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sábado, 27 de outubro de 2012

Mons. Williamson: Carta a Mons. Fellay

Publico a Carta de Mons. Williamson ao sr. Fellay, que o "expulsou" da Neo-FSSPX, traduzida pelo blog Ascendens, fazendo a devida adequação ao Português brasileiro, com pequenas correções. Registro a necessidade de ler este documento, assim como o documento de "expulsão" de Dom Williamson, à luz do que afirmado por um canonista (especialista em Direito Canônico) no artigo "Fellay e o bom direito. Porque Dom Williamson não foi expulso da FSSPX":

Pediram-me simpaticamente que traduzisse a carta que Mons. Williamson enviou a Mons. Fellay no dia 19 de Outubro de 2012. Assim fiz com dificuldade, tanto que na nossa língua e bons-costumes há situações que se desdobram e têm as suas distinções necessárias. É principalmente o caso do tratamento pessoal que em outras línguas ou não existe ou existe com menor clareza e grau. É de notar que a parte da carta em que Mons. Williamson se apresenta como "réu" é feita na 3ª pessoa do singular (apropriadamente, e tal como no original). Trata-se de uma carta longa e histórica e que deveria ser lida pela hierarquia da Santa Igreja e pelos fiéis, independentemente das opiniões. O esforço central da tradução foi a conservação do sentido:

Londres, 19 de Outubro de 2012.

Excelência Reverendíssima:

Agradeço a carta de 4 de Outubro na qual me é comunicado da parte de V. Ex.ª Revma., da parte do Conselho Geral e do Capítulo Geral, a "constatação", "declaração" e "decisão" de que já não sou membro da Fraternidade S. Pio X. As razões apresentadas para V. Ex.ª Revma. ter afastado a este vosso súbdito são: que ele continuou a publicação dos "
Comentários Eleison"; que atacou as autoridades da Fraternidade; que fez um apostolado independente; que causou confusão entre os fiéis; que apoiou os sacerdotes rebeldes; que desobedeceu formalmente, de forma obstinada e "pertinaz"; que se separou da Fraternidade; que não se submete a nenhuma autoridade. Todas estas razões não podem resumir-se simplesmente em desobediência? Sem dúvida, ao longo dos últimos doze anos, este vosso servidor teve problemas e ações que, diante de Deus, foram impróprias e excessivas, mas creio que bastaria que lho tivessem assinalado em particular para ele poder desculpar-se, segundo a verdade e a justiça. Contudo, não haja dúvida, nós concordamos que o problema essencial não reside nos detalhes, que se resumem a uma palavra apenas: desobediência.
Para iniciar, notemos, então, quantas ordens mais ou menos desagradáveis o súbdito recebeu do seu Superior Geral, as quais cumpriu sem falta.

Em 2003, deixou um importante apostolado nos U.S.A. para ir para a Argentina. Em 2009 deixou o cargo de diretor do Seminário e foi-se da Argentina para emudecer-se num refúgio em Londres, sem palavra nem ministério episcopal, porque estava proibido. Não lhe restava mais que, virtualmente, exercer o ministério com os "Comentários Eleison", cuja recusa em suspendê-los constitui a maior parte desta "desobediência" que se lhe aponta. Desde 2009, foi permitido aos Superiores da Fraternidade desacreditá-lo e injuriá-lo tanto quanto quisessem, e em todo mundo alentaram a todo e qualquer membro da Fraternidade que o desejasse fazer também.


O vosso súdito pouco reagiu, preferindo o silêncio às confrontações escandalosas. Poderíamos dizer, igualmente, que se obstinou em não desobedecer. Mas adiante, porque nem está nisto o verdadeiro problema.

Em que radica, então, o verdadeiro problema? Para dar resposta, permita-se ao acusado olhar rapidamente a história da Fraternidade da qual pretendem separá-lo.

Pelo que parece, o problema central vem de longe.

CATOLICISMO E LIBERALISMO

Desde a Revolução Francesa dos finais do séc. XVIII, em muitos daqueles que tinham sido Estados cristãos, começou-se a desenvolver um novo ordenamento mundial, concebido pelos inimigos da Igreja, para assim expulsarem Deus da sua criação. Começou-se por substituir ao
Ancien Regime, ou ao Trono que sustinha o Altar, por meio da separação da Igreja e do Estado. Disto resultou uma estrutura social que é radicalmente nova e difícil para a Igreja, porque o Estado, ateu a partir de então, terminou por opor-se com todas as forças à religião de Deus.

Assim, os maçons quiseram substituir o verdadeiro culto de Deus pelo culto da liberdade, da qual o Estado neutro em religião não é mais que um instrumento.

Nos tempos modernos começa assim uma guerra implacável entre a religião de Deus, defendida pela Igreja Católica, e a nova religião do homem, liberado de Deus, e liberal.  Estas duas religiões são de tal forma inconciliáveis como Deus com o demónio.

Há que escolher entre o catolicismo e o liberalismo.

Mas o homem não quer ter de optar [entre duas coisas]. Quer as duas. No rastro da Revolução, encontramos a Felicité de Lamennais, que inventou o catolicismo liberal, e, a partir desse momento, a conciliação do inconciliável converte-se em moeda corrente no interior da Igreja.

Durante 120 anos, a misericórdia de Deus deu à sua Igreja uma série de papas, de Gregório XVI a Pio XII, os quais em sua maioria viram claramente e se mantiveram firmes, mas um número crescente de fiéis inclinavam-se a essa independência relativamente a Deus, e dando-se mais aos prazeres materiais que o catolicismo liberal lhe ia facilitando gradualmente. Uma corrupção progressiva chegou aos bispos e sacerdotes, e então Deus terminou por permitir-lhes escolher o tipo de papas que preferissem, a saber, os que parecem ser católicos, mas que, na realidade, sejam liberais, os que falam à direita, mas atuam pela esquerda, que se caracterizam então pela contradição, a ambiguidade, a dialéctica hegeliana e, em breve, a mentira.

Esta é a Neo-Igreja do Vaticano II.

Não poderia ser de outra maneira.


Não é mais que um sonho aquele de reconciliação entre realidades inconciliáveis.

Mas Deus - palavra de Sto. Agostinho - não abandona as almas que não querem abandoná-l'O, e assim Ele vem em auxílio das poucas almas católicas restantes que se negam a seguir a acomodatícia apostasia do Vaticano II. Ele suscita um Arcebispo que resistirá à traição dos prelados conciliares. Respeitando a realidade, não buscando conciliar o inconciliável, negando-se a sonhar, este Arcebispo fala com claridade, coerência e verdade que faz com que as ovelhas reconheçam a voz do divino Mestre. A Fraternidade sacerdotal que ele funda para formar sacerdotes autênticamente católicos começa em pequena escala, mas rejeitando visivelmente os erros conciliares e o seu fundamento que foi o catolicismo liberal, atrai aos verdadeiros católicos em todo o mundo, e constitui assim a coluna vertebral de todo um movimento na Igreja que chamaram de Tradicionalismo.

Mas esse movimento é insuportável para os homens da Neo-Igreja, que querem substituir o Catolicismo pelo Catolicismo liberal.

Auxiliados pelos meios de comunicação e governos, eles fizeram tudo para desacreditar, desonrar e desterrar o valente Arcebispo. Em 1976, Paulo VI suspendeu-o  a Divinis; em 1988, João Paulo II o "excomungou". Este Arcebispo exasperava soberanamente aos papas conciliares, porque sua voz efetivamente elevava a verdade mais alto e arruinava o rol de falsidades, o que os colocava em perigo de traição. E sob perseguição, e "excomunhão", manteve-se firme, e com ele muitos sacerdotes da sua Fraternidade.

Esta fidelidade à verdade obtém de Deus para a Fraternidade 12 anos de paz interior e de prosperidade exterior. Em 1991, o grande Arcebispo morre, mas, todavia, durante nove anos, a sua obra continua também na fidelidade dos princípios antiliberais, sobre os quais ele a fundou.

Então, que farão os romanos conciliares para superar esta resistência? Eles trocaram paulada por cenoura.

DESDE 2000, A FRATERNIDADE MUDOU DE DIREÇÃO

No ano 2000, uma grande peregrinação da Fraternidade para o Ano Jubilar mostra nas basílicas e nas ruas de Roma a piedade e o poder da Fraternidade. Por isso, os romanos ficaram impressionados. Um cardeal convida os bispos a um pequeno-almoço suntuoso em sua casa, convite que foi aceito por três deles. Imediatamente depois deste pequeno-almoço de aparência fraternal, os arrefecidos contatos entre Roma e a Fraternidade, depois de 12 anos passados, foram retomados, e começa assim a poderosa sedução dos botões escarlate e  pisos marmóreos, por assim dizer.


Os contatos acendem-se tão rapidamente que, lá para o final do ano, muitos sacerdotes e fiéis da Tradição clamavam já por uma conciliação entre a Tradição católica e o Concílio liberal. Esta conciliação não tem êxito no momento, mas a linguagem do quartel general da Fraternidade, em Menzingen, começa a mudar, e nos 12 anos seguintes se mostrará cada vez menos hostil a Roma, e é mais acolhedora para as autoridades da igreja conciliar, aos meios e seu mundo.

Na medida em que a conciliação dos inconciliáveis se prepara à cabeça da Fraternidade, no seu corpo de sacerdotes e laicos a atitude manifesta-se cada vez mais benigna para com os papas e a Igreja conciliar, a tudo o que é mundano e liberal. Afinal, o mundo moderno que nos rodeias é tão mau como no-lo faziam crer?

Este avançar do liberalismo no interior da Fraternidade, percebido por uma minoria de sacerdotes e de fiéis, mas aparentemente imperceptível para a grande maioria, apanhou a muitos, na primavera deste ano, logo após o fracasso das discussões doutrinais na primavera de 2011. A política católica do "não ao acordo prático sem acordo doutrinal" converteu-se, de um dia para o outro, na política liberal de "não ao acordo doutrinal, logo, sim a um acordo pratico". Então, em meados de Abril, o Superior Geral ofereceu a Roma, como base de um acordo prático, um texto ambíguo abertamente favorável a esta "hermenêutica da continuidade" que é a bem amada receita de Bento XVI para conciliar, precisamente, o Concílio com a Tradição! "É necessário um novo pensamento" diria o Superior Geral, em meados de Maio, aos sacerdotes da Fraternidade do distrito de Áustria. Noutras palavras, o chefe da Fraternidade fundada em 1970, para resistir às novidade do Concílio, propõe conciliação com o Concílio.

Hoje em dia, ela (a FSSPX) é já conciliante. Amanhã, deverá fazer-se plenamente conciliar!

Apenas se pode concluir que a obra de Mons. Lefebvre foi conduzida a colocar entre parêntesis os próprios princípios sobre os quais ele a fundou, qual sedução fantasiosa do nosso mundo sem Deus, modernista e liberal.

Contudo, a realidade não se deixa dobrar pelas fantasias, e faz parte da realidade que não se possam deixar os princípios de um fundador sem desfazer sua fundação. Um fundador tem as graças particulares que nenhum de seus sucessores tem. Como escreveu o Padre Pio, quando os superiores da sua Congregação desataram a "renová-la" em conformidade com o novo pensamento do Concílio recém encerrado: "Que fazem vocês da Fraternidade?" O Superior Geral, o Conselho Geral e o Capítulo Geral da FSSPX quiseram reter a Mons. Lefebvre como mascote, contudo têm um novo pensamento que passa ao lado das razões gravíssimas pelas quais ele fundou a Fraternidade. Eles a conduzem à ruína por causa da traição pelo menos objetiva, totalmente paralela à do Vaticano II. Mas sejamos justos e sem exageros. Desde o princípio desta queda lenta da Fraternidade, sempre houve sacerdotes e fiéis que viram claramente e que fizeram o que puderam para resistir. Na primavera deste ano, esta resistência tomou uma certa consistência e amplitude, de modo que o Capítulo Geral do mês de Julho colocou pelo menos um entrave no percurso do ralliement. Mas este entrave fará parar? Teme-se que não. Diante de cerca de quarenta sacerdotes da Fraternidade, reunidos em retiro sacerdotal em Ecône, no mês de Setembro, o Superior Geral, referindo-se à política romana confessou: "Enganei-me", de quem é a culpa?, "Os romanos enganaram-me". Igualmente, desta grave crise de primavera, resultou "uma grande desconfiança na Fraternidade", disse ele que haveria que "reparar com atos e não apenas com palavras", mas de quem é a culpa? Até agora, as suas ações desde Setembro, incluindo esta carta do 4 de Outubro, indicam que se desenvolve contra os sacerdotes e laicos que não tiveram confiança nele, seu chefe. Depois do Capítulo, como antes, parece que [Fellay] não suporta nenhuma oposição à sua política conciliadora e conciliar.

A TRADIÇÃO CATÓLICA E O VATICANO II SÃO INCONCILIÁVEIS
Eis a razão pela qual o Superior Geral deu várias vezes ordem formal para encerramento dos "Comentários Eleison". Pois estes "comentários", em várias ocasiões, criticaram a política conciliadora em direção a Roma por parte das autoridades da Fraternidade, e por tais comentários foram implicitamente atacados. Por isso, se, nessa crítica e ataques, houve faltas à norma do respeito ao seu ofício ou à sua pessoa, peço perdão com todo o gosto a quem o deva, mas creio que basta percorrer os números concernentes aos "Comentários" para constatar que a crítica e ataques permaneceram regularmente impessoais, porque se dirigem muito além do meramente pessoal.

Quanto ao grande problema que em muito ultrapassa as pessoas, consideremos a confusão que reina atualmente na Igreja e no mundo, e que ameaça a salvação eterna de uma quantidade inumerável de almas. Não é dever de um Bispo identificar as verdadeiras raízes de tal confusão e denunciá-las publicamente?

Quantos mais Bispos no mundo viram claramente como Mons. Lefebvre e dão um ensinamento que corresponde com tal clareza? Quantos deles ensinam ainda a doutrina católica tal como é ela?

Não são pouquíssimos? Então? É este o momento de tentar silenciar um Bispo que o faz, como o prova o número de tantas almas que recebe o "Comentário" como uma tábua de salvação? Como outro Bispo pode querer encerrá-los, ele mesmo que, diante dos seus sacerdotes, e a respeito das mesmas grandes questões, admite ter-se deixado enganar por muitos anos?

Da mesma forma, com efeito, se ao Bispo refratário se lhe permitiu - por primeira vez em quase quatro anos - fazer  um apostolado independente, como podem contestá-lo por ter aceito um convite, independentemente da Fraternidade, para confirmar [crismar] e pregar uma palavra de verdade? Não é a função  de um Bispo? As suas palavras no Brasil não foram de "confusão", senão para os que seguem o erro reconhecido e supracitado.

É justo se parece que ele, depois de tantos anos, se separa da Fraternidade, mas separa-se sim da Fraternidade conciliadora e não daquela fundada por Mons. Lefebvre. E, se aparenta mostrar-se insubordinado a qualquer exercício da autoridade dos chefes da Franternidade, é também justo [que pareça], mas só relativamente às ordens contrárias aos objetivos pelos quais ela foi fundada. Portanto, fora do mando de encerramento dos "comentários", quais foram as ordens a respeito das quais se pode dizer dizer que ele foi culpável por desobediência "formal, obstinada e pertinaz"? Há outra mais? A desobediência de Mons. Lefebvre, que não foi senão para aqueles atos da autoridade dos chefes da Igreja que iam no sentido de destruição da Igreja, a sua desobediência era mais aparente que real. Igualmente, a "desobediência" daquele que não quis fechar os "Comentários" é mais aparente que real.

Portanto, a história repete-se, e o diabo sempre volta à carga. Tal como anteriormente quando o Concílio conciliar tentou conciliar a Igreja Católica com o mundo moderno, assim hoje se diria que Bento XVI e o Superior Geral querem, os dois, conciliar a Tradição católica com o Concílio; assim, amanhã, se Deus não impedir, os chefes da Resistência católica buscarão reconciliá-la com a Tradição já conciliar.

MONS. FELLAY É QUEM DEVE RENUNCIAR!

Dado isto, Senhor Superior Geral, V. Ex.ª Revma. poderá certamente proceder à expulsão, porque os meus argumentos obviamente não o irão persuadir, mas esta expulsão será mais aparente que real. Eu sou membro da Fraternidade de Mons. Lefebvre pelo meu compromisso perpétuo. E sou um dos seus sacerdotes há 36 anos. Eu sou um dos seus Bispos, como vós, e tendo passado quase um quarto de século. Isto não poderá ser anulado por um tracejar de caneta, e por isso, permaneço membro da Fraternidade, em espera.

Se V. Ex.ª Revma. tivesse sido fiel à herança e eu tivesse sido notavelmente infiel, eu reconheceria com gosto tal direito de expulsão. Mas, dada a situação, espero não faltar ao respeito do vosso cargo ao sugerir que, pela glória de Deus, pela salvação das almas, pela paz interior da Fraternidade, e pela eterna salvação de V. Ex.ª Revma., V. Ex.ª Revma. faria melhor renunciar ao cargo de Superior Geral do que me expulsar. A V. Ex.ª Revma. que Deus dê a graça, a luz e as forças necessárias para cumprir com tal ato insigne de humanidade e de devoção ao bem comum.

Terminam, assim, as cartas que, com frequência, lhe tenho dirigido desde há anos.


Dominus tecum,


+ Richard WILLIAMSON
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