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quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Reflexões sobre Assis III pelo Prof. Roberto de Mattei

As observações do Prof. de Mattei sobre o encontro de Assis


Continuamos o 'balanço' sobre o encontro inter-religioso de Assis, com esta participação do Prof. de Mattei, a quem agradecemos pela contribuição analítica.
Enrico

Depois de Assis III. Algumas reflexões

por Roberto de Mattei

Como signatário de um apelo a Sua Santidade Bento XVI para que voltasse atrás da decisão de celebrar o 25º aniversário do primeiro encontro inter-religioso de Assis, havida a reunião, não posso deixar de manifestar algumas reflexões a respeito.

Seja qual for o juízo que se queira dar sobre a terceira reunião de Assis, deve-se enfatizar que esta representou uma objetiva correção de rota em relação às duas reuniões precedentes, especialmente quanto ao perigo de sincretismo. Deve ser lido, a este respeito, com atenção, o discurso do Cardeal Raymond Leo Burke ao 'Congresso Peregrinos da Verdade para Assis', realizado no dia 1º de outubro passado em Roma, o qual oferece uma confiável chave para a interpretação do evento.

Na 'jornada de reflexão, diálogo e oração pela paz e a justiça no mundo', que ocorreu em 27 de outubro, não houve nenhum momento de oração por parte dos presentes, nem em comum nem em paralelo, como ocorrera em 1986 com os vários grupos religiosos reunidos em diversos lugares da cidade de São Francisco. É sabido, em qualquer caso, que o então cardeal Ratzinger evitou participar da reunião, e a sua ausência foi interpretada como uma tomada de distância dos equívocos que a iniciativa era destinada a produzir.

Bento XVI quis dar à reunião de 27 de Outubro um rosto diverso das reuniões precedentes: não tanto aquele, explicou o cardeal Burke, "de um encontro inter-religioso quanto o de um diálogo intercultural na esteira da racionalidade, bem preciosos do homem enquanto tal". Dois textos nos ajudam a compreender o pensamento de Bento XVI em matéria de 'diálogo': o primeiro é a carta enviada ao filósofo Marcello Pera[1], ex-presidente do Senado, quando do lançamento de seu livro, Por que devemos nos dizer cristãos (Mondadori ed., Milão, 2008), na qual Bento XVI escrevia que "um diálogo inter-religioso no sentido estrito da palavra não é possível, enquanto é mais urgente o diálogo intercultural que aprofunda as consequências culturais das decisões religiosas fundamentais. Aqui, o diálogo e uma mútua correção e um enriquecimento mútuo são possíveis e necessários".

O segundo documento é também uma carta, endereçada no dia 4 de março de 2011 ao pastor luterano alemão Peter Beyerhaus[2], que lhe havia manifestado temor com a nova convocação da jornada de Assis. Bento XVI escreveu-lhe: "Eu bem compreendo a sua preocupação com relação à participação ao encontro de Assis. Mas esta comemoração tinha que ser festejada de qualquer maneira, e, afinal, me parecia a melhor coisa ir lá pessoalmente, para tentar de tal modo determinar a direção de tudo. No entanto, farei tudo ao meu alcance para que seja impossível uma interpretação sincretista do evento, e para que fique firme que sempre crerei e confessarei aquilo para o qual eu havia chamado a atenção da Igreja com a Dominus Iesus".

A interpretação sincretista ou relativista do evento efetivamente não houve, ou foi atenuada, e a mídia dedicou, até por causa disto, bem pouco espaço ao evento.

Outro aspecto de Assis III suscita, no entanto, algumas perplexidades que não podem ser omitidas. O diálogo intercultural pode ser estabelecido com crentes de outras religiões não sobre base teológica, mas sobre aquela racional da lei natural. A lei natural nada mais é do que o Decálogo, compêndio dos dois preceitos da caridade, o amor por Deus e o amor pelo próximo, expressos nas duas tábuas entregues a Moisés pelo próprio Senhor. É possível que, apesar das falsas religiões que professam, haja crentes de outras religiões que procurem respeitar aquela lei natural que é universal e imutável, porque comum a todo ser humano (coisa, contudo, muito difícil sem a ajuda de Graça). A lei natural pode constituir uma 'ponte' para trazer esses 'infiéis' à plenitude da verdade, até mesmo sobrenatural. Muito mais problemático é, ao contrário, o diálogo com aqueles que não acreditam em nenhuma religião, ou seja, os ateus convictos.

A lei natural não consta, de fato, de sete mandamentos que regem a vida dos homens, mas de um conjunto de dez mandamentos, dos quais os três primeiros impõem prestar culto a Deus. A verdade expressa pelo Decálogo é que o homem deve amar a Deus acima de todas as criaturas e amar estas segundo a ordem estabelecida por Ele. O ateu rejeita essa verdade e é privado daquela possibilidade de se salvar que é oferecida, até mesmo em via excepcional, aos crentes de outras religiões. E se é possível a ignorância inculpável da verdadeira religião católica, não é possível a ignorância inculpável do Decálogo, porque a sua lei está escrita "nas tábuas do coração humano com o próprio dedo do Criador" (Rm 2,14-15). Há, certamente, a possibilidade de uma pesquisa ou 'peregrinação' em direção à verdade até mesmo por parte dos não-crentes. Isso acontece quando o respeito pela segunda tábua da lei (o amor ao próximo) leva progressivamente a buscar o fundamento dele na primeira tábua (o amor a Deus). É a posição dos denominados 'ateus devotos', como Marcello Pera e Giuliano Ferrara[3], os quais – como observou corretamente Francesco Agnoli[4] (Eu católico pacelliano[5], digo ao card. Ravasi que em Assis errou os ateus, in 'Il Foglio', 29 de outubro 2011) – "um pouco de estrada junto aos crentes a fizeram e continuam fazendo, com o uso da razão". Eles, hoje, diante de alguns preceitos do Decálogo se mostram mais firmes e observantes do que muitos católicos. Mas os ateus chamados a Assis nada tem de "devoto": pertencem àquela categoria de não-crentes que desprezam não apenas os três primeiros mandamentos, mas todo o Decálogo.

É uma posição que a filósofa e psicanalista Julia Kristeva[6] reafirmou no 'Corriere della Sera' - que hospedou, na íntegra, seu discurso em Assis (Um Novo Humanismo em dez princípios, in 'Corriere della Sera', 28 de outubro de 2011). Ao contrário de alguns estudiosos laicos que redescobrem o fundamento metafísico da lei natural, a Kristeva reivindicou uma linha de pensamento que do Renascimento chega até ao Iluminismo de Diderot, Voltaire e Rousseau, incluindo o Marquês de Sade, Nietzsche e Sigmund Freud, ou seja, aquele itinerário que, como demonstrado por insignes estudiosos do ateísmo desde Cornelio Fabro[7] (Introdução ao ateísmo moderno, Studium, Roma, 1969) até Augusto Del Noce[8] (O problema do ateísmo, Il Mulino, Bologna, 2010), leva justamente àquele niilismo, que a psicanalista francesa, sem negar sua visão ateísta e permissiva da sociedade, gostaria de contrastar em nome de uma colaborativa "cumplicidade" entre o humanismo cristão e o humanismo secularizado. O êxito desta coexistência pacífica entre o princípio ateu da imanência e uma vaga referência à religiosidade cristã nada mais é do que o panteísmo, caro a todos os modernistas, antigos e contemporâneos.

O ponto no qual Assis III corre o risco de marcar um perigoso passo à frente na confusão que hoje domina a Igreja é exatamente este, enfatizado por toda a mídia: a extensão do convite não apenas aos representantes das religiões de todo o mundo, mas aos ateus e agnósticos, escolhidos entre os mais distantes da metafísica cristã. Perguntamo-nos qual diálogo seria possível com esses 'não-crentes' que negam, desde a raiz, o direito natural. A distinção entre ateus 'militantes' e ateus 'colaborativos' arrisca-se a ignorar a vis agressiva ínsita no ateísmo implícito, não expresso de maneira militante, mas exatamente por isso mais perigoso. Os ateus da UAAR[9] têm pelo menos alguma coisa para ensinar aos católicos: professam os seus erros com um espírito de militância da qual os católicos abdicaram ao defender suas verdades. Isso acontece, por exemplo, quando os próprios católicos criticam as Cruzadas, que não foram um desvio da fé, mas uma iniciativa oficialmente promovida pelos Papas, exaltada pelos santos, baseada na teologia e regulada, durante séculos, pelo direito canônico. Se naquela época a Igreja errou, não poderia estar errado quem, hoje, prega o buonismo[10] e o arrendismo[11] diante dos inimigos, externos e internos, que avançam? E se a Igreja, como sabemos, não erra naquilo que ela ensina, qual deve ser a regra de fé última do católico em tempos de confusão como o atual? São perguntas que todo simples fiel tem o direito de colocar, respeitosamente, às autoridades supremas da Igreja, no rescaldo do dia 27 de outubro de 2011.

Tradução: Giulia d'Amore di Ugento



[1] Marcello Pera, filósofo e político italiano, ex-presidente do Senado italiano. Tido ora como um teocon (vide nota 3) ora como agnóstico, ou, ainda, como "um ateu devoto, ou de qualquer maneira um homem laico de ciência, que se converteu já maduro à civilização cristã, identificando-a com o Ocidente; fulgurado a caminho de Nova Iorque (parafraseando 'São Paulo a caminho de Damasco')" (Marcello Veneziani in Articolo su 'Libero').
[2] Peter Beyerhaus, ministro protestante alemão, teólogo e missionário. Ele cunhou a Teologia Moderna Alemã da Missão. Esta carta já é conhecida no Brasil.
[3] Giuliano Ferrara é um jornalista, apresentador de televisão e político italiano. Nos anos noventa, deixou a esquerda (PCI e PSI) para ir para o centro-direita e apoiar Silvio Berlusconi. Tornou-se, em fim, um dos intelectuais do 'Teocon' italiano.
'Teocon' (ou Theocon) é um neologismo derivante de Teo (Deus) e conservadorismo; criado pelos saxões, é bastante difundido na Europa, não raramente com um significado diferente do original. Nos EUA, geralmente é formado pelos protestantes conservadores. Na Itália, usado desde 2004, este termo reúne movimentos católicos ou pretenso-católicos, entre os quais Comunhão e Libertação, Opus Dei e Legionários de Cristo. Engloba personalidades do mundo político e cultural como Marcello Pera, o próprio Giuliano Ferrara, Oriana Fallaci – embora no começo fossem chamados de 'ateocon'. Este movimento às vezes se confunde com o 'neocon', de neoconservadores. Alguns politólogos consideram o neoconservadorismo uma variante de direita da ideia trotskista da revolução permanente, filha, por sua vez, do jacobinismo e da vontade de exportar a revolução francesa por parte de Robespierre e Napoleão: da mesma maneira, os neocon desejam "exportar a democracia e os direitos humanos", uma expressão tornada conhecida, até com conotações negativas, por parte da mídia para definir a ação de George W. Bush.
[4] Francesco Agnoli, professor, escritor e jornalista italiano.
[5] O adjetivo 'pacelliano', refere-se a Papa Pio XII, nascido Eugenio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli.
[6] Julia Kristeva é uma filósofa búlgaro-francesa, crítica literária, psicanalista, feminista, e, mais recentemente, romancista. Foi convidada pelo Papa para a reunião de Assis III. Representando os 'não-crentes', participaram de Assis III, além dela, o filósofo italiano Remo Bodei, o economista austríaco Walter Baier, membro do Partido Comunista, e o filósofo mexicano Guillermo Hurtado. O filósofo britânico Anthony C. Grayling, que também fora convidado e pretendia participar, em um acesso de estrelismo, mudou de ideia e se recusou a tomar parte do evento.
[7] Cornelio Fabro foi um presbítero, teólogo e filósofo italiano, membro da Congregação das Sagradas Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Insere-se na neoescolástica, mais precisamente no neotomismo. Traduziu, editou e comentou as obras de Søren Kierkegaard, expoente máximo do existencialismo.
[8] Augusto Del Noce foi um politólogo, filósofo e político italiano. Estudioso do racionalismo cartesiano e do pensamento moderno (Hegel, Marx), analisou as raízes filosóficas e teológicas da crise da modernidade, reconstruindo as contradições internas do imanentismo.
[9] UAAR: Unione degli Atei e degli Agnostici Razionalisti (União dos Ateus e dos Agnósticos Racionalistas) é uma associação (italiana) de ateus e agnósticos e se diz completamente independente dos partidos políticos: o adjetivo racionalista indica a confiança na razão como vínculo de referência entre os seres humanos. Desde 1991, a União promove na Itália a difusão das teorias do ateísmo e do agnosticismo, defende o caráter laico do Estado e luta contra todos os privilégios concedido ao Catolicismo e contra todas as discriminações aos não-crentes. Dedica-se a promover iniciativas legais pelo completo reconhecimento jurídico do ateísmo e dos direitos dos ateus. Tem como porta-voz na mídia a revista L'Ateo (O Ateu). UAAR á afiliada à IHEU (União Internacional Ética e Humanista) e à FHE (Federação Humanista Europeia). Entre as maiores metas do grupo está a abolição do artigo 7º da Constituição Italiana, que reconhece o Tratado de Latrão entre a Itália e o Vaticano.
[10] Buonismo é a atitude de quem, por palavras ou ações quer ser (ou parecer) bom, sempre e em todo lugar, mais preocupado em obter um reconhecimento positivo por parte dos outros. É aquela atitude de benévola abertura e compreensão de todas as posições, mas que não vai além dos genéricos apelos moralistas, capazes apenas de produzir compromissos confusos e de baixo nível. É um neologismo que está chegando aos poucos ao Brasil.
[11] Arrendismo é outro neologismo italiano (ainda quase desconhecido no Brasil): vem de render-se, é a atitude de ceder para resolver conflitos, típico dos pacifistas. Essa propensão não se confunde com a nobre aspiração comum a todos os espíritos elevados de preservar a paz por meio de negociações dignas e acordos razoáveis, que não comportem a renúncia aos princípios cristãos.

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