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sábado, 14 de abril de 2012

Do Sacerdócio - Santo Agostinho

Do sermão sobre os pastores

por Santo Agostinho


Santo Agostinho
por Sandro Botticelli
I – Somos cristãos e pastores

Não é de agora que vossa caridade sabe que nossa esperança está toda em Cristo e que nossa verdadeira glória é Ele. Sois do rebanho daquele que guarda e apascenta Israel. Mas por haver pastores que apreciam esse nome, porém, não querem exercer seu ofício, vejamos o que a seu respeito diz o Profeta. Escutai vós com atenção; escutemos nós com temor. “Foi-me dirigida a palavra do Senhor que dizia: ‘Filho do homem, profetiza contra os pastores de Israel e dize-lhes”. Acabamos de ouvir a leitura desse trecho; resolvemos então falar-vos algo. O Senhor nos ajudará a dizer a verdade, se não dissermos o que vem de nós. Pois se disséssemos o que vem de nós, seríamos pastores a nos apascentar a nós, não às ovelhas; se, ao contrário, falarmos sobre ele, é ele que vos apascenta por intermédio de quem quer que seja. Assim diz o Senhor Deus: “Ó pastores de Israel, que se apascentam a si mesmos! Acaso não são as ovelhas que os pastores têm de apascentar?” Quer dizer, os pastores apascentam ovelhas, não a si mesmos. É este o primeiro motivo de repreensão a tais pastores, que apascentam a si e não às ovelhas. Quem são estes que se apascentam? O apóstolo diz: “Todos procuram seu interesse, não o de Jesus Cristo”.


Quanto a nós, a quem o Senhor, por sua benevolência e não por mérito nosso, estabeleceu neste cargo de que teremos difíceis contas a dar, devemos distinguir bem duas coisas: a primeira, somos cristãos; a outra, somos bispos, pela vossa. Como cristãos, atendemos a nosso proveito; como bispos, somente ao vosso.

E são muitos os cristãos não bispos que vão a Deus por caminho mais fácil talvez, e andam com tanto mais desembaraço quanto menos peso carregam. Nós, porém, além de cristãos, tendo de prestar contas a Deus de nossa vida, somos também bispos e teremos de responder a Deus por nossa administração.



II- Pastores que se apascentam a si mesmos

Vejamos, portanto, o que aos pastores que se apascentam a si mesmos, não às ovelhas, diz a palavra divina que não adula a ninguém: “Eis que bebeis o leite e vos cobris com a lã. Matais as mais gordas e não apascentais minhas ovelhas. Não fortalecestes a fraca; não curastes a doente; não pensastes a ferida, não reconduzistes a desgarrada e não fostes em busca da que se perdera; tratastes com dureza a forte. E minhas ovelhas se dispersaram, por não haver pastor”. Começa por dizer que é que apreciam e que descuidam aqueles pastores que se apascentam a si, não às ovelhas. Que apreciam? “Bebeis o leite, cobri-vos com a lã”. Diz o apóstolo: quem planta uma vinha e não se alimenta do seu fruto? Quem apascenta um rebanho e não se serve do leite?” Entendemos por leite do rebanho tudo quanto o povo de Deus dá ao bispo para sustento da vida terrena. Era o que queria dizer o Apóstolo com as palavras citadas.

Embora preferisse viver do trabalho de suas mãos, sem esperar, nem mesmo o leite das ovelhas, o Apóstolo, no entanto, declarou ter o direito de recebê-lo e ter o Senhor determinado que vivam do Evangelho aqueles que anunciam o Evangelho. E acrescentou que os outros apóstolos usavam desse direito, não usurpado, mas concedido. Mas foi ele, por não querer receber o que lhe era devido. Dispensou a dívida, mas não era indevido aquilo que outros aceitaram; Ele fez mais. Talvez o prefigurasse aquele que, ao levar o ferido à estalagem, dissera: “Se gastares mais, pagar-te-ei ao voltar”.

Daqueles, pois, que não precisam do leite das ovelhas, que diremos ainda? São misericordiosos, ou antes, por maior liberdade cumprem seu ofício de misericórdia. Têm a possibilidade e o que podem fazer. Elogiemos a estes sem condenar os outros. Este mesmo apóstolo não procurava presentes. Desejava com ardor que fossem fecundas as ovelhas, não estéreis, sem a riqueza do leite.


III – O exemplo de Paulo

Estando Paulo, certa ocasião, em grande indigência e preso pela proclamação da verdade, alguns irmãos enviaram-lhe com que acudir as suas necessidades. Agradecido, responde-lhes: “Fizestes bem provendo-me do necessário. Eu, porém, aprendi a bastar-me em qualquer situação. Sei ter muito e sei passar privações. Tudo posso naquele que me dá forças. No entanto, fizestes bem em enviar-me aquilo de que preciso”.
Mas desejando mostrar o que é que lhe interessava neste gesto em seu favor – não houvesse acaso entre eles algum dos que se apascentaram a si e não às ovelhas – não se alegra tanto por ter sido socorrido, porém, muito mais se felicita por vê-los ricos em frutos. O que procurava então? Diz: “Não por esperar dádivas, mas busco o fruto”. Não que eu me sacie, mas que vós não fiqueis vazios.
Que aqueles que não podem, como Paulo, sustentar-se com o trabalho de suas mãos, aceitem o leite das ovelhas, supram as suas necessidades, mas não descuidem a fraqueza das ovelhas. Não procurem isto para o próprio proveito, como se anunciassem o Evangelho só para atender a sua penúria, mas tenham em mira a luz da palavra da verdade a fim de iluminar os homens. Pois parecem-se com lâmpadas, como foi dito: “Estejam vossos rins cingidos e lâmpadas acesas”; e: “Ninguém acende uma lâmpada e a põe debaixo da vasilha, mas sobre o candelabro a fim de iluminar aqueles que estão em casa; assim brilhe vossa luz diante dos homens pra que vejam vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus”.
Se para teu uso acendesse em casa uma lâmpada, não lhe porias mais óleo para não se extinguir? Todavia, se mesmo com óleo a lâmpada não brilhasse, não seria de modo algum digna de ser posta no candelabro, mas logo quebrada. O bastante para viver, por necessidade se aceita, por caridade se dá. Não seja o Evangelho um objeto venal, como se fosse o preço que se recebem os que o anunciam para terem com que viver. Se assim o vendem, por uma ninharia vendem uma coisa preciosa. Do povo recebam o sustento; do Senhor, a recompensa de seu ministério. Não é o povo o indicado para dar a recompensa àqueles que servem ao Evangelho na caridade. Estes esperam sua paga da mesma fonte de que os outros aguardam a salvação.
Por que então são repreendidos? Qual a censura? É, que, bebendo o leite e cobrindo-se com a lã, descuravam as ovelhas. Procuravam apenas seu interesse, não o de Jesus Cristo.

IV – Ninguém busque seu interesse, mas o de Jesus Cristo

Já dissemos o que é tomar o leite. Vejamos o que seja cobrir-se com a lã. Quem oferece o leite, dá o alimento; e quem oferece a lã, presta homenagens. São estas as duas coisas que esperam do povo aqueles que se apascentam a si mesmos e não às ovelhas: o necessário para prover as suas necessidades, honras e aplausos.

Há motivo para se entender a veste com honra, pois cobre a nudez. Todo homem é fraco. E quem vos governa, não é igual a vós? Tem corpo, é mortal, come, dorme, levanta-se; nasceu, irá morrer. Se refletes no que é em si mesmo, é homem. Tu, porém, dando-lhe honra, cobres a fraqueza.

Vede como o próprio Paulo aceitou uma veste do bom povo de Deus: “Vós me recebestes como um anjo de Deus. Dou testemunho de que, se fosse possível, teríeis arrancado os olhos para mos dar”.

Mas, acolhido com tanta honra, teria, porventura, por causa desta honra, poupado os transgressores para não ser rejeitado ou não aplaudido ao censurar. Se assim tivesse agido estaria entre aqueles que se apascentam a si e não às ovelhas. Diria talvez de si para consigo: “Que me importa? Que façam o que quiserem; meu sustento está garantido, minha boa fama está salva: leite e lã, isto me basta; que cada um vá por onde puder”. Então tudo está perfeito se cada um for por onde puder? Não te vou considerar bispo; imagino-te como um do povo: “Se um membro padece, todos os demais membros padecem com ele”. Por conseguinte, recordando como se haviam comportado com ele, não parecesse esquecido de suas atenções, o Apóstolo dá testemunho de ter sido acolhido como um anjo de Deus e de que, se pudessem, arrancariam os olhos para lhos dar. E, no entanto, foi à ovelha doente, à ovelha infeccionada para cortar a ferida e não para manter a podridão. Assim fala: “Logo tornei-me vosso inimigo por pregar a verdade?” Reparai: aceitou o leite das ovelhas como lembramos acima, e vestiu-se com a lã, mas não deixou de cuidar das ovelhas. Porque não buscava seu interesse, mas o de Jesus Cristo.


V – Sê modelo para os fiéis

O Senhor mostrou o que estes pastores amam, mostrou também o que negligenciam. Os males das ovelhas estendem-se por toda a parte. As sadias e robustas, isto é, as fortes pelo alimento da verdade, que se aproveitam bem das pastagens, por dom de Deus, são pouquíssimas. Os maus pastores, porém, não as poupam. É-lhes pouco não cuidarem das doentes, das fracas, das desgarradas e perdidas. Tanto quanto podem, também matam as fortes e gordas. Mas estas continuam vivas. Vivem pela misericórdia de Deus. Contudo, no que diz respeito aos maus pastores, eles matam. “Matam de que modo?” Perguntas. Vivendo mal, dando mau exemplo. Foi em vão que se disse ao servo de Deus, ao colocado mais alto entre os membros do grande Pastor: “Mostrando-te a todos” como exemplo de boas obras e: “Sê modelo para os fiéis”.

Presenciando continuamente a má conduta de seu pastor, uma ovelha, mesmo forte, se desviar os olhos dos preceitos do Senhor e fixá-los no homem, começará a dizer no seu coração: “Se meu pastor vive desse modo, quem sou eu para não fazer o mesmo?” Matou a ovelha forte. Se matou a forte a quem não alimentou, que fará com as outras, ele que, vivendo mal destruiu o que encontrara forte e robusto?

Digo a vossa caridade e repito. Mesmo que as ovelhas continuem vivas, ainda que sejam fortes pela palavra do Senhor e guardem o que d’Ele ouviram: “Fazei o que dizem, não o que fazem”; contudo aquele que vive mal diante do povo, não que lhe diz respeito, mata o que o observa. Não se iluda por que se vê que ele não morreu. Este continua vivo, aquele é homicida. Assim como um homem que olha para uma mulher desejando-a, embora ela permaneça casta, ele já cometeu adultério. É verdadeira e clara a palavra do Senhor: “Quem olhar para uma mulher com mau desejo, já cometeu adultério em seu coração”. Não entrou em seu quarto, mas no quarto de seu coração já a abraçou.

Assim quem vive mal diante de seus subordinados, no que lhe diz respeito, mata até os fortes. Quem o imita, morre; quem não o imita, vive. No entanto, quanto a ele, destrói a ambos. “E o que é robusto matais e não apascentais minhas ovelhas”.


VI – Prepara-te para a tentação

Já sabeis o que amam os maus pastores. Vede o que descuidam. “Ao enfermo não fortificastes; ao doente não curastes; o machucado”, isto é, fraturado, “Não pensastes; ao desgarrado, não reconduzistes; ao que se perdia não fostes procurar e ao forte oprimistes”, matastes, destruístes. A ovelha se enfraquece, quer dizer, tem coração débil, imprudente e desprevenido a ponto de ceder às tentações que sobrevierem.

O pastor negligente, quando alguém se lhe confia, não lhe diz: “Filho, vindo para servir a Deus, mantém-te na justiça e prepara-te para a tentação”. Quem assim fala fortifica o fraco e de fraco faz firme, de modo que, se lhe forem confiados os bens deste mundo, não se fiará neles. Se, contudo, houver aprendido a fiar-se na prosperidade terrena, por esta mesma prosperidade será corrompido; sobrevindo adversidades, ferir-se-á e talvez pereça.

Quem assim edifica não constrói sobre a pedra, mas sobre a areia. “A pedra era Cristo”. Os cristãos têm de imitar os sofrimentos de Cristo e não, ir atrás de prazeres. O fraco se fortifica, quando lhe dizem: “Espera, sim, provações neste mundo, mas de todas elas te livrará o Senhor, se teu coração não voltar atrás. Pois para fortalecer teu coração veio padecer, veio morrer, veio ser coberto de escarros, veio ser coroado de espinhos, veio ouvir insultos, veio ser pregado na cruz. Tudo isso por tua causa, e tu, nada: não para ele, mas em teu favor”.

Quais são estes que, por temerem ofender os ouvintes, não apenas não os preparam para as inevitáveis provações, mas prometem a felicidade neste mundo, que o Deus deste mundo não prometeu? Ele predisse a este mundo labutas e mais labutas até o fim; e tu queres que o cristão esteja isento a estas labutas? Justamente por ser cristão, sofrerá algo mais neste mundo.

Com efeito disse o Apóstolo: “Todos aqueles que querem viver sinceramente em Cristo, sofrerão perseguições”. Agora, se te parece bem, diga ele: Pastor, que procuras teu interesse e não o de Jesus Cristo: “Todos aqueles que querem viver sinceramente em Cristo, sofrerão perseguições”; e tu dizes: “Se em Cristo viveres piedosamente, terás abundância de todos os bens. Se não tens filhos, tê-los-á e os criarás, e nenhum morrerá”. É esta tua construção? Olha o que fazes, onde a colocas. Sobre a areia a constróis. Virá a chuva, o rio transbordará, soprará o vento, baterão contra esta casa; ela cairá e será grande sua ruína.

Tira-a da areia, põe-na sobre a pedra: esteja em Cristo aquele a quem desejas ver cristão. Observe os injustos sofrimentos de Cristo, observe-o sem pecado, pagando o que não devia, observe a Escritura a lhe dizer: “Castiga o filho que reconhece como seu” aceite o castigo ou não procure ser reconhecido.


VII – Oferece a atadura do estímulo

Diz-se na Escritura que Deus “castiga todo filho que reconhece como seu”. E tu dizes: “Quem sabe ficarás de fora?” Se ficares de fora dos sofrimentos do castigo ficarás de fora do número dos filhos. “Quer dizer então, perguntas, que castiga todo filho?” Castiga sem exceção todo o filho, como também o Único. O Unigênito, nascido da substância do Pai, igual ao Pai “na forma de Deus”, o Verbo por quem tudo foi feito, este não tinha por onde ser castigado. Para isto revestiu-se de carne, de modo a não ficar sem castigo. Aquele, pois, que castiga o Único sem pecado, irá poupar o adotado pecador? Fomos chamados para a adoção, assegura o Apóstolo. Recebemos a adoção de filhos, para sermos co-herdeiros do Único, sermos também sua herança: “Pede-me e eu te darei as nações por herança”. Deu-nos o exemplo em seus sofrimentos.

Todavia para que o enfermo não desanime totalmente ante as provações futuras, nem se iluda com falsa esperança nem se deixe abater pelo medo, dize-lhe: “Prepara-te para a provação”. Talvez comece a afastar-se, a tremer, a não querer aproximar-se. Lês em outro lugar: “Fiel é Deus que não permitirá serdes tentados além do que podeis suportar”. Afirmar e anunciar futuros sofrimentos é fortalecer o enfermo. Ao prometeres a quem está acovardado e por isso relutante, que não virão provações, mas a misericórdia de Deus que não permite ser tentado acima de suas forças, com isso medica a fratura. Há alguns que, ouvindo falar de futuras tribulações, se armam ainda mais e têm sede delas como de bebida. Julgam fraco o remédio dos fiéis e buscam a glória dos mártires. Há outros, porém, que com o anúncio, das futuras e necessárias provações, peculiares ao cristão e sofridas por quem o quer ser de verdade, ficam alquebrados e vacilam.

Oferece-lhe a atadura do estímulo, pensa o que está fraturado. Dize: “Não tenhas medo. Não te abandonará nas provações aquele em que creste”. Fiel é Deus que não permitirá seres tentados acima do que podes suportar. Não sou eu que digo isto, mas o Apóstolo: “Quereis conhecer por experiência que Cristo fala em mim?” portanto, ouvindo estas palavras, ouves a Cristo, ouves aquele pastor que lhe apascenta Israel. A ele disseram: “tu nos darás a beber lágrimas, com medida”. O apóstolo diz: “não permitirá serdes tentados além do que podeis suportar”. É a mesma coisa que dissera o Profeta: “Com medida”. Somente não despeças aquele que corrige e exorta, amedronta e consola, fere e cura.


VIII – Os cristãos enfermos

“Ao enfermo”, diz o Senhor, “não fortificastes”. Diz aos maus pastores, aos pastores falsos, que buscam seu interesse, não o de Jesus Cristo; aos que se alegram com as dádivas do leite e da lã, mas descuram totalmente as ovelhas e não cuidam das doentes. Parece-me haver diferença entre enfermo e doente – pois costuma-se chamar de enfermo os doentes; enfermo quer dizer não firme, e doente o que se sente mal.

Na verdade, irmãos, esforçamo-nos de algum modo por distinguir essas coisas, mas talvez com maior aplicação poderíamos nós ou outro mais entendido e com coração mais cheio de luz discernir melhor; à espera disto, para que não sejais privados em relação às palavras da Escritura, falo o que penso. É de se temer sobrevenha uma tentação ao enfermo que o debilite. O doente, ao contrário, adoece por alguma ambição e por esta ambição se vê impedido de entrar no caminho de Deus, de submeter-se ao julgo de Cristo.

Observai estes homens que desejam viver bem, já decididos a viver bem; são, no entanto, menos capazes de suportar os males do que fazer o bem. Pertence à firmeza do cristão não apenas fazer o bem, mas também tolerar os males. Aqueles, pois, que parecem ardentes nas boas obras, mas não querem ou não podem suportar as provações iminentes, estes são enfermos.

Por outro lado, aqueles que amam o mundo e por qualquer desejo mal se afastam até das obras boas, jazem gravemente doentes, visto que pela doença, sem forças, nada de bom podem realizar.

O paralítico era um destes na alma; os que o carregavam, não podendo levá-lo até junto do Senhor, descobriram o teto e fizeram-no descer. É isto o que terias de fazer: descobrir o teto e colocar junto do Senhor a alma paralítica, com todos os membros frouxos, e vazia de obras boas, curvada sobre o peso dos pecados e doente com o mal de sua cobiça. Portanto, se todos os seus membros estão frouxos e há paralisia interior que te impede de levá-la ao médico – talvez esteja escondido e no interior: ele, que é a verdadeira compreensão das Escrituras, está oculto - descobre o teto e faze descer o paralítico pela explicação do sentido secreto.

A quem assim não procede e desdenha fazê-lo, ouvistes o que lhe dizem: “Aos doentes não fortalecestes; ao fraturado não pensastes”; já explicamos esta passagem. Estava alquebrado pelo terror das provações. Mas surge algo que trata da fratura e o conforta: “Fiel é Deus que não permitirá serdes tentados além do que podeis suportar, mas com a tentação vos dará o meio de sair dela para que a possais agüentar”.


IX – Insiste a tempo e fora de tempo

“À desgarrada não reconduzistes; e à que se perdia não fostes procurar”. Aqui às vezes caímos em mãos dos ladrões e nos dentes dos lobos rapaces; rogamos, pois, que oreis por estes nossos perigos. Também as ovelhas são rebeldes. Quando procuramos a erradias, declaram não serem nossas, para seu erro e perdição. “Que quereis de nós? Por que nos procurais?”. Como se não fosse o mesmo motivo que nos faz querê-las e procurá-las; porque se desviam e se perdem. “Se estou no erro, diz, se na morte, que queres de mim? Por que me procuras?” Justamente porque estás no erro, quero reconduzir-te; porque te perdeste, quero encontrar-te “Quero ficar assim no erro, quero perder-me assim”.

Queres vaguear assim, queres perder-te assim? Muito bem, mas eu não quero. Ouso dizer isto mesmo: sou importuno. Escuto o Apóstolo que diz: “Prega a palavra, insiste a tempo e fora de tempo”. Com quem, a tempo? Com quem, fora de tempo? A tempo com os desejosos, fora de tempo com os que não querem ouvir. Sou inteiramente importuno, ouso dizer: “Tu queres errar, tu queres perecer; eu não quero”. E afinal não quer aquele que me amedronta. Se eu o quisesse, vê o que me dirá, vê o que repreenderá: “Ao desgarrado não reconduzistes, ao que se perdera não fostes procurar”. Temerei mais a ti do que ele? “Teremos todos de nos apresentar ao tribunal de Cristo”.

Reconduzirei a desgarrada, procurarei a perdida. Quer queiras quer não, assim farei. E se, em minha busca, os espinhos dos bosques me rasgarem, eu me obrigarei a ir por todos os atalhos difíceis; baterei todos os cercados; enquanto me der forças o Senhor que me ameaça, percorrerei tudo sem descanso. Reconduzirei a desgarrada, procurarei a perdida. Se não me queres atrás de ti, não te desgarres, não te percas. É pouco dizer que tenho pena de ti, desgarrada e perdida. Tenho medo de que, se te abandonar, venha a matar o que é forte. Escuta o que se segue. “E ao que era forte, matastes”. Se eu abandonar a desgarrada e perdida, o que é forte terá gosto em desgarrar-se e perder-se.


X – A Igreja, qual videira, ao crescer estende-se por todos os lados

“Por todo monte, por toda colina e por toda a face da terra se dispersaram”. Que significa: “Por toda a face da terra se dispersaram?” Entregando-se a tudo que é terreno, amam o que brilha na face da terra, preferem isto. Não querem morrer para que sua vida fique escondida em Cristo. “Por toda a face da terra”, pelo amor às coisas terrenas; ou porque há ovelhas desgarradas por toda a face da terra. Estão em diversos lugares; uma só mãe, a soberba, as deu à luz, como uma só, a nossa mãe católica, gerou a todos os fiéis cristãos dispersos por todo o mundo. Não é de admirar se a soberba gera a separação; a caridade, a unidade. Contudo essa mãe católica, este pastor procura por toda parte os desgarrados, fortifica os enfermos, cura os doentes, pensa os fraturados; a uns por meio destes, a outros por meio daqueles, sem se conhecerem mutuamente. No entanto ela a todos conhece porque por todos se estende. Ela se assemelha à videira que, ao crescer, se estende por todos os lados; junto dela há ramos inúteis, cortados pela foice do agricultor por causa de sua esterilidade, de sorte que a videira é podada, não amputada. Estes ramos, onde foram cortados, aí ficaram. A videira, porém, crescendo por todos os lados, não só conhece os ramos presos a ela, mas ainda os que foram cortados.

Todavia aí vai buscar os erradios porque a respeito dos ramos partidos diz o Apóstolo: “Deus é poderoso para enxertá-los de novo”. Quer compares a ovelhas desgarradas do rebanho, quer a ramos cortados da videira, não é menos poderoso Deus para reconduzir as ovelhas do que é para enxertar os ramos, pois é o grande pastor, o agricultor verdadeiro. “E por toda a face da terra se dispersaram; e não houve quem as buscasse, quem as reconduzisse”; entre os maus pastores, porém, “não houve”, um homem “que as procurasse”.

“Por isso ouvi, pastores, a palavra do Senhor: por minha vida, diz o Senhor Deus”. Vede por onde começa. Como por um juramento de Deus, um testemunho de sua vida: “Por minha vida diz o senhor”. Os pastores morreram, mas as ovelhas estão em segurança; o Senhor vive. “Por minha vida, diz o Senhor Deus”. Por que morreram os pastores? Por procurarem seu interesse, não o de Jesus Cristo. Haverá então e se poderão encontrar pastores que não busquem o que é seu, mas o que pertence a Jesus Cristo? Sem dúvida alguma, haverá e decerto se encontrarão; não faltam nem faltarão jamais.


XI – Fazei o que dizem, não o que fazem

“Por esta razão ouvi, pastores, a palavra do Senhor”. Mas, pastores, ouvi o quê? “Isto diz o Senhor Deus: vou intimar os pastores e reclamarei de suas mãos as minhas ovelhas”. Ouvi e ficais sabendo, ovelhas de Deus: Ele reclama dos maus pastores as suas ovelhas e pede-lhes contas das que morreram. Em outro lugar diz pelo mesmo Profeta: “Filho do homem, eu te constituí sentinela na casa de Israel. Ouvirás uma palavra da minha boca e alertá-los-ás de minha parte. Se eu disse ao pecador: ‘Morrerás por certo’ e tu não a repetires para que o ímpio abandone seus caminhos, ele, pecador, morrerá com seu pecado, mas exigirei de tua mão seu sangue. Se, ao contrário, advertires o pecador que deixe seu caminho e ele não quiser dele se afastar, morrerá por seu pecado, mas tu livrarás tua alma”.

Que quer isto dizer, irmãos? Vedes como é perigoso calar? Morre o ímpio e morre justamente; morre em sua impiedade e em seu pecado; sua indiferença o matou. Pois poderia encontrar o pastor interessado que diz: “Por minha vida diz o Senhor”. Mas por ser indiferente e não advertido por aquele que é guarda e sentinela, é justo que morra aquele e que este seja condenado. “Se, porém, disseres ao ímpio a quem ameacei com a espada: ‘Morrerás por certo’ e ele nada fizer para evitar a espada, esta virá e o matará. Morrerá por seu pecado; tu, porém, livraste tua alma”. Por isto, a nós, cabe-nos calar; a vós, mesmo se calarmos, cabe ouvir pela Sagrada Escritura as palavras do Pastor.

Vejamos, portanto, assim me havia proposto, se retira as ovelhas dos maus pastores e as dá aos bons. Vejo-o tirando as ovelhas dos maus pastores. Assim diz: “Vou intimar os pastores e reclamarei de suas mãos as minhas ovelhas e os afastarei de modo que não mais apascentem minhas ovelhas; e os pastores não mais se apascentem”.

Como é que afastará, a fim de que não mais apascentem suas ovelhas? “Fazei o que dizem, não o que fazem”. Como se dissesse: “Dizem o que é meu, fazem o que é seu”. Quando deixais de fazer aquilo que os maus pastores fazem, estes não vos apascentam; quando fazeis o que dizem, sou eu que vos apascento.


XII – Em boas pastagens apascentarei minhas ovelhas

“E as retirarei dentre as nações, reuni-las-ei de todos os lugares e as conduzirei para sua terra e as apascentarei sobre os montes de Israel”. Ele criou os montes de Israel; são os autores das divinas Escrituras. Alimentai-vos ali onde com segurança encontrareis alimento. Que vos cause gosto tudo quanto dali ouvirdes; aquilo que lhe é estranho, rejeitai. Não vagueeis no meio do nevoeiro; ouvi a voz do pastor. Reuni-vos nos montes da Sagrada Escritura. Aí se acham as delícias de vosso coração; aí, nada de venenoso, nada de contrário; são pastagens fertilíssimas. Vinde somente vós, sadias, nutri-vos dos montes de Israel. “E às nascentes e à todo lugar habitado da terra”.

Dos montes a que nos referimos, brotaram as nascentes da pregação evangélica, quando “por toda a terra se difundiu sua voz”; e toda a terra habitada se tornou amena e fecunda para alimento das ovelhas. “Em boas pastagens e nos altos montes de Israel as apascentarei. E ali estarão colocados seus redis”, quer dizer, onde irão descansar, onde dirão: “Como é bom aqui”, onde dirão: “É verdade, está tudo claro, não fomos enganadas”. Repousarão na glória de Deus, como em seu redil. E “dormirão”, isto é, “repousarão, em grandes delícias”. “Em férteis campos serão apascentadas sobre os montes de Israel”. Já falei dos montes de Israel, dos bons montes para onde erguemos os olhos à espera de auxílio. Mas nosso auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra. Por isso, para que nem mesmo nos bons montes esteja nossa esperança, tendo dito: “Apascentarei” minhas ovelhas “sobre os montes de Israel”, e para que tu não te fixes nos montes, acrescenta logo: “Eu apascentarei minhas ovelhas”. Ergue os olhos para os montes, donde te virá auxílio, mas presta atenção ao que te diz: “Eu apascentarei”. Pois teu auxílio vem do “Senhor que fez o céu e a terra”.

Termina assim: “E as apascentarei com justiça”. Reparai que só Ele apascenta desse modo, aquele que apascenta com justiça. Que pode um homem julgar a cerca de outro homem? Tudo está repleto de juízos temerários. Aquele de quem desesperávamos, de repente se converte e se torna ótimo. De quem muito esperávamos, subitamente fraqueja e se faz péssimo. Nem nosso temor é seguro, nem certo o nosso amor.

Aquilo que cada homem é hoje, mal sabe ele próprio. No entanto, é alguma coisa hoje. O que será amanhã, nem ele o sabe. Portanto é só aquele o que apascenta com justiça restituindo a cada um o que é seu: a estas, umas coisas: àquelas, outras; dando o devido a cada uma, isto ou aquilo. Pois sabe o que faz. Apascenta com justiça aqueles que redimiu ao ser justiçado. Apascenta, portanto, com justiça.


XIII – Os pastores bons estão todos no Único pastor

Cristo te apascenta com justiça; distingue suas ovelhas das que não o são. “Minhas ovelhas ouvem minha voz e me seguem”. Encontro aqui todos os pastores bons no Único pastor. Os pastores bons não faltam, mas estão no Único. Os que estão divididos são muitos. Aqui se fala de um só porque se quer valorizar a unidade. Na verdade não se diz agora os pastores se calarão e será um só o pastor porque o Senhor não encontra a quem confiar suas ovelhas. Ele as confiou porque encontrou a Pedro. Mais ainda, no próprio Pedro, ele confiou a unidade. Eram muitos os apóstolos, mas a um só disse: “Apascenta minhas ovelhas”. Deus nos livre de que não haja agora bons pastores, de que nos venham a faltar; esteja longe de sua misericórdia não criá-los nem formá-los!

Na realidade, se houver boas ovelhas, haverá também bons pastores, pois é delas que vêm os bons pastores. Mas os bons pastores estão todos no Único, são um só. Se ele apascenta, é Cristo que apascenta. Os amigos do esposo não dizem ser sua a voz; mas com imensa alegria se rejubilam com a voz do esposo. Por conseguinte, é ele que apascenta quando aqueles apascentam. E diz: Eu apascento, porque sua voz está neles, sua caridade neles se encontra. Ao próprio Pedro, a quem entregava suas ovelhas como a outra pessoa, queria torná-lo um só consigo, e fosse a cabeça, fosse a personificação do corpo, isto é, da Igreja, e à semelhança do esposo com a esposa, fossem dois em uma só carne.

Querendo, pois, entregar as ovelhas, mas não como se as confiasse a outro, que lhe diz antes? “Pedro, tu me amas? Respondeu ele: ‘Eu te amo’. De novo: Tu me amas? Respondeu: ‘Amo’. Confirma a caridade para consolidar a unidade: ‘é ele, portanto, que apascenta, um só neles e eles no Único’ ”.

Cala-se a respeito dos pastores, mas não se cala. Gloriam-se os pastores, “mas quem se gloria, no Senhor se glorie”. É isto apascentar o Cristo, é isto apascentar por Cristo, é isto apascentar em Cristo; não se apascenta fora de Cristo! Não foi, na verdade, por falta de pastores, como se o Profeta houvesse predito estes maus tempos futuros, que disse: “Eu apascentarei minhas ovelhas”, não tenho a quem confiá-las. Assim Pedro estava nesse corpo e nessa vida terrena e também os Apóstolos, quando aquele Único, em quem todos são um, disse: “Tenho outras ovelhas que não são desse redil. Preciso buscá-las para que haja um só rebanho e um só pastor”. Estejam então todos no Único pastor e façam ouvir a única voz do pastor, aquele que as ovelhas escutam e possam seguir seu pastor; não a este ou àquele, mas ao Único. E todos nele falem com uma só voz, não tenham vozes diferentes. “Rogo-vos, irmãos, dizei todos a mesma palavra e não haja divisão entre vós”. A esta voz, lavada de toda divisão, purificada de toda heresia, ouçam-na as ovelhas e sigam seu pastor, aquele que diz: “As ovelhas que são minhas escutam minha voz e me seguem”.

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