se consolar. O que lhe vale é humildade, aniquilação própria, paciência e sujeição ao Padre espiritual. E tanto maior será depois a consolação quanto mais rigoroso foi o desamparo. A Venerável Madre Maria de la Antígua escreve de si, dizendo: "Acontece-me muitas vezes não poder levantar o coração a Deus, não só com ânsias incendidas e amorosas, mas nem ainda com um conhecimento de Cristã. Neste tempo, sem perder os exercícios de Oração, ponho-me diante de meu senhor como uma pessoa ociosa ou vadia sem aproveitar para nada; e ali olho para ele, a ver o que de mim quer por então".

21. Não puxes pela devoção porque te achas em dias de festa, em que a Igreja Católica celebra os mais devotos mistérios. Prepara-te sem ansiedade nem cobiça; fecha os sentidos à multidão de objetos ainda os que parecem podiam conduzir à piedade; humilha-te quanto puderes em presença do Senhor, reconhecendo-te indigno de tua graça; e depois recebe o que te derem com ação de graças; ou tem paciência, se nada te derem; e por isso louva também a Deus. De outra sorte, quanto mais espremeres, mais seco te sentirás.

22. A soledade de espírito consiste em abstrair este de cuidados vãos, de fantasias e implicações do pensamento em coisas inúteis, ou ainda que úteis, escusadas, de ocupação nímia em ações externas, de afeições e vontades do amor-próprio, e de muitas locuções interiores. De sorte que o entendimento, memória, vontade, fantasia e apetite estejam desertos, e de vago para tudo o que não é atender a Deus em simplicidade de fé, e amá-lo em chama espiritual do coração. Nesta solidão fala Deus, não com vozes, mas com luzes; e é tanta a que a alma recebe, que os de fora, que não estão costumados a semelhante região de ar tão puro, estranham talvez a pessoa, e se lhe faz gravoso o seu trato, pela diferença que em tudo acham de ditames, ações, exercícios, intenções etc. E quando o tal homem solitário condescende com algum dos seus modos, então lhes é aprazível, e respiram como o peixe que achou água onde nadar. Deste modo Moisés estando só com Deus quarenta dias, caiu com o rosto tão resplandecente que o povo não podia endireitar para ele a vista, até que se cobriu com um véu.

 23. Se desejamos comungar com fruto, presenteemos a nosso Esposo celestial e Cordeiro de Deus, que se deleita entre as açucenas, uma açucena, cujas folhas sejam estas seis qualidades principais para a perfeição deste exercício. Duas antes de comungar: Desejo e Pureza; duas comungando: Humildade e Caridade; duas depois da Comunhão: Ação de graças e Renovação, ou transformação do homem interior, com pacto de fidelidade. [Do P. Caussino, lib. 3, da Corte Santa, s. 12].

24. Por causa de várias fantasias (dizia meu Padre S. Filipe Néri) que nos conturbam na Oração, a não devemos deixar: Porque se fielmente insistimos no trabalho de as expelir, às vezes dá Deus em um momento, o que se não pode alcançar em muito tempo.

25. Quando pedimos alguma coisa a Deus, e no continuar a Oração, sentimos grande quietação de espírito, é bom sinal, que o Senhor concederá, ou tem já concedido o que se lhe pede.

26. Ainda que percas todos teus santos exercícios por inconstância tua e tentação do diabo; ainda que já deixasses a lição pia, a Comunhão freqüente, o uso das penitências, a companhia dos bons e tudo o mais que Deus em ti havia edificado, nunca deixes o culto, devoção e invocação da Virgem, que nesta tábua se salvam muitos náufragos.

27. Para curar uma pessoa que houver caído em algum pecado, depois de haver caminhado largo tempo virtuosamente, é bom remédio obrigá-la a que faça alguma mortificação solene; como seria manifestar a sua queda a outras pessoas de grande virtude, e de quem se tenha segurança. Porque desta humildade se obrigará Deus para a restituir ao primeiro estado.

28. Não se façam votos sem direção do Confessor prudente; e levem suas modificações que sirvam depois de arrimo à nossa inconstância, respiração à liberdade e quietação à consciência. Exemplo: Voto jejuar tantos dias, ou dar tantas esmolas, enquanto a saúde, ou os cabedais não padecerem grave detrimento; ou, se não sentir grave dificuldade em o fazer assim; ou pelo tempo que parecer a quem governar o meu espírito, etc.

29. Quando visitamos as Igrejas ou Altares, peçamos afetuosamente àquele Santo, a quem são dedicados, esmola espiritual de virtudes; porque este é um excelente meio de granjear espírito e devoção.

30. Para que as perseguições e injúrias deixem na alma fruto e ganância, é bom considerar que primeiro se fazem a Deus que a mim; porque quando chega a nós o golpe, já está dado em sua Divina Majestade pelo pecado. Além de que o verdadeiro amante de Cristo, já de antes há de ter feito concerto com ele, de ser todo seu e nada querer de si; pelo que, se o Senhor sofre a sua ofensa, por que não sofrerei eu a minha? havendo de ser o sentimento justo pelo que a minha injúria tem de ofensa sua.

31. Para ler com fruto a Escritura Sagrada será de grande utilidade observar os seguintes avisos: 1o. Antes de ler, examinar brevemente a consciência e fazer ato de contrição; 2o. Invocar o Divino Espírito, para que me conceda luz com que entenda do que ler o que me convém entender; 3o. Ler com pausa e atenção, aplicando ao meu proveito o que leio: as repreensões, aos meus pecados e vícios; as grandezas de Deus, ao seu amor e louvores; os benefícios, à ação de graças; os castigos ao temor; os prêmios à esperança; os mistérios à Fé; os conselhos ao ensino; 4o. No que não entender, ou buscarei exposição que o declare, ou passarei adiante, venerando o mistério que ali encerra; 5o. Quando sentir alguma luz de inteligência, ou moção do afeto, aceitarei com agradecimento e guardarei no tesouro da memória para as utilidades próprias ou do próximo; 6o. Acabando de ler, beijarei com reverência o sagrado texto, e colocarei a Bíblia com mais alguma atenção e decência que os outros livros, onde não ande por baixo das outras coisas do meu uso; porque as Escrituras santas são cartas de Deus para o homem e palavras de vida eterna; e antigamente em algumas Igrejas havia dois Sacrários: um para o Santíssimo Sacramento, outro para a sagrada Bíblia; 7o. Ultimamente recapacitar na memória ao menos um ponto do que se leu e render a Deus graças pelo benefício de me ensinar com a preciosa palavra da sua boca.

32. De tal sorte te é necessário ter fome e sede de justiça, ou virtudes, que leves com igualdade de ânimo a pobreza espiritual que em ti experimentas, e a falta dos dons da graça para venceres a tua natureza. Para sublevação desta pobreza, acomoda-te a andar pelo Céu mendigando esmola quotidiana pelos Santos; isto, não com brados impacientes e longos arrazoados, senão com insinuação humilde de tua necessidade, alegre esperança do teu remédio e constante paciência na sua tardança. E entende que não és capaz de mais, porque te não ensoberbeças; nem de receber a humildade (vaso dos outros dons) porque não tens disposições para as humilhações e Cruzes em que o Senhor costuma dar envolvida essa humildade; e se ele te quiser lavrar mais rijamente, em vez de dobrares, quebrarás debaixo do seu martelo.

33. A Venerável Mariana de Jesus, Terceira de S. Francisco em Toledo, ensinou o seu Anjo da Guarda quatro diligências, que haviam de usar os que lutam com Deus para dele alcançar alguma graça que lhe pedem; que são quatro tretas de que os lutadores usam para derrubar seu competidor. A primeira é levantá-lo ao alto, para que possa cair; e isto faz quem na Oração se humilha muito; porque tanto mais levanta a Deus. A segunda é usar de sacadilha; que é furtar o arrimo, em que o contrário faz finca-pé para resistir. E isto faz quem purifica a consciência, tirando os pecados e a ocasião deles; porque no nosso pecado é que Deus faz força para se não render. A terceira é cansar ao competidor com repetidas entradas e saídas; porque deste modo, ainda que seja mais robusto, poderá ser vencido do mais fraco. E isto faz quem ora muitas vezes com importunação, ainda que de cada vez ore pouco tempo. a quarta é deixar-se cair sobre o competidor, para o levar debaixo. E isto faz quem se lança nos braços de Deus, resignando-se totalmente no que for sua vontade. Porque como este Senhor faz a vontade dos que o amam, o melhor modo de o render ao que nós queremos, é render-lhe ao que ele quer.

34. O dom das lágrimas está posto como um marco ou baliza no caminho da Oração, entre as coisas corporais e as espirituais; e entre a viciosidade e a pureza. Enquanto o homem não recebe este dom, ainda fica no homem exterior a propriedade da sua obra; nem sentiu ainda a eficácia das coisas ocultas do homem interno e espiritual. Mas quando alguém começa a alongar-se, e deixar atrás as coisas corporais deste século, e passou o termo que define, ou é raia da natureza, então chega a tocar nesta graça das lágrimas, pela qual é levado ao perfeito amor de Deus. E quanto mais vai caminhando, mais se vai enriquecendo neste dom, até chegar a bebê-las misturadas no que bebe e come: Potum meum cum fletu miscebam! [Sal. 101, 10] E este é o sinal certo de que o espírito deixo este mundo, e entrou no mundo do espiritual que tem dentro em si mesmo.

35. Há umas lágrimas que dissecam e queimam; e há outras que regam e fertilizam. As que procedem do coração por causa dos pecados dissecam e queimam o corpo, e ofendem o cérebro. Mas por estas se passa a outra melhor ordem de lágrimas, que sem violência manam do entendimento e trazem gosto, alegria e fertilidade de virtudes. Com as primeiras se lava a alma, como em banho quente. Com as segundas se adorna, como com pérolas netas.

36. O velar alta noite em santos exercícios, estima-o como coisa muito preciosa: para que aches a divina consolação propínqua à tua alma. Persevera em lição santa, solitário contigo; para que teu espírito tenha condutor que o leve às maravilhas e grandezas de Deus. Ama de coração a paciência e pobreza; para que o teu ânimo se ajunte, una e recolha, de onde andava vago e espalhado. Aborrece a nímia e prazenteira afabilidade; para que conserves sem turbação e confusão teus pensamentos. retira-te de muitos e trata da tua alma; para que se não estrague sua interior tranqüilidade. Ama a castidade e sobriedade; para que te não confundas no tempo da Oração, e se acenda em teu coração alegria viva, com as memórias da morte.

37. Muito grosseira e feia desatenção é, acabando de receber a Comunhão sagrada, divertir-se a falar com alguém, ou empregar os sentidos em quaisquer criaturas. Recolha-se logo a alma a tomar a visita de seu Deus, com a maior humildade e paz que lhe for possível; avivando a fé da presença do Senhor que tem dentro em seu peito; e crendo que ao redor de si estão muitos Anjos, que estranham suas distrações e tibiezas, e se alegram com seu fervor e aplicação devota.

38. Quando te preparas com lição espiritual para orar, repara no ponto, conceito, verdade, ou palavra que mais te moveu o coração; e por ali começarás a tua Oração; porque desta faísca, que já tinha saltado, prenderá o fogo em toda a mais matéria.

39. O maior obstáculo que tem a vida espiritual é não seguirmos as luzes e impulsos da Graça. Se deixamos obrar Deus em nós, voaremos. Por isso importa muito conhecer-lhe a voz e acudir fielmente; porque como o seu modo de obrar é suavíssimo, alumia o entendimento ou toca a vontade; mas não constrange, nem violenta. Nem uma só venialidade ou imperfeição vamos a cometer (especialmente se são almas a quem o Senhor tomou mais à sua conta), que, se bem advertirmos, se não atravesse velocíssimamente, antes de nos deliberarmos, algum raiozinho de luz, que lá dentro da consciência diz um Ta, como quem a proíbe. E quanto a alma mais flexivelmente obedece a este Ta, tanto o vai ouvindo mais distintamente, e em coisas mais miúdas; e de caminho adquire paz mais alta, e discrição de espíritos, e notícia dos labirintos do amor-próprio, e roscas da serpente antiga.

40. Quando uma alma tem Oração infusa e quieta, não pode deixar de entender que Deus está dentro dela; porque claramente o está sentindo, e o seu recolhimento então é muito maior, e os efeitos muito diferentes do que em outro modo de Oração costuma experimentar. É uma linguagem do Céu, que por mais que se queira cá dar a explicar, não se fará conceito dela, se o Senhor o não mostrar por experiência. Põem sua Divina Majestade no íntimo da alma, o que o Senhor quer que ela entenda e lho representa vivamente, sem imagens ou forma alguma de palavras; e ali se vê a alma num momento sábia; e fica muito espantada quando experimenta que basta uma destas palavras intelectuais para trocar uma alma toda, e fazer que não ame coisa alguma, senão aquele Senhor a quem vê que sem trabalho algum seu a faz capaz de tão soberanos bens, e lhe comunica secretos admiráveis, e trata com ela com tal amor, lhaneza e familiaridade, que não é possível explicar-se.

41. A Doutora e Virgem Santa Teresa de Jesus dá esta doutrina aos que praticam o exercício de Oração. Toda a pretensão de quem começa a Oração (e não esqueça isto, que importa muito) há de ser trabalhar, e determinar-se, e dispor-se com quantas diligências pode, por conformar sua vontade com a de Deus; e estejamos muito certos, que nisto consiste toda a maior perfeição que se pode alcançar no caminho espiritual. Quem mais perfeitamente tiver isto, mais receberá do Senhor, e mais adiante está neste caminho. Não imaginemos que aqui há mais algaravias, nem coisas escondidas e secretas; que nisto consiste todo nosso bem.

42. Quem leva a mira em chegar à perfeição, e deseja gozar o íntimo abraço da divina união, deve insistir valorosamente na abnegação de si mesmo, e aplicar-se com diligência à santa introversão habitando diante de Deus dentro em si, e aspirar a este Senhor por contínuas e ardentes jaculatórias. Deve em tudo o que faz, ou deixa de fazer, ter por fim e motivo o agrado de Deus, buscando-o com intenção reta e simples. Este é, e não outro, o caminho de chegar à perfeição e união mística com Deus.

43. Na obra do espírito que é a Oração espiritual, quem menos imagina e pretende obrar, obra mais. As obras interiores devem ser todas suaves e pacíficas; fazer coisa penosa, antes dana, que aproveita. Chamo penosa qualquer força que nós queiramos fazer, como reprimir o fôlego. Deixe-se a alma nas mãos de Deus (faça dela o que quiser) no maior descuido que puder do seu aproveitamento e na maior resignação na vontade de Deus. Esta doutrina é de Santa Teresa; mas advirta-se que fala na Oração já espiritual dos aproveitados; e não na material, ou imaginária dos principiantes; que estes hão de trabalhar mais da sua parte.

44. Toda a graça espiritual, dom natural e qualquer coisa feita com acerto, devemos referi-la a Deus Nosso Senhor, dando-lhe por isso graças e louvores; e não atribuir a nós outra coisa senão os pecados e defeitos.

45. Hei de ter muito fixo e assentado na minha alma que nenhuma coisa devo desejar, nem por coisa alguma me hei de afadigar, senão pela graça e amor de meu Senhor Jesus Cristo, e por não ofendê-lo em coisa alguma, senão agradar-lhe; ou venha a morte, ou a vida; a enfermidade, ou a saúde; a tristeza, ou a alegria; a honra, ou a desonra; o lugar alto, ou o baixo; aqui, ou no cabo do mundo; atendendo ao que mais me chega para Deus.

46. Lembra-te, alma, muitas vezes entre dia (especialmente quando fazes o exame de consciência) de dar graças a Nosso Senhor Jesus Cristo, porque te remiu, e fez amiga com Deus, e te ganhou tantos bens à custa de sua Paixão e trabalhos. E a Deus Nosso Senhor dá muitas graças, porque te deu a seu Filho por Irmão, Esposo, Pai, Mestre, Redentor, e sustento teu, e causa de todos teus bens.

47. O fruto da Comunhão, e de outro qualquer exercício espiritual há de ser adquirir maiores forças para servir e amar a Nosso Senhor com maiores veras, e para resistir às tentações e suportar os trabalhos com paciência; e não por gostos e sentimentos, os quais costumam ser sinais de imperfeitos e talvez pode vir do demônio para nos enganar; e assim não nos havemos de cansar muito por eles, se Nosso Senhor os não envia; e tendo-os, não desprezar aos outros que os não têm; que será cair em soberba e presunção; porque ainda que os não tenham, podem ser mais santos e amigos de Deus.

48. Jamais se há de falar de Deus, ou dos Santos, assim levemente, e por modo de entretenimento, e com os termos de facilidade que usamos na prática de coisas humanas; senão sempre com grande respeito, estimação e sentimento do espírito.

49. Está escrito que com os simples é a conversação de Deus. Se alguém pergunta, que coisa é simplicidade de coração, e como se adquire, responde-se: Que a simplicidade, em parte, é realmente o mesmo que a verdade e só difere em que a verdade consiste em concordarem os sinais com os significados; e a simplicidade em que não busca fins diversos, um no interior e outro no exterior. O meio de alcançar esta virtude é andar pegado a Deus (que é o espírito simplicíssimo e puríssimo) por Oração e presença sua contínua.

50. Gastar mal o tempo que era para a Oração, é furtá-lo a Deus. Oh que preciosas horas perdes, alma tíbia e descuidada! Lanças ouro e diamantes no mar; derramas bálsamos pelo chão. Para que é esta perdição e estrago? algum dia chorarás o erro; porém nunca recobrarás a perda.

51. Dizes que desejas amar a Deus; e arremessas ao Céu abrasadas jaculatórias, pedindo afetuosamente este amor. Bem fazer; porém adverte, que amar a Deus é padecer por ele de boamente; é não se amar a si próprio; é amar as Cruzes do desprezo, afronta, dor, pobreza, etc., é perdoar as injúrias e ainda desejá-las e agradecê-las; é dar bem por mal, sofrendo e metendo no coração a todos os próximos. Trabalha por fazer isto, que isto é amar a Deus.

52. Os Bem-aventurados apreendem a Deus, mas não o compreendem; como se por outros termos disséramos, que abraçam a Deus, mas não o abarcam; porque não é abraço que o feche, ou cinja todo. Vêem a Essência Divina; mas não a sua definição: suposto que a sua definição é a sua mesma Essência. Como quem está no meio do mar alto, emprega toda sua vista, quão longe pode, no mesmo mar; porém não alcança a definição do mar, que são as praias. Fica o entendimento difuso e satisfeito, porque vê quanto pode, e vê que resta que ver infinitamente.

53. Alguns de entendimento sutil e coração altivo são muito dados a especular as coisas da Teologia mística, e tratam pouco da prática das virtudes; como que querem ganhar para si a Deus por uns jeitos e segredos que pertencem à notícia do entendimento, adquirida por estudo de livros espirituais e trato com pessoas amigas de Deus. E entretanto se descuidam dos pontos lhanos e substanciais do Evangelho, que são abrenunciação de tudo, resignação da vontade própria, insistência na Oração, e presença de Deus, aplicação das forças a fazer frutos dignos de penitência, caridade geral para com todos os próximos, etc. É erro capital que necessita de emenda.

54. Se alguém pergunta que sinais tem a consolação espiritual quando é de Deus, ouça ao glorioso S. Francisco de Sales [Introdução à vida devota, p. 4, c. 13], o qual comparando o coração humano à árvore, os afetos aos ramos, e as obras aos frutos, diz assim: Se as suavidades, ternuras e consolações nos fazem mais humildes, pacientes, tratáveis, caritativos e compassivos com os próximos; mais fervorosos em mortificar nossas concupiscências e perversas inclinações, mais constantes em nossos exercícios, mais sujeitos e rendidos aos que devemos obedecer, mais singelos em nosso procedimento, é sem dúvida que são de Deus. Mas se estas doçuras não têm doçura mais que para nós mesmos; se nos fazem curiosos, azedos, homens de pontinhos, impacientes, duros com os próximos, porfiosos, ferozes, presumidos, e que na suposição de que somos já uns Santos pequenos não queremos sujeitar-nos mais à correção e direção; indubitavelmente estas consolações são falsas e perniciosas; porque a árvore boa não leva senão bons frutos. Tudo isto é destes grande mestre de espírito.

55. As mulheres costumam ser mais freqüentemente favorecidas de Deus na Oração com êxtases, raptos e visões; sem que isto seja sinal certo de estarem em mais alto grau de santidade, do que alguns homens servos de Deus que não logram semelhantes favores. As razões disto parecem ser as seguintes: 1o. Porque são mais amorosas e enternecidas; e a graça de Deus se acomoda ao modo da nossa natureza, conforme o axioma dos Filósofos: Omne quod recipitur, ad modum accipientis recipitur; 2o. Porque na sua Oração caminham mais por afetos, que por discursos, os quais não são aptos para acender a alma, e uni-la com Deus; 3o. Porque são mais singelas, e com menos reflexões; e com os tais é a conversação do Senhor: Cum simplicibus sermocinatio ejus; 4o. Porque são mais fracas; e assim necessitam deste conduto para a sua natureza aturar os trabalhos da vida espiritual; 5o. Porque parecia razão que Deus lhes compensasse com estes dons e favores, os merecimentos que lhes não concede nos graus e ofícios do Sacerdócio, Pregação Apostólica, governo Eclesiástico, administração de Sacramentos, etc. Contudo deve a pessoa que tem estas coisas extraordinárias (ou, para melhor dizer, quem assiste à sua direção espiritual), proceder com grande cautela e circunspeção. Porque, como disse a Seráfica Madre Santa Teresa, falando especialmente das Revelações: Aun que es verdad que muchas son verdaderas; pero tambien se sabe que son muchas falsas y mentirosas: y es cosa rezia andar sacando una verdad entre cien mentiras. Nestas palavas são dignas de notar-se três coisas: 1o. Serem de uma tão sábia e experimentada Doutora e ditas quando já vivia no Reino da verdade, vendo o rosto de Deus claramente; 2o. Serem dirigidas ao ensino das suas Religiosas, que floresciam no primeiro vigor da Reforma; 3o. Fazerem comparação das revelações verdadeiras com as falsas. Como pois não será arriscado calcularem por verdade quaisquer diretores, quaisquer revelações, em quaisquer pessoas.

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Tirado do livro "Luz e Calor", do Pe. Manuel Bernardes.
Visto em: http://www.permanencia.org.br/drupal/node/49
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