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domingo, 30 de novembro de 2014

DA CONFISSÃO PERFEITA (III)

Edição de referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.
   


Sermão da Terceira Dominga da Quaresma

NA CAPELA REAL. ANO 1655


Cum ejecisset daemonium, locutus est mutus, et admiratae sunt turbae. [1]

  




III

Confessionário geral de um ministro cristão: Quis? Quem sou eu? O escrúpulo dos cargos. Quantos ofícios tenho? Assim como o sol, o homem não pode presidir a mais de um hemisfério. A Adão foram dados três ofícios, dos quais não soube dar conta. Escrúpulos da alma santa dos Cânticos e de Moisés, grão-ministro de Deus e de sua república.

Suposto pois que há confissões que merecem ser confessadas, bem será que desçamos com a nossa admiração a fazer um exame particular delas, para que cada um conheça melhor os defeitos das suas. E para que o exame se acomode ao auditório, não será das consciências de todos os estados, senão só dos que têm o estado à sua conta. Será um confessionário geral de um ministro cristão. Os teólogos morais reduzem ordinariamente este modo de exame a sete títulos: Quis? Quid? Ubi? Quibus auxiliis? Cur? Quomodo? Quando?[7] A mesma ordem seguiremos, eu para maior clareza do discurso, vós para maior firmeza de memória. Deus nos ajude.

Quis? Quem sou eu? Isto se deve perguntar a si mesmo um ministro, ou seja Arão secular, ou seja Arão eclesiástico. Eu sou um desembargador da casa da suplicação, dos agravos, do paço. Sou um procurador da coroa. Sou um chanceler-mor. Sou um regedor da justiça. Sou um conselheiro de Estado, de guerra, do ultramar, dos três estados. Sou um vedor da fazenda. Sou um presidente da câmara, do paço, da mesa da consciência. Sou um secretário de estado, das mercês, do expediente. Sou um inquisidor. Sou um deputado. Sou um bispo. Sou um governador de um bispado, etc. Bem está: já temos o ofício, mas o meu escrúpulo, ou a minha admiração, não está no ofício, senão no um. Tendes um só destes ofícios, ou tendes muitos? Há sujeitos na nossa corte que têm lugar em três e quatro tribunais: que têm quatro, que têm seis, que têm oito, que têm dez ofícios. Este ministro universal não pergunto como vive, nem quando vive. Não pergunto como acode a suas obrigações, nem quando acode a elas? Só pergunto como se confessa? Quando Deus deu forma ao governo do mundo, pôs no céu aqueles dois grandes planetas, o sol c a lua, e deu a cada um deles uma presidência: ao sol, a presidência do dia: Luminare majus, ut praeesset diei; e à lua a presidência da noite: Luminare minus, ut præesset nocti.[8] E por que fez Deus esta repartição? Porventura por que se não queixasse a lua e as estrelas? Não, porque com o sol ninguém tinha competência, nem podia ter justa queixa. Pois, se o sol tão conhecidamente excedia a tudo quanto havia no céu, por que não proveu Deus nele ambas as presidências? Por que lhe não leu ambos os ofícios? Porque ninguém pode fazer bem dois ofícios, ainda que seja o mesmo sol. O mesmo sol, quando alumia um hemisfério, deixa o outro às escuras.E que haja de haver homem com dez hemisférios, e que cuide, ou se cuide, que eu todos pode alumiar? Não vos admiro a capacidade do talento; a da consciência sim.

Dir-me-eis, como doutos que deveis ser, que no mesmo tempo em que Deus deu uma só presidência e um só hemisfério ao sol, deu três presidências e três hemisférios a Adão. Uma presidência no mar, para que governasse os peixes; outra previdência no ar, para que governasse as aves; outra presidência na terra, para que governasse os outros animais: Et praesit piscibus maris, et volatilibus caeli, et bestiis, universaeque terrae (Gên. I, 26). E o mesmo é governar a animais que governar a homens? E o mesmo é o estado da inocência, em que então estava Adão, e o estado da natureza corrupta e corruptíssima em que estamos hoje? Mas quando tudo fora igual, o exemplo nem faz por vós, nem contra mim. Por vós não, porque naquele tempo não havia mais que um homem no mundo, e era força que ele tivesse muitos ofícios. Contra mim não, antes muito por mim, porque Adão com esses ofícios, bem se vê a boa conta que deles deu (Gên. 3, 23). Não eram passadas vinte quatro horas em que Adão servia os três ofícios, quando já tinha perdidos os ofícios, e perdido o mundo, e perdido a si, e perdidos a nós.[9] Se isto aconteceu a um homem que saía flamante das mãos de Deus, com justiça original com ciência infusa, que será aos que não são tão justos, nem tão cientes, e aos que têm outros originais e outras infusões? Não era cristão Platão, e mandava na sua república que nenhum oficial pudesse aprender duas artes. E a razão que dava era porque nenhum homem pode fazer bem dois ofícios. Se a capacidade humana é tão limitada que para fazer este barrete são necessários oito homens de artes e ofícios diferentes, um que crie a lã, outro que a tosquie, outro que a carde, outro que a fie, outro que a teça, outro que a tinja, outro que a tose, e outro que a corte e a cosa; se nas cidades bem ordenadas, o oficial que molda o ouro não pode lavrar a prata, se o que lavra a prata não pode bater o ferro, se o que bate o ferro não pode fundir o cobre, se o que funde o cobre não pode moldar o chumbo nem tornear o estanho, no governo dos homens, que são metais com uso de razão, no governo dos homens, que é a arte das artes, como se hão de ajuntar em um só homem, ou se hão de confundir nele, tantos ofícios? Se um mestre com carta de examinação dá má conta de um ofício mecânico, um homem, que muitas vezes não chegou a ser obreiro, como há de dar boa conta de tantos ofícios políticos? E que não faça disto consciência este homem? Que se confesse pela quaresma, e que continue a servir os mesmos ofícios, ou a servir-se deles, depois da Páscoa? Isto me admira!

Em semelhantes obrigações se viu metida uma hora a Alma Santa, mas vede como ela confessou a sua insuficiência, e depôs o seu escrúpulo: Posuerunt ¡me custodem in vineis; vineam meam non custodivi: Puseram-me por guarda das vinhas, e eu não guardei a minha vinha (Cânt. I, 6). Pois ao menos, Alma Santa, a vossa vinha, por vossa, por que a não guardaste? Porque a quem entregam muitas vinhas não pode guardar nenhuma, Assim o confessa uma alma que se quer salvar. Confessou a sua insuficiência, e confessa a sua culpa. Se alguém parece que pudera ter desculpa em tal caso, era essa alma, pelo que ela mesma diz: Posuerunt me: Puseram-me. –Ainda quando vos pusessem nesses ofícios, tínheis obrigação de depor os ofícios e confessar os erros. E que será quando vós sois o que vos pusestes neles, o que pretendestes, o que buscastes, o que os subornastes, e o que porventura os tirastes a outrem para os pôr em vós? Moisés, aquele grão-ministro de Deus e da sua república, metendo-lhe o mesmo Deus na mão a vara, e mandando-o que fosse libertar o povo, respondeu: Quis ego sum, ut vadam ad pharaonem (Êx. 3, Il): E quem sou eu, Senhor, ou que capacidade há em mim para esta comissão? – Mine quem missurus es (Ex. 4, 14): Mandai a quem vos possa servir como convém. – Oh! ministro verdadeiramente de Deus! Antes de aceitar o cargo, representou a insuficiência, e para que se visse que esta representação era consciência e não cortesia, repugnou uma e outra vez, e não aceitou senão depois que Deus lhe deu Arão por adjunto. Tinha já Moisés muitos anos de governo do povo, muitas cãs e muita experiência; tornou a fazer outra proposta a Deus, e quero referir os termos do memorial, para que se veja quão apertados foram: Non possum solus sustinere omnem hunc populum (Núm. 11, 14): Eu, Senhor, não posso só com o peso do governo deste povo. – Sin aliter tibi videtur, obsecro, ut interficias me, et inveniam gratiam in oculis tuis: E quando vossa divina majestade não for servido de me aliviar, peço e protesto a vossa divina majestade, me tire a vida, e receberei nisto muito grande mercê. – Não pediu o ofício para toda a vida, nem para muitas vidas, senão que lhe tirasse a vida só para não ter o ofício, e com muita razão, porque melhor é perder o ofício e a vida, que reter o oficio e perder a consciência. E que fez Deus neste caso? Mandou a Moisés que escolhesse setenta anciãos dos mais prudentes e autorizados do povo, e diz o texto que tirou Deus do espírito de Moisés, e repartiu dele por todos os setenta: Auferens de spiritu, qui erat in Moyse, et dans septuaginta viris (Núm. 11, 25). Eis aqui quem era aquele homem que se escusou do ofício. De maneira que um homem que vale por setenta homens, não se atreve a servir um só ofício? E vós, que vos fará Deus muita mercê que sejais um homem, atreveis-vos a servir setenta ofícios? Não louvo, nem condeno: admiro-me com as turbas: Et admiratae sunt turbae.
   
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Notas:
 [1] Depois de ter expelido o demônio, falou o mudo, e se admiraram as gentes (Lc. 11, 14). 
 [7] Quem? O quê? Onde? Com que meios? Por quê? Por que modo? Quando? 
 [8] Fez Deus dois grandes luzeiros, um maior, que presidisse ao dia, outro mais pequeno que presidisse a noite (Gên.1,16)
 [9] Irenaeus, Cyrillus, Epiphanius, Efren et cormnuniter Patres. 
 


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Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística: http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=28705#_ftnref1.



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