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domingo, 2 de dezembro de 2012

BRASIL - Dom Pedro II: A luz do baile



Há 185 anos – no dia 2 de dezembro de 1825 – nascia no Rio de Janeiro o Imperador Dom Pedro II. Para homenagear este ilustre brasileiro, na data que lembra o seu nascimento, publico abaixo uma crônica escrita por Monteiro Lobato, anos depois do golpe militar que implantou a República. Bom lembrar que Monteiro Lobato fora ardoroso republicano nos tempos da Monarquia.


"A Luz do Baile"  

Monteiro Lobato (1918)

Apenas a Marco Aurélio. 


A velha dinastia bragantina alcançou com ele esse apogeu de valor mental e moral que já brilhou em Roma, na família Antonina, com o advento de Marco Aurélio. Só lá, nesse período feliz da vida romana, é que se nos depara o sósia moral de Pedro II.

A sua função no formar da nacionalidade brasileira não está bem estudada. Era um ponto fixo, era uma coisa séria, um corpo como os há na natureza, dotados de força catalítica.
 
Agia pela presença.
 
O fato de existir na cúspide (1) da sociedade um símbolo vivo e ativo da Honestidade, do Equilíbrio, da Moderação, da Honra e do Dever, bastava para inocular no país em formação o vírus das melhores virtudes cívicas...
 
O juiz era honesto, senão por injunções da própria consciência, pela presença da Honestidade no trono. O político visava o bem público, se não por determinismo de virtudes pessoais, pela influência catalítica da virtude imperial. As minorias respiravam, a oposição possibilizava-se: o chefe permanente das oposições estava no trono. A justiça era um fato: havia no trono um juiz supremo e incorruptível. O peculatário, (2) o defraldador (3), o político negocista, o juiz venal, o soldado covarde, o funcionário relapso, o mau cidadão enfim, e mau por força de pendores congeniais (4), passava, muitas vezes, a vida inteira sem incidir num só deslize. A natureza o propelia ao crime, ao abuso, à extorsão, à violência, à iniquidade – mas sofreava as rédeas aos maus instintos a simples presença da Equidade e da Justiça no trono.
 
Ignorávamos isso na Monarquia.
 
Foi preciso que viesse a República, e que alijasse do trono a força catalítica, para patentear-se bem claro o curioso fenômeno.
 
A mesma gente, o mesmo juiz, o mesmo político, o mesmo soldado, o mesmo funcionário até 15 de novembro honesto, bem intencionado, bravo e cumpridor dos deveres, percebendo, na ausência do imperial freio, ordem de soltura, desaçamaram a alcatéia (6) dos maus instintos mantidos em quarentena. Daí, o contraste dia a dia mais frisante entre avida nacional sob Pedro II e a vida nacional sob qualquer das boas intenções quadrienais, que se revezam na curul (7) republicana.
 
Pedro II era a luz do baile.
 
Muita harmonia, respeito às damas, polidez de maneiras, jóias de arte sobre os consolos, dando ao conjunto uma impressão genérica de apuradíssima cultura social.
 
Extingue-se a luz. As senhoras sentem-se logo apalpadas, trocam-se tabefes, ouvem- se palavreados de tarimba (8), desaparecem as jóias…
 
Como, se era a mesma gente!
 
Sim, era a mesma gente. Mas gente em formação, com virtudes cívicas e morais em início de cristalização.
 
Mais um século de luz acesa, mais um século de catálise (9) imperial, e o processo cristalisatório se operaria completo. O animal, domesticado de vez, dispensaria o açamo (10). Consolidar-se-iam os costumes; enfibrar-se-ia o caráter. E do mau material humano com que nos formamos sairia, pela criação de uma segunda natureza, um povo capaz de ombrear-se com os mais apurados em cultura.
 
Para esta obra moderadora, organizadora, cristalizadora, ninguém mais capaz do que Pedro II; nenhuma forma de governo melhor do que sua monarquia.
 
Mas sobrevém, inopinada, a República.
 
Idealistas ininteligentes, emparceirados com a traição e a inconsciênciada força bruta, substabelecem-se numa procuração falsa e destroem a obra de Pedro II “em nome da nação”.
 
A nação não reage, inibida pela surpresa, e também porque lhe acenam logo com um programa de maravilhas, espécie de paraíso na terra.
 
É sempre assim. Não variam com a longitude nem com a latitude os processos psicológicos de assalto ao poder.
 
Aqui, assaltado o poder e conquistadas as posições, houve um geral arrancar de máscaras: Enfim, sós.
 
O “Alagoas” levava a bordo a luz importuna, a luz que empatava. E começou a revista de ano que há trinta anos diverte o país.
 
Que diverte, mas que envenena.
 
Que envenena e arruína.
 
O que havia de cristalização social dissolve-se; volta ao estado de geleia.
 
Sucedem-se na cena os atores, gingam-se as mesmas atitudes, murmuram-se as mesmas mensagens, reeditam-se eternas promessas.
 
O povo, cansado e descrente, farto de uma palhaceira destituída da mínima originalidade, cochila nas arquibancadas. Nem aplaude, nem assobia; dorme e sonha, entre outras coisas, com o inopinado surto em cena de um delegado de polícia louro e dez praças de uniforme desconhecido, que ponham fim a pantomima.
 
Não intervém para realizar por mãos próprias o “basta”, porque se sente tão gelatinoso como os atores. Nada o galvaniza, não o espanta nenhum jangotismo de tony.
 
Abudistado, (11) assiste até o indecoroso matar-se em massa.
 
As cenas do ano 1900, desenroladas na capital da República, durante a última epidemia, são “os noves fora nada” da obra do 15 de novembro. A máquina governamental, caríssima, não funciona nos momentos de crise. Não é feita para funcionar, senão para sugar com fúria acarina o corpo doente do animal empolgado.
 
De norte a sul o povo lamuria a sua desgraça e chora envergonhado o que perdeu.
 
Tinha um rei. Tem sátrapas.
 
Tinha dinheiro. Tem dívidas.
 
Tinha justiça. Tem cambalachos de toga.
 
Tinha parlamento. Tem antessalas de fâmulos (12).
 
Tinha o respeito do estrangeiro. Tem irrisão e desprezo.
 
Tinha moralidade. Tem o impudor deslavado.
 
Tinha soberania. Tem cônsules estrangeiros assessorando ministros.
 
Tinha estadistas. Tem pegas. (13)
 
Tinha vontade. Tem medo.
 
Tinha leis. Tem estado de sítio.
 
Tinha liberdade de imprensa. Tem censura.
 
Tinha brio. Tem fome.
 
Tinha Pedro II. Tem… Não tem!
 
Era. Não é.
 
Numa época terrível para a vida universal, em que cada país procura chefiar-se por intermédio dos homens de suprema energia, Wilson, Loyd George, Clemenceau, Ebert, o Brasil apalpa pescoço e não sente cabeça. Chegou a maravilha teratológica (14) duma acefalia inédita.
 
Anos atrás foi apresentado à Câmara dos Deputados um projeto de lei mandando trasladar os restos de Pedro II para a terra natal. A consciência desse ramo do Legislativo, num assomo de revivescência, votou, em apoteose, a lei. Mauricio de Lacerda definira, nesse dia, a política republicana, como feita de alcouces (15) e corrilhos (16).
 
A Câmara desmentiu-o por cinco votos. Mas o Senado confirmou-lhe o asserto, por quase unanimidade. Não convinha à turba desarcorhamphus (17), pacificamente acomodada em torno da presa a devorar – a Pátria – a transladação dos restos mortais. Quem sabe, conservariam essas cinzas algo da misteriosa força que caracterizou em vida Pedro II?
 
E viriam elas – agindo pela presença – perturbar a paz do festim? “Nada, não perturbemos nossa digestão” – pensou o Senado. E o projeto caiu.
 
O Brasil é uma nação a fazer. Ou refazer, já que destruíram os alicerces da primeira tentativa séria. Cortado o fio da evolução natural, baralhados os materiais, dispensados os operários honestos e hábeis, hipotecadas as suas rendas, a política de hoje vive de uma indústria nova: aluguel da consciência. Cada empresa estrangeira aluga uma série. De uma, a mais poderosa de todas, é sabido que chegou à perfeição de fichar (18) comercialmente o preço de homens públicos.
 
“É a deliquescência (19) final, o esverdear”… este estado de coisas é, entretanto, galvanizável. Bastaria repor na máquina a peça mestra que tudo coordena, essa forca catalítica sem a qual nenhum povo como o nosso, instável, em formação, produto dos mais díspares elementos étnicos, conseguiu jamais alcançar as etapas sucessivas da nacionalidade.
 
Um homem, uma continuidade de ação, um pulso – o bisneto de Marco Aurélio ou Rosas.
 
A força mansa que norteia o evoluir ou a força violenta que arrasa, desespera, e cria pela dor o instinto de defesa.
 
Tudo é preferível ao reino manhoso dos guzanos (20) de boca dupla – uma que mente ao povo, outra que o rói até aos ossos.
 
Esperemos em Anhangá, o deus brasileiro. Peçamos-lhe, neste mês dos aniversários imperiais, que ressuscite e reponha no seu lugar o espírito bom que neutralizava a influência dos espíritos maus.
 
É a nossa derradeira esperança, Anhangá…
 
:=:=:

(1) Cúspide – ápice, cume.
(2) Peculatário – fraudador
(3) Defraldador – que incita ao pecado ou delito
(4) Congenial – por índole
(5) Desaçamaram – soltaram (no contexto)
(6) Alcatéia – grupo de lobos
(7) Curul – Dizia-se de uma cadeira de marfim reservada outrora acertos magistrados romanos. Alta hierarquia, poder
(8) Tarimba – cama dura de soldados. No contexto, subentende-se linguagem usada entre soldados.
(9) A catálise é a mudança de velocidade de uma reação química devido à adição de uma substância (catalisador). Subentende-se educação do caráter nacional.
(10) freio, mordaça.
(11) Abudistado – deriva de budismo, ausência de ação.
(12) Servos
(13) Pegas – Prostitutas
(14) Deformado, monstruoso
(15) Prostíbulo
(16) Conciliábulo, conluio de intrigantes
(17) Urubus
(18) Fichar – fixar
(19) Dissolução
(20) Vermes
(21) espírito maligno, demônio 



Despercebidos de todo passaram-se este mês dois aniversários. A 2 de dezembro nasceu, a 5 de dezembro faleceu D. Pedro II. Quem foi este homem que não deixou lembranças neste país? Apenas um Imperador… Um Imperador que reinou apenas durante 58 anos… Tirano? Despótico? Equiparável a qualquer facínora coroado? Não.

Visto aqui e aqui. PDF
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