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sexta-feira, 7 de junho de 2019

DO RESPEITO HUMANO


DO RESPEITO HUMANO



Que é o respeito humano? É a vergonha daquele que não se atreve a manifestar os seus sentimentos religiosos e piedosos porque, com isso, é escarnecido, insultado, perseguido.


I — Natureza do respeito humano

O respeito humano é o respeito pelas coisas humanas colocado acima do respeito pelas coisas de Deus; é a estima pelo homem preferida à estima por Deus. O respeito divino coloca-nos na presença de Deus, a Quem devemos conhecer, amar e servir porque é nosso Criador, Senhor, Juiz e Remunerador. O respeito humano é a negação de tudo isto. Transfere sacrilegamente para o homem os direitos e a honra que são reservados a Deus. O homem é considerado como senhor e juiz, e, por isso, toda a vida exterior é para lhe agradar.


II — Aspectos diversos do respeito humano

O respeito humano reveste tantas formas quantos são os nossos deveres.

1º Omissão do bem. — O respeito humano impede a prática sincera e fiel da nossa fé, fecha-nos a boca quando é preciso falar e paralisa os nossos esforços quando é preciso agir.  

Sabemos que a santa Missa é uma fonte de graças desde que assistamos a ela com edificação; todavia, na assistência à missa não estamos com a devida atenção e fervor porque não queremos dar nas vistas com a nossa devoção.  

Encontramos na Comunhão uma grande força contra os inimigos da nossa salvação, um ódio ao pecado, um zelo ardente para o bem, uma garante de perseverança; todavia, não nos aproximamos muitas vezes deste banquete divino porque tememos que nos censurem.  

Queremos fazer progressos na piedade e na virtude; mas para isso é preciso frequentar a confissão a fim de alcançarmos o perdão das nossas faltas, recebermos conselhos úteis e uma direção salutar; todavia, não nos confessamos com frequência porque tememos que escarneçam de nós.

2º Corrupção do bem. — O respeito humano infecciona tudo, mesmo o bem. Para que as nossas ações boas sejam meritórias devem ser feitas com intenção de agradar a Deus. Ora, o respeito humano inclina-nos e decide-nos a praticar o bem para agradar às criaturas. Portanto, o respeito humano tira o caráter sobrenatural às nossas ações. Dá preferência do homem a Deus.

3º Prática do mal. — O homem levado pelo respeito humano chega mesmo a praticar o mal para agradar os maus. Um companheiro aproxima-se de nós, convida-nos para os bailes, para reuniões profanas, para lugares perigosos e deixamo-nos arrastar pelo maldito companheiro até à boca do Inferno e não temos coragem de lhe dizer secamente: não quero, vai tu sozinho! 

4º Jactância do mal. — O respeito humano faz mesmo com que o homem se glorie com o mal que fez e até mesmo se glorie com faltas que não cometeu.

5º O respeito humano é um mal universal. — Um outro caráter do respeito humano é a sua universalidade. Por exemplo, o mentiroso, o voluptuoso, o colérico, eles têm estas paixões próprias: inimigos da verdade, da castidade, da mansidão; e no campo do respeito humano são inacessíveis a qualquer virtude. O respeito humano não apresenta o aspecto de um defeito particular, torna-se o foco de todos os vícios. Escravo do respeito humano, o homem é capaz de transgredir todos os Mandamentos de Deus e da Igreja, faltar a todos os deveres e praticar todo o mal.


III — Motivos do respeito humano

1º O mundo tem horror à verdade e ao bem — O mundo tem horror à verdade e ao bem e aos que representem estas coisas. O ideal do mundo é o mal. Ora o mal é a negação do bem. 

Moisés, que suportou tantas fadigas no governo de seiscentos mil homens, a ouvir as suas queixas e a apaziguar as suas discórdias, quando esperava do seu povo louvores e agradecimentos, ouve da boca de um pastor estas amargas palavras: “és néscio e doido em tomares sobre ti tantos negócios!”. 

Vasti[1], esposa de Assuero, ao invés de ser louvada pela compostura e modéstia, porque recusou fazer alarde da sua formosura perante a multidão dos convidados, a tiveram unicamente por cabeçuda e teimosa. 

Como queremos que os maus nos não tenham aversão se as nossas ações são uma repreensão contínua ao seu mau viver? Com a nossa piedade confundimos a sua falta de religião; com a nossa honestidade, a sua dissolução; com a nossa caridade, a sua avareza. Miram-se em nós como em espelhos e veem esses infelizes todas as suas fealdades. Que admira, pois, que nos desprezem, que nos escarneçam e maltratem, semelhantes ao camelo que, em vendo água clara e nela a sua enorme fealdade, revolve-a com os pés até turvá-la completamente?! “Os ímpios abominam os que andam pelo caminho reto” (Prov. 29,27). Assim como somos naturalmente levados a desculpar nos outros aquelas faltas que reconhecemos em nós mesmos, assim também, infelizmente, nos sentimos inclinados a desaprovar, ou, pelo menos, a desprezar nos outros as virtudes que não temos força de praticar. Eis aqui a verdadeira razão pela qual os maus murmuram das pessoas virtuosas.


2º O mundo quer perder as almas — O mundo sorri sarcasticamente e escarnece dos que têm religião e piedade porque ele quer prender e matar como outrora. Ele diz e faz como os irmãos de José: “Que quer este sonhador?”. E concluíram: “Lancemo-lo numa cisterna”. O cristão não deve temer o opróbrio dos homens. “Nolite timere opprobrium hominum” (Is 51,7). Um cristão deve manifestar que há nas suas convicções uma força maior do que todas as paixões dos adversários.


IV — Gravidade do respeito humano


Consideremos a gravidade do respeito humano em si mesmo e nas suas consequências.

1 — O respeito humano é a preferência do homem a Deus. 

O respeito humano é a ruína da ordem e da perfeição porque desvia o nosso pensamento, a nossa atenção de Deus para as criaturas. A razão e a fé dizem: Deus é o fim e o motivo de todos os nossos atos. O respeito humano diz: só devemos ter consideração pelo homem, pelos seus gostos, pelas suas opiniões, pelos seus caprichos.

2 — O respeito humano é uma fraqueza. 

O Padre Ventura[2] afirmava energicamente: “Ocultar os sentimentos da verdadeira fé, envergonhar-se de cumprir publicamente os preceitos, não é senão uma fraqueza, a maior de todas as fraquezas. É por isso que se encontra comumente nas almas pequenas”. 

3 — O respeito humano é uma fraqueza vergonhosa. 

Deus deu-nos um guia seguro, um juiz infalível das nossas ações: é a consciência, que nos ilumina e dirige em todos os nossos passos, nos louva ou censura conforme praticamos bem ou o mal. O escravo do respeito humano segue uma outra luz, obedece a uma outra regra. A sua luz e a sua regra são a opinião e o capricho de alguns homens.

4 — O respeito humano é uma fraqueza muito prejudicial à salvação. 

O respeito humano inutiliza os meios tão poderosos e eficazes de que Deus se serve para nos atrair a Si; convida-nos, pela Sua graça, a uma vida mais regular e mais santa, e nós mesmos temos bons desejos de abraçar esta vida. Porque resistimos às solicitações da graça? É o respeito humano que impede a ação da graça e asfixia a nossa boa vontade. 

5 — O respeito humano é uma traição. 

Devemos edificar uns aos outros. O que tem mais luz, mais virtude, deve irradiar estes bens em volta de si. Nosso Senhor Jesus Cristo diz: vós sois a luz e o sal da terra (Mt 5,13-14): luz que deve combater as trevas; sal que deve impedir a corrupção. Ora, o respeito humano contraria, destrói esta disposição de Deus, impede que a luz irradie, apaga-a; corrompe o sal; ajuda as trevas e o mal a espalharem-se por toda a parte.

6 — O respeito humano é a abdicação da personalidade humana. 

Deus determinou que o homem se conduzisse pela sua consciência, esclarecida pela lei divina, é nisto que está toda a sua dignidade de homem. Ora o homem que se deixa arrastar pelo respeito humano não pensa, não fala, não opera por si mesmo, segundo a sua consciência, torna-se escravo dos outros, pensa, fala e faz como eles. Pode conceber-se alguma coisa mais destruidor da dignidade ou personalidade humana? Não. 

7 — O respeito humano é a abdicação da dignidade de cristão. 

Um cristão pode dizer com São Paulo: eu vivo, mas verdadeiramente não sou eu já que vivo, é Jesus Cristo que vive em mim, é Jesus Cristo que pensa, fala e opera em mim (Gl 2,20). Ora o cristão possuído do respeito humano é um discípulo indigno, tem o nome de cristão e não se deixa conduzir por Jesus Cristo: Poderá dizer: eu vivo, mas não sou eu que vivo, é o tal companheiro insensato, todo ele é que vive em mim. Eu abdiquei da minha alma para substituí-la por uma alma desvairada, estúpida

8 — O respeito humano é uma escravidão vergonhosa. 

Se alguém quisesse fazer-nos uma observação sobre qualquer dos nossos defeitos dir-lhe-íamos: não se meta onde não é chamado. Porém, atacam as nossas virtudes e boas qualidades, e temos a baixeza de nos envergonhar de as defender.

9 — O respeito humano é uma apostasia infame. 

Foi o respeito humano que fez morrer o Filho de Deus. Pilatos teria sido inabalável às instâncias e gritos dos Judeus que pediam a morte de Jesus por estar convencido da inocência do Salvador, e da injustiça deles, mas, apenas o ameaçaram com César, toda a sua firmeza não pôde vencer o temor de desagradar a César. Ó respeito humano, exclama alguém, em quantos corações tens dado a morte a Cristo, e em quantos não O tens deixado nascer! Deixamos de ser de Deus ou receamos ser d'Ele, pelo temor do juízo dos homens”. Quem quiser ser amigo deste mundo perverso declara-se, por isso mesmo, inimigo de Deus.

10 — O respeito humano é causa de condenação eterna. 

1º Condenação dos homens.Ozanam[3], a quem aconselhavam um dia uma prudência muito tímida nas manifestações da sua fé, respondia: “Não, eu não ganharei nada em dissimular as minhas convicções; não adquiro a confiança daqueles que me conhecem e perderei a da juventude que me considera; isto é, não obterei a estima dos maus e perderei a dos bons”. O cristão fraco, tímido, engane-se nos seus cálculos, e acaba inevitavelmente por ver recusar o que tem sido objeto de todos os seus sacrifícios, o respeito dos outros. Aquele que falta aos juramentos de fidelidade a Deus não pode oferecer nenhuma garantia na confiança dos homens.

2º Condenação de Deus. — No Dia do Juízo, a sentença pronunciada sobre nós dependerá da maneira como tivermos compreendido o respeito humano e o respeito divino. “Eu confessarei, diante de meu Pai, aquele que me confessar diante dos homens”, diz Jesus, “e envergonhar-me-ei diante de meu Pai daquele que se tiver envergonhado de mim diante dos homens” (Mt 10,32-33). Jesus abomina, condena o mau cristão que recusou reconhecer a Sua soberania.


V – Preparação para a luta contra o respeito humano

1º Estudo. — Há uma grande falta de noções precisas e firmes sobre a religião. Devemos, pois, fazer um estudo pessoal, graduado, perseverante sobre Deus, Jesus Cristo e a Igreja, e sob a direção da mesma Santa Igreja de Cristo.

2º Reflexivo. — Todo o estudo deve ser acompanhado de reflexão. “A reflexão”, diz Rouzic[4], “é atmosfera intelectual que permite à verdade arraigar-se em nós”. Doutro modo, a verdade fica em nós à flor da alma, como uma semente lançada à superfície do solo e que é levada pelo vento.

3º Divisa. — Devemos tomar uma divisa que encarna, por assim dizer, a alma destas reflexões divinas, que devemos trazer muitas vezes à lembrança, sobretudo nas horas de luta, como por exemplo: “Non erubesco Evangelium” – “Eu não me envergonho do Evangelho” (Rm 1,16); ou esta outra: “Mihi autem pro minimo est ut a vobis judicer” – “Não faço caso algum dos vossos juízos a meu respeito” (1Cor 4,3). Assim falava com certa altivez um grande Santo diante dos gregos e dos romanos, diante da sua civilização e das suas divindades. “Deus e a minha consciência, eis os meus únicos juízes”.

4º Aliança. — Os aliados do cristão são Deus e o próximo.  

Deus é o principal aliado de todo o homem. Todavia, para vir a nós e nos armar com a Sua força, devemos recorrer:

a) à oração. — A oração é o tratado de aliança que determina a assistência divina. A oração põe a força de Deus à disposição da fraqueza humana, sobretudo a oração ao Espírito Santo, o inspirador do heroísmo dos Confessores e Mártires. A recitação piedosa e ardente do “Veni Sancte Spiritus[5] ou do “Veni Spiritus[6] dá à nossa alma um banho de energia e daí sai pronta para todos os combates.

b) à Comunhão. — Pela Comunhão digna, fervorosa, frequente, colocamos a força de Deus dentro de nós, e então podemos exclamar com São Paulo: “Cum infirmor tunc potens sum” e “Omnia possum in eo qui me confortat” – “Quando sou fraco é que sou forte” (2 Cor 12,10) e “Tudo posso nAquele que me fortalece” (Fl 4,13).

c) às tradições de família. — Depois de Deus, temos o nosso próximo como aliado. Há homens maus ou fracos que nos provocam às ações do respeito humano. Há também homens fortes na virtude que nos encorajam ao respeito divino. Dos nossos antepassados para nós e de nós para os nossos descendentes, há laços de solidariedade. A educação recebida, o exemplo dado por nossos pais são outras tantas vozes a incutir-nos coragem no cumprimento dos nossos deveres religiosos, e assim devemos ser para os nossos vindouros. Pertencemos a famílias católicas de quem temos recebido sublimes lições e grandes exemplos que devemos seguir e imitar para não degenerarmos.


VI – Luta contra respeito humano

1º Defesa 

Quando estamos numa conversa em que a religião, a piedade, a caridade, a pureza ou outra virtude cristã são atacadas ou metidas a ridículo, ou quando nos é proposta a prática de um ato que a nossa consciência reprova; três atitudes são possíveis: o silêncio reprovador, o afastamento, a ofensiva

A abstenção silenciosa basta, às vezes, para mostrar que não se pactua com o erro e para protestar contra o mal.  

O afastamento, o abandono de uma má companhia, onde a lei de Deus é transgredida é também um protesto contra o mal. A liberdade de se ir embora, de se afastar, dizia Lacordaire[7], é antes de tudo, liberdade de um homem que tem sentimentos nobres; e desgraçado daquele que a não possui, ou que se não atreve a fazer uso dela.

2º Ofensiva

A ofensiva, a resposta, é o terceiro meio de resistir. Quando, pois, são atacadas as verdades em que nós acreditamos ou as virtudes que praticamos, o dever é, muitas vezes, reagir diretamente, ripostar[8]

Uma resposta bem dada anima os bons, abala os indecisos, ganha os indiferentes e lança no espírito dos maus centelhas de luz que lhes mostram o bom caminho e que, em tempo oportuno, seguirão, porque, graças a Deus, a verdade e o bem têm os seus triunfos. Em 1844, Montalembert[9] dizia na Câmara dos Pares: “Nós somos filhos de Mártires, não temos medo dos filhos de Juliano Apóstata; somos descendentes dos Cruzados, não recuamos diante dos descendentes de Voltaire.”  

Os maus, muitas vezes, não falam, não operam, não triunfam senão devido à abdicação dos bons que se calam, que tem medo. Basta proclamarmos briosamente: Sou cristão! Esta palavra tem vencido o mundo e vence e desarma os nossos inimigos. Quando se quer verdadeiramente ganhar terreno e obter a vitória final, é preciso tomar a ofensivaNas lutas morais como nas guerras entre as nações, os triunfos decisivos pertencem àqueles que tomam a ofensiva. Não devemos, pois, dissimular a nossa bandeira, mas mostrá-la ostensivamente; não deixemos de praticar um ato religioso, mas façamo-lo com toda a perfeição e com reta intenção, isto é, para maior glória de Deus.

Por quanto tempo da nossa vida durarão tais insultos e tão trabalhoso viver? Até o dia de Juízo e não mais. Sabeis o que me lembra quando trato de representar essa alegria? Afigura-me ver Noé encerrado na arca misteriosa. Nunca homem comum algum foi tão insultado como o bondoso Noé, vivendo no meio de um povo desenfreado, sem Deus, sem Mandamentos, sem vergonha; brilhava em toda a espécie de virtudes, e por isso era escarnecido ou insultado por todos. Quando, porém, Deus mandou a Noé que construísse uma arca ou casa flutuante para nela se refugiar e se salvar do Dilúvio Universal: oh!, que ocasião esta para gracejarem com o servo de Deus. Quando viram passar anos e anos, e Noé cada vez mais afadigado na construção da arca, e sem o menor vestígio de castigo, apesar das tremendas ameaças de Noé, em nome do Senhor, oh!, então, reuniam-se em volta da arca, escarneciam do santo velho, chamando-lhe, à boca cheia, mentiroso e doido! E ao verem depois que, muito às pressas, se metia na arca com toda a sua família, como cresciam as chutas e gargalhadas, os gracejos e insultos!

Olhe o dementado velho, nem ao menos quer respirar livremente o ar que Deus lhe concedeu, ele mesmo preparou a sepultura e se enterra em vida. Com certeza, é doido: teme que as águas o afoguem e não teme que o despedacem as feras, leões e tigres!

Nestes e semelhantes termos, escarneciam de Noé enquanto ele entrava para a arca. Tão cegos estavam e tão empedernidos eram os seus corações. Quando, porém, dali a sete dias, começou a chover torrencialmente, a transbordarem os rios, a espraiar-se o mar, e as águas elevarem-se acima das mais altas montanhas, que cena tão diferente da primeira, que sentimentos tão contrários! Entre o fragor das tempestuosas nuvens que parecia o estrondo de cem batalhas, entre o sibilar dos ventos que, gemendo tristemente, pereciam lamentar a agonia do mundo entre a gritaria dos que fugiam e o clamor dos que se afogavam e os ais dos que por toda a parte morriam, diz Segneri[10], só a arca do varão justo ia intrépida entre tantos sobressaltos e segura no meio da desolação universal: não é um cárcere de ignomínia é um carro triunfal. 

As sortes estão trocadas e mudadas a fortuna. Vós escarneceis de mim, dizia o servo de Deus, porque não tomava parte nos vossos torpes passatempos; motejáveis de mim com delírio porque me fui encerrar neste cárcere. Não é mais invejável a sorte de Noé do que a sorte dos malvados escarnecedores? Tal será, pois, a nossa sorte se permanecermos firmes entre os escárnios dos maus. Riem-se agora de nós porque recusamos fazer-lhes companhia nas festas e diversões, motejam-nos porque preferimos passar os dias encerrados em casa ou nalguma igreja, a passear por praças e jardins atrás das vaidades do mundo ou do desenfreamento da carne. Mas ai! Quão breve é o seu riso! Quão passageiras as suas zombarias! Quando estalar aquela tempestade, não de água, mas de fogo, onde se refugiarão os infelizes? Quererão alcançar um cantinho na nossa arca, mas em vão.


VII – Vantagens da vitória sobre o respeito humano

1º — Mostramos que somos cristãos

Nós, cristãos, por quem Jesus Cristo deu a Sua vida, a quem Jesus Cristo trata não como servos, mas como amigos, devemos preferir a qualidade inestimável e o belo nome de “cristão” a toda a glória humana; devemos confessar publicamente o Seu Santo Nome, não somente no conselho dos justos, mas ainda, e principalmente, no meio da assembleia dos pecadores; cumprir a Sua lei, praticar os nossos deveres sem temores, nem respeitos humanos.

Quais são as ameaças ou os suplícios que detém um cristão na confissão da sua fé, no serviço de Deus? Ameaçado de lhe tirarem os bens, São João Crisóstomo responde: “Tudo o que possuo é dos pobres; tirando-mos não fazeis injustiça a mim, mas aos pobres”. Ameaçado na sua liberdade, responde: “Eu beijarei com amor as cadeias que me prendem, porque ao menos sou livre em Jesus Cristo”. Ameaçado de exílio, responde: “A minha verdadeira pátria é o Céu”. Ameaçado na sua vida, responde: “Chegarei mais depressa ao Céu, a ver a Deus, único fim de todos os meus desejos”. E esta atitude de São João Crisóstomo tem sido a de doze milhões de Mártires e de uma multidão inumerável de Cristãos a quem nem a pobreza, nem o pecado, nem a morte, nem a fraqueza, nem as cruzes, nem os dentes das feras podem levar a praticar um ato de condescendência reprovado pela sua consciência – Se assim faço, nego a Cristo! Já os cristãos fracos temem um sorriso à flor dos lábios, uma troça. 

2º — A fé que arde gera deleite 

Durante as perseguições dos primeiros séculos do Cristianismo, um humilde cristão, São Barlaão[11], foi preso e conduzido diante da estátua de Júpiter. Dizem-lhe aí: 
– “Lança incenso no fogo e sacrifica aos nossos deuses!”. 
– “Não!”, responde ele energicamente. 
Começam a torturá-lo; não se queixa. Levantam-lhe o braço de maneira que a mão fique, precisamente, em cima da chama e põem-lhe incenso na mão:
– “Deixa cair o incenso e deixamos-te ir em liberdade!”. 
– “Não!”, responde ainda Barlaão. E fica imóvel de braço estendido.
A chama eleva-se e começa a lamber a mão; o incenso fumega já; mas o homem não se move. A mão queima-se com o incenso, mas Barlaão prefere o martírio a renunciar à sua fé, ao seu Deus. 

3º — Um coração de bronze!

Quando Madalena soube que Jesus se encontrava em casa de Simão, tomou um vaso de alabastro cheio de aromas e foi a toda a pressa derramá-lo sobre a cabeça do Salvador. E logo começaram muitos a murmurar, a indignar-se, a ranger os dentes, dizendo: “Ut quid perditio haec?” – “Para que este desperdício?” (Mt 26,8). Quantos pobres morrem de fome e de frio e que ela poderia alimentar e vestir se, em vez de ir comprar aromas, fosse comprar pão e agasalhos para os pobres!... Ela que tinha gasto tanto dinheiro em joias, banquetes e diversões! Pensais que antigamente alguém a chamava “esbanjadora”, cara a cara? Pelo contrário, todos aplaudiam os seus excessos. Quando, porém, faz das suas profanidades um ato de culto ao seu Deus a Quem tão tarde começou a amar, eis que imediatamente se soltam as línguas em mil afrontas, assanham-se contra ela e ultrajam a pobre mulher. Vejamos, por aqui, quanto parecida foi, em todos os tempos, a sorte daqueles que se resolveram a voltar as costas ao mundo e servir generosamente a Jesus Cristo. “Todos aqueles que querem viver piedosamente em Jesus Cristo”, diz o Apóstolo, “hão de sofrer perseguição” (2 Tm 3,12). 

4º — Tornamo-nos semelhantes a Jesus Cristo

Na vida de Santo Henrique Suso[12], conta-se que o servo de Deus fazia as mais ásperas penitências; mas, em certa ocasião, disse-lhe Deus que ainda tinha de sofrer coisa de maior merecimento e custo e que, para saber o que era, abrisse a porta da cela. Assim o fez. E viu no dormitório um cão com um trapo na boca que umas vezes o mordia e outras vezes o lançava para um canto. Disse-lhe Nosso Senhor que se dispusesse a ser tratado como aquele trapo e aprendesse dea sofrer, ainda que o desprezassem e mordessem com injúrias. Começaram, em breve, as perseguições, e aos olhos do mundo, parecia um trapo desprezível, mordido por cães furiosos, e aos olhos de Deus era uma pedra preciosa de muito valor que com aqueles golpes ficava cada vez mais polida. 

Por que é que valem mais as perseguições e injúrias sofridas com humildade e paciência do que penitências feitas com rigorosa austeridade? É que assim nos tornamos mais semelhantes a Jesus Cristo! Foi humilhado na Sua divindade na Sua Alma e no Seu Corpo. Portanto, a tinta das injúrias, que a muitos só parece lançar no descrédito, é na verdade, a tinta com que se tem feito preciosas cópias e retratos de Jesus Cristo.

5º — Alcançamos muitos méritos

Qual foi o principal merecimento do Patriarca Abraão no seu sacrifício? Foi a obediência pronta, heroica, em executar as ordens de Deus? Não: o principal mérito do santo Patriarca consistiu em não olhar ao que diriam, em desprezar com espírito magnânimo os ditos a que a sua obediência o expunha. Vendo-o tomar o cutelo, diriam: aquilo é um bárbaro; vendo-o descarregar o golpe, sem derramar uma lágrima, sem lançar um ai, sem desviar sequer o rosto, acrescentariam: aquilo é um tigre e não um homem, um algoz e não um pai! Não temeu, diz São Zenão[13], que o tivessem por cruel e filicida; antes, para mostrar a sua submissão, alegrava-se intimamente de Deus, Nosso Senhor, lhe ter ordenado sacrifício tão penoso. Está nisto o incomparável mérito do grande Patriarca. 

Imaginemos que todo o mundo, em vez de nos escarnecer e motejar, nos louvasse e aplaudisse por sermos cristãos. Neste caso, quem deve e a quem? Deus a nós ou nós a Deus? “Os devedores, somos nós a Deus”, diz São João Crisóstomo, “devedores lhe somos da honra que nos tributam; mas se somos escarnecidos e motejados por Sua causa, Deus se faz nosso devedor”. Que coisa podemos desejar mais do que ter o próprio Deus como “devedor”? Deus paga, cento por um, neste mundo e depois, o reino dos Céus. 


Reflexões e resoluções

Agora, com os olhos da minha alma fixos em Jesus Crucificado, faço reflexões sobre a virtude sobrenatural da fé e tomo as resoluções de desenvolver e aperfeiçoar em mim esta grande virtude pela oração, dizendo com os Apóstolos: 

Senhor, aumentai em mim a fé; pelo exercício constante praticado, frequentes atos de fé, como está escrito: “O justo viverá da fé” (Rm 1,17), e de professar sem temores nem respeitos humanos, de maneira que à hora da minha morte possa repetir como o Apóstolo São Paulo: “cursum consummavi fidem servavi” (2 Tm 4,7) Combati o bom combate, cheguei ao fim da minha vida e, durante toda ela, mostrei por obras que fui sempre verdadeiro cristão.

Maria Santíssima, minha boa Mãe, ajudai-me a ser fiel a estas resoluções. Assim seja.



Do Cônego Júlio Antônio dos Santos, “O Crucifixo, meu livro de estudos” — 1950


NOTAS DO BLOG

1 Sua história está registrada no Livro de Ester. Foi a primeira esposa de Assuero (Xerxes I), antecessora de Ester. O rei, embriagado em uma festa que estava dando em Susa, exigiu a presença da rainha usando apenas a coroa para mostrar aos homens presentes a beleza dela. Ela se recusa e, por sugestão do conselheiro real Memucã, que não quer que sua desobediência influencie as outras esposas do reino, é punida severamente com o repúdio e o banimento do reino. Ester é escolhida no lugar dela. 
Joaquim Ventura de Ráulica (1792-1861), padre jesuíta e depois teatino.  
Frederico Ozanam (1813 - 1853), leigo fundador das Conferências de São Vicente de Paulo. 
4 Padre Louis Rouzic. Cônego honorário d'Angoulême e de Versailles, capelão da Escola Sainte-Geneviève em Versailles, apóstolo dos jovens, colaborador da “Revue de la Jeunesse”, autor de uma vasta obra. 
5 “Veni Sancte Spiritus”, também chamada de “Sequência de Pentecostes” ou “Sequência de Ouro” (em latim “Sequentia Aurea”), é a sequência prescrita para a Missa de Pentecostes e sua Oitava. É cantada na Missa desde Pentecostes até o sábado seguinte. Encontrada em manuscritos dos séc. XI e XII, é atribuída ao Arcebispo da Cantuária, Stephen Langton, que a teria composto por volta do ano de 1210 e enviado ao Papa Inocêncio III, que endossou o uso do canto na Liturgia romana sendo, por esse motivo, creditado pela composição. “Veni Sancte Spiritus” é uma das quatro sequências medievais que foram preservadas no Missal Romano publicado em 1570, fruto do Concílio de Trento (1545-63). Esta sequência, composta originalmente para canto gregoriano, ganhou versões de diversos compositores, sobretudo os renascentistas, como o polifônico Josquin des Prez e o Padre brasileiro José Maurício Nunes Garcia. No final, a oração. 
6 O “Veni Creator Spiritus” é um hino da Igreja Católica, em honra ao Espírito Santo. Desde que foi composto, no século IX, pelo Abade Rabano Mauro, o “Veni Creator Spiritus” nunca deixou de ser ressoado na Igreja em momentos importantes, principalmente na Festa de Pentecostes, mas também na entrada dos cardeais para a Capela Sistina no conclave para escolha de um Papa, na consagração de bispos, na ordenação sacerdotal, no sacramento da Confirmação, na dedicação de templos, na celebração de sínodo ou concílios, na coroação de reis, na profissão de fé de membros de instituições religiosas e em outros eventos solenes. Recitado no primeiro dia do ano, com a intenção de invocar o Espírito Santo sobre o ano que se inicia, lucra-se a indulgência plenária. No final, a oração. 
Henri Lacordaire (1802-1861), contemporâneo de Frederico Ozanam, foi um padre dominicano, jornalista, educador, deputado e acadêmico. Restaurou a Ordem Dominicana na França, suprimida em 1790. Defendia um catolicismo liberal. 
8 Argumentar contrariamente; replicar, retrucar. 
Charles Forbes René, conde de Montalembert (1810 - 1870) foi um político, jornalista, historiador e filosofo francês. Contemporâneo de Lacordaire, era um teórico do catolicismo liberal. 
10 Paolo Segneri S.J. (1624 - 1694) foi um sacerdote jesuíta italiano, pregador e orador sacro, missionário e escritor sobre ascética. 
11 Santo eremita inscrito no Martirologio Romano, aos 27 de novembro, junto com São Josafá. Josafá era o filho de um soberano indiano pagão, que tentou inutilmente impedir que o príncipe se convertesse ao Cristianismo. No fim, o pai e os súditos também se converteram por causa da firmeza de fé de São Josafá. A história da vida deles foi registrada pela primeira vez, ao que parece, por São João Crisóstomo, depois por Tiago de Voragine em sua “Legenda Áurea”, e pelos poetas Bernardo Pulci e Lope de Vega, entre outros. Estão imortalizados no Batistério de Parma
12 Na verdade, o místico e teólogo Henrique Suso (1295-1366), considerado já santo em vida, e cujo culto permaneceu intacto por séculos, foi beatificado pelo Papa Gregório XVI, em 1831. O Martirologio Romano o registra a 2 de março. 

13 Foi ou um dos primeiros bispos de Verona e um mártir. Combateu o arianismo. Morreu em Verona a 12 de abril de 371. Deixou uma obra de 90 sermões. 


APÊNDICE 

Veni, Sancte Spiritus

Veni, Sancte Spiritus,
et emitte caelitus
lucis tuae radium.

Veni, pater pauperum,
veni, dator munerum
veni, lumen cordium.

Consolator optime,
dulcis hospes animae,
dulce refrigerium.

In labore requies,
in aestu temperies
in fletu solatium.

O lux beatissima,
reple cordis intima
tuorum fidelium.

Sine tuo numine,
nihil est in homine,
nihil est innoxium.

Lava quod est sordidum,
riga quod est aridum,
sana quod est saucium.

Flecte quod est rigidum,
fove quod est frigidum,
rege quod est devium.

Da tuis fidelibus,
in te confidentibus,
sacrum septenarium.

Da virtutis meritum,
da salutis exitum,
da perenne gaudium.
Amen. Alleluia. 



Veni, Creator Spiritus

Veni, Creator Spiritus,
mentes tuorum visita,
imple superna gratia,
quae tu creasti, pectora.

Qui diceris Paraclitus,
altissimi donum Dei,
fons vivus, ignis, caritas
et spiritalis unctio.

Tu, septiformis munere,
dig[i]tus paternae dexterae,
Tu rite promissum Patris,
sermone ditans guttura.

Accende lumen sensibus;
infund[e] amorem cordibus;
infirma nostri corporis
virtute firmans perpeti.

Hostem repellas longius,
pacemque dones protinus:
ductore sic te praevio
vitemus omne noxium.

Per Te sciamus da Patrem,
noscamus atque Filium;
Tequ[e] utriusque Spiritum
credamus omni tempore.

Deo Patri sit gloria
et Filio, qu[i] a mortuis
surrexit, ac Paraclito
in saeculorum saecula.


       

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