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sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Do hábito de pecar

Momento em que chega o Fantasma
Naquele canal em que costumo assistir filmes antigos, TCM, calhou, uma tarde dessas, de começar a acompanhar a triste história do príncipe dinamarquês, Hamlet, de Shakespeare, justamente na Cena IV, do Ato III, na qual o príncipe confronta a mãe. 

O filme de 1948, dirigido e protagonizado pelo grande Laurence Olivier, que o quis em preto e branco, foi o primeiro filme britânico – e também estrangeiro, de uma maneira geral – a ganhar um Oscar de Melhor Filme. Ao todo, o filme ganhou, em 1949, quatro das sete indicações ao Óscar, incluindo o de Melhor Ator (moleza!), Melhor Direção de Arte - preto e branco, Melhor Figurino - preto e branco. Também ganhou o Leão de Ouro (Veneza, 1949), por Melhor Filme e Melhor Atriz (Jean Simmons, como Ofélia); o prêmio BAFTA (Inglaterra, 1949), por Melhor Filme de Qualquer Origem (indicado também para Melhor Filme Britânico); o Globo de Ouro (EUA, 1949), por Melhor Filme e Melhor Ator (Olivier, of course); e o Prêmio Bodil (Dinamarca, 1949), por Melhor Filme Europeu. Causou, contudo, polêmica porque nem todos apreciaram as alterações introduzidas por Olivier para condensar em duas horas uma peça de quatro horas. 

Olivier, considerado o maior ator do Século XX, já havia interpretado Hamlet em 1937, primeiro no Antigo Teatro Vitoriano, depois no próprio Castelo Elsinore, cenário da macabra história. 

Confesso que nunca li Hamlet, porque, para mim - os apreciadores que me desculpem - Shakespeare é enfadonho, no estilo e quanto pessoa. Cresci na Itália, um País rico demais em literatura e arte que, durante o ano escolar, nós não tínhamos muito tempo para ver mais profundamente mais do que umas poucas obras de cada País que realmente importa nesse aspecto. Nossa formação era complementada em casa por pais zelosos que nos presenteavam em igual medida tanto com livros quanto com brinquedos. Da Literatura Infanto-Juvenil mundial, eu e meus caros irmãos lemos tudo o que havia para ler. Shakespeare, naquela época, não se encaixava nesse perfil, como infelizmente ocorre hoje, roubando inocência à inocência com filme pretensamente infantis. O filme de Laurence Olivier, contudo, ajuda a suportar o estilo, extirpando boa parte da chatice tipicamente britânica. 

E não creio ter sido mera coincidência eu ter ligado a TV justamente na hora em que passava a Cena IV do Ato III (no momento da foto acima), cujas palavras principais fiz questão de decorar para pesquisar depois e escreve um post, o de hoje. E porque? Porque fala de algo que os católicos parecem esquecer: o hábito de pecar nos arrasta cada vez mais para o fundo do poço do Inferno! Querer não é poder, diz acertadamente o ditado, pois não basta querer, precisamos do auxílio da Graça e, também, de uma vontade férrea de nos desapagarmos do hábito de pecar. Esta cena de Hamlet serve de inspiração para outras meditações. Tenho certeza; e por isso a compartilho aqui, confiante que poderá ser de bom proveito para outras almas como foi para mim. 

Os grifos e comentários no texto abaixo são meus.


Giulia d'Amore di Ugento


DO HÁBITO DE PECAR



HAMLET - ATO III, CENA IV, 93

Cena IV

Aposento da Rainha. (Entram a Rainha - e Polônio)

POLÔNIO — Ele aí vem; repreendei-o asperamente; mostrai que se excedeu nas brincadeiras, e como se interpôs Vossa Grandeza entre ele e a grande cólera [do rei - NdR]. Mais nada; somente vos reitero: sede ríspida.

HAMLET — (dentro) Mãe! Mãe!

A RAINHA — Podeis ficar tranquilo; retirai-vos; está ele chegando. (Polônio se esconde atrás do reposteiro) (Entra Hamlet)

HAMLET — Então, mãe, que há de novo?

A RAINHA — Grande ofensa a teu pai fizeste, Hamlet.

HAMLET — Grande ofensa a meu pai fizeste, mãe.

A RAINHA — Devagar! Respondeis com língua ociosa.

HAMLET — Vamos, que me falais com língua ociosa.

A RAINHA — Que é isso, Hamlet?

HAMLET — Que há de novo agora?

A RAINHA – Esquecestes quem sou?

HAMLET — Não, pela Cruz! Não me esqueci. Sei bem que sois a rainha, casada com o irmão de vosso esposo e — prouvera o contrário — minha mãe.

A RAINHA -  Vou chamar quem convosco falar possa.

HAMLET — Vamos, sentai-vos; não saireis enquanto não vos apresentar eu um espelho que o recôndito da alma vos reflita.

A RAINHA -  Que pretendes fazer? Não vais matar-me? Socorro! Socorro!

POLÔNIO (atrás) — Que é que há? Socorro! Socorro!

HAMLET (desembainhando a espada) — Que é isso? Um rato? (Dando uma estocada no reposteiro) Aposto que o matei.

POLÔNIO (atrás) — Estou morto!

A RAINHA — Santo Deus, que fizeste!

HAMLET — Ignoro-o. Não era o rei?

A RAINHA — Que ação precipitada e sanguinária!

HAMLET — Ação precipitada e sanguinária? Tão ruim, boa mãe, quanto matar um rei e desposar o irmão do morto.

A RAINHA — Matar um rei?

HAMLET — Um rei; foi o que eu disse. (Levanta o reposteiro e descobre o corpo de Polônio) Adeus, bobo apressado e intrometido. Julguei que era o teu chefe; é o teu destino. Vês que o ser serviçal traz seus perigos. Não torçais tanto as mãos [agora, fala à mãe - NdR]; sentai-vos; quero lutar com vosso coração; no caso de ser ele amolgável, se o maldito costume o não deixou duro como o aço, tornando-o resistente à persuasão.

A RAINHA — Que fiz eu para usares de linguagem tão grosseira?

HAMLET — Uma ação que mancha a graça e o rubor da modéstia, que a virtude transforma em falsidade, muda as rosas da fronte prazenteira do amor puro em chaga repugnante, e os juramentos dos cônjuges em pragas de viciados. Uma ação que do corpo dos contratos tira a própria alma e muda em palavrório a doce religião; a própria face do céu cora de pejo; sim, o mundo compacto, nas feições, mostra a tristeza do juízo final, diante desse ato.

A RAINHA — Ai! que ação tão monstruosa, que troveja estrondeando, com o simples enunciado?

HAMLET — Mirai este retrato e mais este outro, que dois irmãos fielmente representam; vede a graça que encima esta cabeça, cachos de Apolo, a fronte alta de Júpiter, o olhar de Marte, ao mando e à ameaça afeito, o porte de Mercúrio, o mensageiro, quando pousa nos cumes altanados; uma forma, em resumo, perfeitíssima, em que os deuses seus selos imprimiram para que o mundo visse o que era um homem: esse foi vosso esposo. Agora o resto [refere-se ao usurpador assassino - NdR]: eis vosso esposo, espiga definhada que o irmão sadio empesta. Tendes olhos? Deixastes a pastagem deste belo monte por um pau? Ah! Tendes olhos? Não chameis a isso amor, que em vossa idade o sangue se arrefece, fica humilde e obedece à razão. E que razão passa deste para este? Sois sensível, pois vos moveis; mas tendes os sentidos paralisados. A loucura acerta; nunca os sentidos ficam subjugados pela paixão, a ponto de falharem totalmente na escolha. Que demônio vos logrou de uma vez na cabra-cega? O olho sem tato, o tato sem visão, o ouvido só por si, o olfato apenas, a menor parte, em suma, de um sentido verdadeiro, jamais se estontearia desse feitio. Pudor, por que não coras? Se nos ossos de uma matrona, inferno, te rebelas, que a continência fique, para os moços ardentes, como a cera que amolece no próprio fogo; nem de mancha fales, quando no ataque se atirar o instinto, uma vez que é tão quente a própria geada e a razão é alcoveteira da vontade.

A RAINHA — Não fales mais, Hamlet; a olhar me forças no mais íntimo da alma, onde acho manchas profundas e tão negras, que não perdem jamais a cor.

HAMLET — Viver num leito infecto que tresanda a fartum, onde fervilha a podridão, juntando-se em carícias num chiqueiro asqueroso!

A RAINHA — Oh! Não prossigas! Apunhalam-me o ouvido essas palavras. Basta, querido Hamlet!

HAMLET — Um assassino, um vil escravo, que não é um vigésimo do outro marido; um rei-bufão, um simples gatuno do governo desta terra, que a coroa empalmou da prateleira e a pôs no bolso.

A RAINHA — Basta!

HAMLET — Um rei-palhaço, em trajes de mendigo... (Entra o Fantasma) Estendei sobre mim, legiões celestes as asas protetoras! O que deseja vossa imagem graciosa?

A RAINHA — Ai de mim! Está louco.

HAMLET — Não viestes censurar o filho tardo, que deixa a ira assentar, e tão remisso se mostra no cumprir vossos preceitos? Oh, dizei!

O FANTASMA — Não te esqueças: minha vinda só visa estimular-te o intento rombo. Mas vê que em tua mãe se assenta o espanto. Corre a interpor-te entre ela e a sua alma em luta, que nas pessoas fracas é terrível o estrago da ilusão. Fala-lhe, Hamlet.

HAMLET — Senhora, que sentis?

A RAINHA — Que se passa contigo, que os olhos assim pousas no vazio e com o ar incorpóreo deblateras? Como se te ilumina a alma nos olhos! E tais como soldados, quando o alarma vem tirá-los do sono, teus cabelos, parecendo com vida, se desmancham, se curiçam na tua fronte. Ó meu bom filho! Lança a fria paciência sobre as chamas e o fogo do teu mal. Mas, para onde olhas?

HAMLET — Para ele, sim; quão pálido nos fixa! Seu destino e sua forma, se influíssem nas pedras, racionais as tornariam. Tirai de mim os olhos, para que esse gesto piedoso não transmude minhas ásperas intenções, pois o que tenho para fazer exige cores vivas. Necessito de sangue em vez de lágrimas.

A RAINHA — Para quem falas isso?

HAMLET — Ninguém vedes?

A RAINHA — Ninguém; no entanto vejo o que nos cerca.

HAMLET — E nada ouviste?

A RAINHA — Nada; a nós somente.

HAMLET — Vede ali! Vede! Já se afasta... Meu pai, tal como em vida se vestia. Acaba — vede-o! — de transpor a porta. (Sai o Fantasma)

A RAINHA — Isso é fruto, somente, de teu cérebro. É sempre muito fértil o delírio no inventar essas coisas.

HAMLET — Delírio! Meu pulso, como o vosso, é compassado; toca música sã. Não foi loucura quanto falei; ponde-me à prova: posso dizer tudo de novo. Um desvairado divagaria. Mãe, por vossa graça, não lisonjeeis vossa alma, acreditando que ouvis um louco e não vosso delito. A úlcera externa, assim, se fecharia, enquanto a corrupção minaria tudo por dentro, sem ser vista. Ao céu volvei-vos; mostrai-vos do passado arrependida; evitai o futuro, sem que o joio adubeis e lhe deis, assim, mais viço. Perdoai-me esta virtude, que nesta época bem cevada e de fôlego cortado necessita a virtude rebaixar-se ao próprio vício e apresentar-lhe escusas por tudo o que de bem possa fazer-lhe.

RAINHA — Hamlet, o coração em dois me partes.

HAMLET — Jogai fora a metade que não presta, para com a outra parte serdes pura. Boa noite. Mas evitai a cama do meu tio; fazei-vos de virtuosa, se o não fordes. O hábito, esse demônio que devora todos os sentimentos, nisso é um anjo, pois para o uso de ações boas e belas empresta vestimenta ou capa externa que lhes vão bem. Abstende-vos por hoje, que isso há de conferir facilidade à próxima abstinência; a outra, mais fácil vos há de parecer, que o uso consegue quase modificar a natureza, dominar o demônio e até expeli-lo com poder prodigioso. Uma vez mais, boa noite. Hei de pedir a vossa bênção, quando dela também necessitardes. Enquanto a este homem, faz-me pena; qui-lo desta arte o céu: punir a mim por ele, e a ele por mim. Fui servo, a um tempo, e açoite. Vou cuidar dele; fico responsável por esta morte. E ainda uma vez: boa noite. Preciso ser cruel para ser bom; o ruim começa; o pior já se acha feito. Uma palavra mais, senhora.

A RAINHA — Que é preciso que eu faça?

HAMLET — Nada do que vos disse neste instante. Que outra vez para o leito o rei balofo vos conduza e no rosto vos belisque, vos chame de ratinha, e que dois beijos infectos e carícias com as mãos grossas em vossas costas pronto vos induzam a revelar-lhe que estou bom do juízo, mas que finjo loucura. Dizei-lhe isso. Que rainha sensata, bela e honesta esconderia coisas tão preciosas de um sapo, de um morcego? É concebível? Apesar do bom senso, abri a gaiola no telhado e deixai fugir o pássaro; depois, como o macaco conhecido, entrai nela e fazei logo a experiência para em baixo partirdes o pescoço.

A RAINHA — Fica tranquilo; se o falar consiste em respirar, e o fôlego for vida, não terei vida alguma que respire quanto me revelaste.

HAMLET — Parto para a Inglaterra; já o sabíeis?

A RAINHA — Ai! que o esquecera... Assim ficou assentado.

HAMLET — Selaram cartas; meus dois companheiros de escola, em quem me fio como em dentes de víbora, se encontram com a incumbência de aplanar-me o caminho e conduzir-me direto ao cativeiro. Pois trabalhem! Há de ser engraçado ver a bomba fazer saltar o autor. Por mais difícil que seja, hei de cavar mais fundo ainda, para jogá-los no alto. Como é belo ver a astúcia vencer a própria astúcia! Este homem me ajudou a fazer as malas; vou pôr no quarto anexo esta barriga. Boa noite, mãe. Realmente, o conselheiro que era tão falador, está sisudo: quietinho, bem discreto, grave e mudo. Vamos, senhor, dar fim a este negócio. Boa noite, mãe. (Saem por lados diferentes, arrastando Hamlet o corpo de Polônio).
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