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terça-feira, 15 de maio de 2012

A Selva - O mal da tibieza no padre


  Santo Afonso Maria de Ligório
(27/09/1696 - 02/08/1787)
Bispo de Santa Àgata
Confessor
Doutor Zelosíssimo da Igreja
Fundador dos Missionários Redentoristas

A Selva



PRIMEIRA PARTE - MATERIAIS PARA OS SERMÕES


O mal da tibieza no  padre


O mal da tibieza no padre

I - A que está exposto o padre tíbio

 A S. João mandou o Senhor, no Apocalipse, que escrevesse ao bispo de Éfeso estas palavras: Sei o bem que fazes; conheço os teus trabalhos pela minha glória, assim como a tua paciência nas fadigas do teu ministério 328. Em seguida, acrescenta: Mas, por outro lado, tenho a arguir-te de haveres esfriado no teu primitivo fervor329. — Alguém dirá talvez: que grande mal havia nisso? — Escutai o que o Senhor ajunta ainda: Lembra-te donde caíste; faze penitência das tuas culpas, e cuida de voltar ao primitivo fervor, em que deves viver, como ministro meu; de contrário, serás reprovado por mim, como indigno do ministério, que te confiei330.
 Como assim! Então a tibieza conduz a uma ruína tal? — Sim, a uma grande ruína, e o pior é que os tíbios não a conhecem, não a temem, não procuram evitá-la. Isto acontece sobretudo aos padres, cuja máxima parte vão esbarrar no escolho oculto da tibieza, e um grande número encontram nele a sua perdição. Escolho oculto: o que faz que os tíbios estejam expostos a grande risco de se perderem, é que a tibieza não deixa ver a uma alma o mal enorme que lhe causa. Muitos deles por certo não querem separar-se inteiramente de Jesus Cristo; querem segui-lo, mas de longe, como fez S.Pedro, quando o Redentor foi preso no jardim das Oliveiras331. Procedendo porém assim, caem facilmente na desgraça de Pedro, que apenas entrou na casa do Pontífice, a um simples remoque duma serva, renegou Jesus Cristo!Quem despreza as coisas pequenas vem a cair pouco a pouco nas grandes 332.
 O intérprete aplica este texto à alma tíbia, e diz que ela em breve perderá a devoção, e cairá depois, passando das faltas leves de que não se importava, às graves e mortais333. Segundo Eusébio de Emeso, quem não teme ofender a Deus com pecados veniais, dificilmente se há de preservar dos pecados mortais334. É com justiça, ajunta Sto. Isidoro, que o Senhor permite que quem não faz caso das faltas leves caía depois nas mais graves 335.Os pequenos excessos, quando são raros, não causam grave detrimento na saúde; mas, quando são freqüentes e multiplicados, acabam por ocasionar doenças mortais. É o que diz Santo Agostinho: Evitais com cuidado as quedas graves, e não temeis as leves; não perdestes a vida sob a pedra enorme dalgum pecado mortal; mas tomai cautela não fiqueis esmagados debaixo dum montão de areia de pecados veniais336.
 Ninguém ignora que só o pecado mortal dá a morte à alma e que os veniais, por mais numerosos que sejam, a não podem privar da graça, mas é preciso saber também o que diz S. Gregório: que o hábito de cometer faltas veniais, sem delas sentir remorso e sem pensar em corrigi-las, faz perder pouco a pouco o temor de Deus, e, uma vez perdido este temor, é fácil passar das faltas pequenas às grandes337. Santo Doroteu ajunta: Se desprezarmos as faltas leves, periculum est ne in perfectam insensibilitatem deveniamus.Quem não se inquieta com as pequenas quedas, corre perigo de cair numa insensibilidade universal, que lhe faça perder o horror até às quedas mortais338.
 Conforme o atesta o tribunal da Rota, Santa Teresa nunca caiu em nenhuma falta grave; contudo o Senhor lhe fez ver o lugar que lhe estava reservado no inferno, não porque ela o tivesse merecido, mas porque se teria condenado, se não tivesse sido arrancada a tempo, ao estado de tibieza em que vivera. Por isso o Apóstolo nos faz esta advertência: Não deis entrada ao demônio339. Ao espírito das trevas basta-lhe que comecemos a abrir-lhe a porta do nosso coração, deixando entrar nele sem escrúpulo faltas leves; porque depois ele a saberá abrir de par em par por faltas graves. Cassiano escreveu: Quando algum cai, não imagineis que ele tenha chegado de repente à sua ruína340.
 Não, quando soubermos que alguma pessoa, dada à vida espiritual, sucumbira enfim, não pensemos que o demônio a tenha lançado subitamente no abismo do mal: primeiro a fez cair no estado de tibieza e dali no precipício da inimizade de Deus. Assim, S. João Crisóstomo afirma ter conhecido muitas pessoas, adornadas de todas as virtudes, mas que, vindo a cair na tibieza, depois se precipitaram num abismo de vícios 341.Conta-se nas crônicas da Ordem de Santa Teresa que a venerável irmã Ana da Encarnação vira um dia uma alma condenada, que ela primeiro tivera por santa; viam-se-lhe unidos ao rosto muitos animais pequenos, imagens das numerosas faltas que na sua vida tinha cometido e de que não se havia importado. Alguns desses animálculos lhe diziam: “Foi por nós que começaste”; outros enfim: “Foi por nós que te perdeste”. Ao bispo de Laodicéia mandou dizer o Senhor: Conheço as tuas obras, e que não és frio nem quente342.
 Tal é o estado dum tíbio, — nem frio, nem quente. Homem tíbio, diz Menóquio, é o que não ousa, de propósito deliberado, ofender a Deus mortalmente, mas que é negligente em se aperfeiçoar; por aí dá fácil entrada a todas as paixões343.
 Um padre tíbio não é ainda manifestamente frio, porque não comete deliberadamente pecados mortais; mas afroixa em tender para a perfeição, a que o seu estado o obriga; não lança conta aos pecados veniais, e cada dia os comete em grande número sem escrúpulo: mentiras, intemperanças na comida e na bebida, imprecações, Ofício mal recitado, missa mal celebrada, maledicência contra todos, chocarrices inconvenientes. Vive na dissipação, no meio dos negócios e prazeres do século; alimenta desejos e apegos perigosos; cede à vanglória, ao respeito humano, aos melindres e ao amor próprio; não pode suportar a menor contrariedade, a menor palavra que o humilhe; vive sem oração e sem devoção.
 O Pe. Alvarez de Paz, falando dos defeitos e faltas da alma tíbia, exprime-se assim: O tíbio assemelha-se a um doente dominado de muitas moléstias pequenas que, sem lhe darem a morte por si mesmas, não lhe deixando nenhum descanso, acabam por lançá-lo em tal fraqueza, que ele vem a ser atacado por um mal grave, isto é, por uma tentação a que não pode resistir, e então a sua queda é profunda344.
 Eis por que o Senhor, continuando a falar do tíbio, lhe diz: Oxalá fôras frio ou quente! Mas porque és tíbio, e nem frio nem quente, apresso-me a lançar-te da minha boca. O que tem a desgraça de jazer no estado de tibieza, medite bem estas palavras e trema345.
 Antes eu quereria, diz o Senhor, que fosses frio, isto é, privado da graça 346; porque haveria mais esperança para ti de saíres desse miserável estado, do que se permaneceres nele, onde ficas mais exposto a cair em vícios graves, sem esperança de emenda. É assim que Cornélio A-Lápide explica esta passagem. Segundo S. Bernardo347, é mais fácil converter um leigo vicioso, que um eclesiástico tíbio; e Pereira ajunta que é mais fácil converter um infiel, que fazer sair um cristão da tibieza348.
 E de fato, Cassiano afirma ter visto muitos pecadores a darem-se a Deus com fervor, mas nunca uma alma tíbia349. S. Gregório não perde a esperança a respeito dum pecador não convertido, mas nada espera dum convertido que, depois de se ter dado a Deus com fervor, caiu na tibieza. Eis as suas palavras: “O que é frio, sem ter sido tíbio antes, deixa esperança; o tíbio porém não a deixa: porque pode esperar-se a conversão duma alma, que se encontra atualmente em estado de pecado; mas a que, depois da sua conversão, cai na tibieza, essa tira-nos a esperança de vermos voltar para Deus, no caso de se separar dele pelo pecado350.
 Em suma, a tibieza é um mal quase incurável e desesperado. Eis a razão: para se poder evitar qualquer perigo, é necessário conhecê-lo; ora, o tíbio está engolfado numa tal obscuridade, que não chega mesmo a conhecer o perigo em que se encontra. A tibieza é como a febre ética que mal se faz sentir. As faltas habituais em que o tíbio cai escapam-lhe à vista. As faltas graves, diz S. Gregório, por isso mesmo que se fazem conhecer melhor, corrigem-se mais depressa; mas as leves olham-se como nada, e continua-se a cometê-las; é assim que o homem se acostuma a desprezar as coisas pequenas, chegando por isso facilmente as desprezar também as grandes351.
 Além disto, o pecado mortal causa sempre um certo horror, mesmo ao pecador habitudinário; mas, à alma tíbia, as suas imperfeições, os seus afetos desordenados, a sua dissipação, o seu apego ao prazer e à estima própria, nenhum horror lhe inspiram; e contudo essas pequenas faltas são para ela mais perigosas, pois que a conduzem à ruína, sem ela dar por isso; é o que nota o Pe. Alvarez de Paz352.
 Dali esta célebre máxima de S. João Crisóstomo, — que “em certo sentido, devemos evitar com mais cuidado as faltas leves que as graves”353. E a razão que o Santo dá é nós termos naturalmente horror às faltas graves, ao passo que as leves desprezamo-las, e por isso elas em breve se tornam graves. O pior é que as pequenas infidelidades, que se desprezam, tornam o homem pouco atento aos interesses da sua alma, e fazem que, uma vez lançado no hábito de não cuidar das faltas leves, venha a negligenciar também as mais graves.
 É a razão porque o Senhor nos Cânticos nos dá este aviso: Caçai as raposas pequenas que assolam a nossa vinha; porque a nossa vinha está em flor354.. Notai neste texto a palavra raposas = Vulpes; não nos diz o Senhor que cacemos os leões ou os tigres, mas as raposas. As raposas devastam as vinhas, pelas escavações numerosas, que fazem secar as raízes; dum modo semelhante, as faltas habituais extinguem a devoção e os bons desejos, que são as raízes da vida espiritual.
 Ajunta o texto — parvulas: caçai as raposas pequenas; — e porque não as grandes? É que das pequenas receia-me menos, e no entanto elas muitas vezes causam maior mal que as grandes; porque, como observa o Pe. Alvarez de Paz, as faltas pequenas, de que não se faz caso, impedem a chuva das graças divinas, sem as quais a alma permanece estéril, e acaba por se perder 355.Diz ainda o Espírito Santo: Porque a nossa vinha está em flor. Que fazem as faltas veniais multiplicadas, que não se aborrecem? Devoram as flores, isto é, abafam os bons desejos de adiantar na perfeição; e, desde que estes desejos venham a faltar, só se andará para trás, até que se caia nalgum precipício, donde só com grande dificuldade se possa sair.
 Terminemos a explicação do citado texto do Apocalipse. Mas porque sois tíbio, começarei a lançar-vos da minha boca. Quando uma bebida é fria ou quente, toma-se com prazer; mas, se é tépida, custa a tomar, porque provoca vômitos. É por isso que o Senhor faz esta ameaça ao tíbio: vou começar a lançar-te da minha boca, palavras que Menóquio comenta assim: Começa o tíbio a ser vomitado, quando, permanecendo na sua tibieza, começa a desgostar a Deus, até que enfim seja do todo rejeitado por ele no momento da morte, e para sempre separado de Jesus Cristo356.
 Tal é o perigo que corre o tíbio de ser lançado, isto é, abandonado de Deus, sem esperança de regresso. É o que se significa pelo vômito, pois que se tem horror de tornar a ingerir o que uma vez se vomitou. É a explicação de Cornélio A-Lápide357.
 Como é que o Senhor começa a vomitar um sacerdote tíbio? Cessa de lhe fazer os seus convites amorosos, e é o que significa propriamente ser vomitado da boca de Deus; retira-lhe as consolações interiores, os santos desejos, de modo que esse desgraçado se encontra privado de unção espiritual.Irá para a oração, mas com aborrecimento, dissipação e tédio; assim, pouco e pouco será levado a deixá-la. Depois nem mesmo se recomendará a Deus, e, sem oração, cada vez se tornará mais miserável, irá de mal a pior.
 Celebrará a missa, recitará o Ofício, mas com mais detrimento do que fruto; fará tudo à sobreposse, por força ou sem devoção. Esmagareis as azeitonas e não nos podereis ungir com azeite, diz o Senhor358: quer dizer, que no meio dos exercícios mais próprios para produzirem o azeite da devoção, vós permanecereis privado de toda a unção. Celebrar a missa, recitar o Ofício, pregar, ouvir confissões, assistir aos moribundos, tomar parte nos funerais, — são exercícios que deviam aumentar o fervor; apesar de tudo isso, permanecereis árido, sem paz, dissipado, vítima de mil tentações. Eis como Deus começa a vomitar o tíbio359.

II - O sacerdote não pode contentar-se com evitar os pecados graves.

 Dirá talvez o padre tíbio: basta-me que não cometa pecados mortais e que me salve. — Basta que vos salveis? Não, responde Sto. Agostinho: visto que sois padre, estais obrigado a trilhar o caminho estreito da perfeição; se seguirdes pela via larga da tibieza, não vos salvareis. “Se dizeis: Basta, estais perdido”360. Segundo S. Gregório, quem é chamado a salvar-se como santo, e quer salvar-se como imperfeito, não se salvará. Foi precisamente o que o Senhor fez ouvir um dia à bem-aventurada Angela de Foligno, falando-lhe assim: “Aqueles a quem dou luzes para caminharem na via da perfeição, e degradam a sua alma, querendo seguir pela via comum, serão abandonados em mim” 361.
 Como vimos acima, é certo que o sacerdote é obrigado a tornar-se santo, quer pela sua qualidade de amigo e ministro de Deus, quer em razão das funções augustas que exerce, não só quando oferece o sacrifício da missa, mas quando se apresenta como mediador dos homens, diante da sua divina majestade, e quando santifica as almas mediante os sacramentos; porque é para o fazer caminhar na perfeição que o Senhor o cumula de graças e socorros especiais. Em presença disto, quando ele quer exercer com negligência o seu ministério, no meio de defeitos e faltas sem número, que não pensa em detestar, provoca a maldição de Deus: Maldito o que faz a obra de Deus com negligência362. Esta maldição significa o abandono de Deus, diz Sto.Ambrósio363.
 Costuma o Senhor abandonar essas almas que, depois de terem sido mais favorecidas com as suas graças, não cuidam de atingir a perfeição a que são chamadas. Quer Deus que os seus ministros o sirvam com o fervor dos serafins, escreve um autor; de contrário, há de retirar-lhes as suas graças e permitir que adormeçam na tibieza, para dali caírem primeiro no abismo do pecado, e depois no do inferno364.
 O padre tíbio, acabrunhado sob o peso de tantas faltas veniais e de tantas afeições desordenadas, permanece como que mergulhado num estado de insensibilidade. As graças recebidas e as obrigações do sacerdócio já o não tocam; por isso o Senhor na sua justiça o privará dos socorros abundantes, que lhe seriam moralmente necessários, para se desempenhar os deveres do seu estado. Assim irá de mal a pior; cada dia aumentarão os seus defeitos e também a sua cegueira. Havia Deus de prodigalizar as suas graças a quem se mostra avaro com ele? Não, diz o Apóstolo: quem pouco semeia, pouco colhe365.
 Declarou o Senhor que aumentará os seus favores aos que lhe testemunham reconhecimento e conservam as suas graças, mas tirará aos ingratos o que primeiro lhes tinha dado366.Noutra parte diz que, o senhor da vinha, quando não tira fruto dela, trata de a confiar a outros vinhateiros, e castiga os primeiros. Depois ajunta: Por isso vos declaro que o reino de Deus vos será tirado, para ser dado a uma nação que colha fruto dele367. Significa que Deus tirará do mundo o padre tíbio, ao qual havia confiado o cuidado do seu reino, isto é, que tinha encarregado de trabalhar na sua glória, e que dará esse encargo a outros, que lhe sejam reconhecidos e fiéis.
 Deve procurar-se na tibieza a razão por que muitos padres colhem pouco fruto, de tantos sacrifícios que oferecem a Deus, de tantas comunhões que fazem, e de tantas orações que recitam no Ofício e na Missa. Semeastes muito e colhestes pouco... e o que tinha recebido o salário do seu trabalho, lançou-o num saco roto368. Tal é o padre tíbio: os seus exercícios espirituais lança-os ele todos num saco furado, quer dizer que não lhe resta nenhum merecimento; antes, ao fazê-los dum modo tão defeituoso se torna digno de castigo. Não, o padre que vive na tibieza não está longe da sua perda. Segundo Pedro de Blois, deve o coração do padre ser um altar em que não cesse de arder o fogo do amor divino. Mas que sinal de amor ardente dá a Deus esse padre, que se contenta com evitar os pecados mortais e não teme desagradar a Deus com as faltas veniais? Como observa o Pe. Alvarez de Paz, o sinal que dá é antes o de um amor bem tíbio369.
 Para fazer um bom padre não bastam apenas graças comuns e pouco numerosas; requerem-se graças muito especiais e abundantes. Ora, como quereria Deus prodigalizar os seus favores a quem se pôs a seu serviço, e depois o serve mal? Santo Inácio de Loiola chamou um dia um irmão leigo da sua Companhia, que passava uma vida muito tíbia, e falou-lhe assim: “Dize-me, irmão meu, que vieste fazer à religião?” Ele respondeu-lhe: “Vim para servir a Deus”. “Ah, meu irmão, replicou o Santo, que disseste? Se me tivesses respondido que foi para servir um cardeal, um príncipe da terra, terias mais desculpa; mas, visto que vistes para servir a Deus, — é assim que o serves?
 Todo o sacerdote entra na corte, não dum príncipe da terra, mas noutra muito mais alta, — a dos amigos de Deus, onde se tratam continuamente e em confidência os negócios mais importantes para a glória da soberana Majestade. Donde procede que um padre tíbio mais desonra do que honra a Deus; porque dá a entender, pela sua conduta negligente e cheia de defeitos, que o Senhor não merece ser servido e amado com mais diligência; que, procurando agradar-lhe, não encontra prêmio que o faça bastante feliz; e que a sua divina Majestade não é digna dum amor tal, que nos obrigue a preferir a sua glória a todas as nossas satisfações.

III - Exortação

 Redobremos de esforços, ó padres, irmãos meus, e tremamos! Não aconteça que todas as nossas grandezas, todas as honras a que Deus nos alteou, entre todos os homens, venham a terminar um dia na nossa condenação eterna! Diz S. Bernardo que o empenho com que os demônios trabalham na nossa ruína, deve excitar o nosso zelo, em assegurarmos a salvação 370. Ó, como esses inimigos terríveis porfiam em perder um padre! Ambicionam com mais ardor a perda dum padre, que a de cem seculares, não só porque a vitória alcançada sobre um padre é para eles um triunfo mais brilhante, mas porque um padre na sua queda arrasta muitos outros desgraçados para o abismo.
 Assim como as moscas se afastam dum vaso que contenha algum líquido a ferver, e procuram outro de licor tépico, assim os demônios se mostram menos pressurosos em assaltar os sacerdotes fervorosos, que em impelir os tíbios do estado de tibieza para o de pecado. Diz Cornélio A-Lápide que o tíbio, desde que seja atacado por alguma tentação grave, está em grande perigo de sucumbir, porque se encontra quase sem força para lhe resistir; e assim, no meio de tantas ocasiões em que se encontra, caí muitas vezes em faltas graves371.
 É preciso pois que o sacerdote se aplique a evitar os pecados que comete cientemente e de propósito deliberado. Além de Jesus Cristo, que por natureza e sua divina Mãe por um privilégio especial, foram puros de toda a mancha de pecado, é certo que de todos os homens, sem exceptuar os santos, nenhum foi isento de pecados ao menos veniais. Nem os céus são puros na sua presença372. Todos pecamos em muitas coisas373. Como diz pois S.Leão, para todos os filhos de Adão, é uma triste herança o serem manchados do pó da terra374.
 Acima de tudo porém, é necessário prestar atenção a esta palavra do Sábio: O justo cairá sete vezes e se levantará375. O que cai por fragilidade, sem pleno conhecimento do mal que faz, e sem consentimento deliberado, levanta-se com facilidade376. Se, ao contrário, o pecador conhece o mal e o pratica deliberadamente e, em vez de o detestar, se compraz nele, — como poderá levantar-se?
 Diz Santo Agostinho: Se escorregamos em algumas faltas, ao menos detestemo-las e confessemo-las, e Deus no-las perdoará: Se confessarmos os nossos pecados, Deus, que é fiel e justo no-los perdoará, e nos purificará de toda a iniqüidade377. Falando dos pecados veniais, Luís de Blois ensina com Tauler que basta, para obter o perdão deles, confessá-los ao menos em geral378. E noutro lugar379 diz que se apagam mais facilmente tais pecados, voltando-se para Deus com um sentimento de humildade e amor, do que passando muito tempo a pesá-los com excessivo temor.
 Lê-se igualmente em S. Francisco de Sales que as faltas ordinárias das pessoas piedosas, como as cometem indeliberadamente, também se apagam indeliberadamente.No mesmo sentido se exprime Sto. Tomás 380, quando diz que, para a remissão dos pecados veniais, basta um ato de detestação, implícito ou explícito, como o que uma pessoa faz, voltando-se para Deus com devoção e amor.
 E acrescenta: Os pecados veniais remitem-se de três modos:
   1.º pela infusão da graça, e é o que acontece, quando se recebe a Eucaristia, ou outro sacramento;
   2.º por certos atos acompanhados de algum movimento de arrependimento, como são a confissão geral, o ato de tocar no peito, e a oração dominical;
   3.º por atos acompanhados dum certo movimento de reverência para com Deus e as coisas divinas; e é assim que a benção do bispo, a aspersão da água benta, a oração numa igreja consagrada, e outras coisas deste gênero, produzem a remissão dos pecados veniais 381. S. Bernardino de Sena, falando especialmente da comunhão, diz: Pode acontecer que, pela recepção da Eucaristia, uma alma se una tão estreitamente a Deus que fique purificada382 de todos os seus pecados veniais.
 O venerável Luís du Pont dizia: “Tenho cometido muitas faltas, mas nunca fiz a paz com as minhas faltas”. Há muitos que fazem as pazes com os seus defeitos, e é o que há de causar a sua perda. Segundo S. Bernardo, enquanto se detestam as próprias imperfeições, dá se esperança de regressar ao bom caminho; mas, deste que se peca ciente e deliberadamente, sem temor de pecar e sem dor de haver pecado, pouco a pouco se cai na perdição.As moscas que morrem no bálsamo fazem-lhe perder a suavidade do odor, diz o Sábio383. Essas moscas são precisamente as faltas que se cometem e não se detestam; porque então permanecem como mortas na alma: é a explicação de Dionísio Chartreux.
 Quando uma mosca cai num perfume, diz ele, e lá permanece, estraga-o e anula-lhe o bom odor. No sentido espiritual, essas moscas que morrem em nós são os pensamentos vãos, as afeições mais ou menos culposas, as distrações não combalidas: tudo isso nos rouba a doçura dos exercícios espirituais384.
 Nota S. Bernardo que não há grande mal em dizer que tal coisa é um pecado venial; mas cometer esse pecado, acrescenta, e comprazer-se nele, é um mal que tem conseqüências graves, e Deus há de punir severamente, como está escrito em S. Lucas: Aquele que conheceu a vontade do seu senhor, e não fez os preparativos necessários para o seu regresso, e não cumpriu a sua vontade, receberá grande número de açoites; o que porém o não conheceu, e fez coisas dignas de castigo, receberá poucos açoites 385. É verdade que nem mesmo as pessoas espirituais são isentas de pecados veniais; mas, diz o Pe. Alvarez de Paz 386, cada dia diminuem elas o número e a gravidade, e depois apagam a mancha por atos de amor de Deus. Quem assim procede acabará por se santificar, e as suas faltas não o impedirão de tender para a perfeição. Por isso Luís de Blois nos exorta a não nos desanimarmos com essas pequenas faltas, pois que temos muitos meios para nos corrigirmos delas 387.
 Mas quem ainda está preso à terra por algum laço, quem cai e recai nelas voluntariamente, sem desejar levantar-se, como poderá adiantar no caminho de Deus? Quando a ave está solta de todas as prisões, logo levanta o seu vôo; mas, se estivesse presa, embora por um fio delgado, permaneceria retida. O menor laço que prenda a alma à terra, dizia S. João da Cruz, impede-a de adiantar na perfeição.
 Guardemo-nos pois de cair no miserável estado da tibieza; porque, à face do que fica dito, para arrancar dele um padre, é necessária uma graça potentíssima. E que fundamento temos nós para pensar que o Senhor concederá uma tal graça a quem lhe provoca náuseas?
   — Alguém dirá que já se encontra nesse estado; — e não lhe restará esperança? — Há ainda uma esperança: a misericórdia e o poder de Deus, — As coisas impossíveis aos homens são possíveis para Deus388. É impossível ao tíbio arrancar-se da tibieza, mas não é impossível a Deus tirá-lo dela. É preciso contudo que ele ao menos o deseje: se nem mesmo deseja levantar-se, como poderá esperar o socorro de Deus? Ainda assim, o que não tem esse desejo, ao menos peça ao Senhor que lho dê. Se lho pedir com perseverança, Deus lhe dará o desejo e o socorro de que necessita.
 A promessa de Deus não falta389. Oremos pois e digamos com Sto. Agostinho: Senhor, nenhuns merecimentos tenho a oferecer-vos para ser atendido por vós; mas, ó Padre eterno, a vossa misericórdia e os merecimentos de Jesus Cristo, são os meus méritos390. — É também um grande meio para sair da tibieza, recorrer à santíssima Virgem.
Notas:
328. Scio opera tua, et laborem, et patientiam tuam (Apoc. 2, 2).
329. Sed habeo adversum te, quod charitatem tuam primam reliquisti.
330. Memor esto itaque unde excideris, et age poenitentiam, et prima opera fac; sin autem, venio tibi, et movebo candelabrum tuum de loco suo.
331. Petrus autem sequebatur eum a longe (Matth. 26, 58).
332. Qui spernit modica, paulatim decidet (Eccli. 19, 1).
333. Decidet a pietate, a statu gratiae in statum peccati.
334. Difficile est ut non cadere in gravia permittatur, qui minus gravia non veretur (Hom. init. quadr.).
335. Judicio autem divino in reatum nequiorem labuntur, qui distringere minora sua facta contemnunt (Sent. l. 2. c. 19).
336. Magna praecavisti; de minutis quid agis? Projecisti molem; vide ne arena obruaris (In.Ps. 39).
337. Ut, usu cuncta levigante, nequaquam post committere etiam graviora timeamus (Moral.l. 10. c. 14).
338. Doctr. 3.
339. Nolite locum dare diabolo (Eph. 4, 27).
340. Lapsus quispiam nequaquam subitanea ruina corruisse credendus est (Col. 6. c. 17).
341. Novimus multos, omnes virtutes numero habuisse, et tamen, negligentia lapsos, ad vitiorum barathrum devenisse (In Matth. hom. 27).
342. Scio opera tua, quia neque frigidus es, neque calidus (Apoc. 3. 15).
343. Tepidus, est, qui non audet Deum mortaliter sciens et volens offendere, sed perfectioris vitae studium negligit; unde facile concupiscentiis se committit (In Apoc. 3. 16).
344. Sunt velut irremissae aegrotatiunculae, quae vitam quidem non dissolvunt, sed ita corpus extenuant, ut, accedente aliquo gravi morbo, statim corpus, vires non habens resistendi, succumbat (De Perf. l. 5. p. 2. c. 16).
345. Utinam frigidus esses aut calidus! sed quia tepidus es, et nec frigidus nec calidus, incipiam te evomere de ore meo.
346. Utinam frigidus esses!
347. Licet frigidus sit pejor tepido, tamen pejor est status tepidi, quia tepidus est in majori periculo ruendi sine spe resurgendi (In Ap. 3. 16).
348. Facilius enim est quemlibet paganum ad fidem Christi adducere, quam talem aliquem a suo torpore ad spiritus fervorem revocare.
349. Frequenter vidimus de frigidis ad spiritalem pervenire fervorem; de tepedis omnino non vidimus (Coll. 4. c. 19).
350. Sicut ante teporem frigidus sub spe est, ita tepor in desperatione: qui enim adhuc in peccatis est, conversionis fiduciam non amittit; qui vero post conversionem tepuit, et spem, qua esse potuit de peccatore, subtraxit (Past. p. 3. c. 1. adm. 35).
351. Major enim quo citius quia sit culpa agnoscitur, eo etiam citius emendatur; minor vero, dum quasi nulla creditur, eo pejus quo et securius in usu retinetur. Unde fit plerumque ut mens, assueta malis levibus, nec graviora perhorrescat, et in majoribus contemnat (Past. p. 3.c. 1. adm. 34).
352. Magna peccata eo justis minus periculosa sunt, quod aspectum satis tetrum exhorrent; at minima periculosiora videntur, quia latenter ad ruinam disponunt (De Perf. l. 5. p. 2. c. 16).
353. Non tanto studio magna peccata esse vitanda, quam parva: illa enim natura adversatur; haec autem, quia parva sunt, desides reddunt. Dum contemnuntur, non potest ad eorum expulsionem animus generose insurgere; unde cito ex parvis maxima fiunt (In Matth. hom.87).
354. Capite nobis vulpes parvulas quae demoliuntur vineas; nam vinea nostra floruit (Cant. 2.15).
355. Culpae leves et imperfectiones vulpes parvulae sunt, in quibus nihil nimis noxium aspicimus; sed hae vineam, id est, animam demoliuntur, quia eam sterilem faciunt, dum pluviam auxilii coelestis impediunt (De Perf. l. 5. p. 2. c. 16).
356. Porro tepidus incipit evomi, cum, permanens in tepore suo, Deo nauseam movere incipit, donec tandem omnino in morte sua evomatur, et a Christo in aeternum separetur.
357. Vomitus significat Deum exsecrari tepidos, sicut exsecramur id quod os evomuit (In Apoc. 3. 13).
358. Calcabis olivam, et non ungeris oleo (Mich. 6, 15).
359. Incipiam te evomere.
360. Si dixeris: Sufficit, — et peristi (Serm. 169. E. B.).
361. Vision c. 51.
362. Maledictus, qui facit opus Dei fraudulenter (Jer. 48, 10).
363. Negligentes Deus deserere consuevit (In Ps. 118, s. 10).
364. Deus vult a seraphinis ministrari; tepido gratiam suam subtrahit, sinitque eum dormire, itaque ruere in barathrum.
365. Qui parce seminat, parce et metet (2. Cor. 9, 6).
366. Omni enim habenti dabitur, et abundabit; ei autem qui non habet, et quod videtur habere, auferetur ab eo (Matth. 25, 29).
367. Malos male perdet, et vineam locabit aliis agricolis, qui reddant ei fructum... (Matth. 21, 44).
368. Seminastis multum, et intulistis parum... et qui mercedes congregavit, misit eas in sacculum pertusum (Agg. 1, 6).
369. Signum est amoris satis tepidi, velle amatum in solis rebus gravibus non offendere, et in aliis, quae non tanta severitate praecipit, ejus voluntatem procaciter violare (De Exterm. mali.l. 1. c. 12).
370. Hostium malitia, qua tam sollicit sunt in nostram perditionem, nos quoque sollicitos faciat, ut in timore et tremore ipsorum nostram salutem operemur (De S. Andrea s. 2).
371. In magno versatur periculo, saepeque, inter tot occasiones quibus plena est vita, in mortale prolabitur (In Apoc. 3, 15).
372. Coeli non sunt mundi in conspectu ejus (Job 15, 15).
373. In multis enim offendimus omnes (Jac. 3, 2).
374. Necesse est de mundano pulvere etiam religiosa corda sordescere (De Quadrag. s. 4).
375. Septies in die cadet justus, et resurget (Prov. 24, 16).
376. Cadet et resurget.
377. Et si non sumus sine peccatis, oderimus tamen ea (Serm. 181. L. B.).
378. Si confiteamur peccata nostra, fidelis est et justus, ut remittat nobis peccata nostra, et emundet nos ab omni iniquitate (1. Jo. 1. 9).
379. Sane tales culpas generaliter exposuisse satis est (Consol. pusil. c. 1 § 4).
380. P. 3. q. 87. a. 3.
381. Sufficit actus quo aliquis detestatur peccatum veniale vel explicite vel implicite, sicut cum aliquis ferventer movetur ad Deum. Triplici ratione, aliqua causant remissionem venialium: 1.º per infusionem gratiae; et hoc modo, per Eucharistiam et omnia Sacramenta, venialia remittuntur; 2.º in quantum sunt cum aliquo motu detestationis; et hoc modo, confessio generalis, tunsio pectoris, et Oratio Dominica operantur ad remissionem; 3.º in quantum sunt cum aliquo motu reverentiae in Deum et ad res divinas; et hoc modo, benedictio episcopalis, aspersio aquae benedictae, oratio in ecclesia dedicata, et si aliqua sunt hujusmodi, operantur ad remissionem venialium.
382. Contingere potest quod tanta devotione mens, per sumptionem Sacramenti, in Domino absorbeatur, quod ab omnibus venialibus expurgetur (De Chr. Dom. s. 12. a. 2. c. 1).
383. Muscae morientes perdunt suavitatem unguenti (Eccl. 10, 1).
384. Dum musca cadit in unguentum, manendo in illo, destruit ejus valorem atque odorem.Spiritualiter, muscae morientes sunt cogitationes vanae, affectiones illicitae, distractiones morosae, quae “perdunt suavitatem unguenti”, id est, dulcedinem spiritualium exercitiorum.
385. Qui cognovit voluntatem domini sui, et non praeparavit, et non fecit secundum voluntatem ejus, vapulabit multis; qui autem non cognovit, et fecit digna plagis, vapulabit paucis (Luc. 12, 47).
386. De Perf. l. 3. c. 13.
387. Quemadmodum singulis diebus in multis offendimus, ita quotidianas expiationes habemus (Parad. an. p. 1. c. 3).
388. Quae impossibilia sunt apud homines, possibilia sunt apud Deum (Luc. 18, 27).
389. Petite, et accipietis.
390. Meritum meum, misericordia tua
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