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quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

A vocação e as santas almas: Adélaïde-Marie Champion de Cicé

Adélaïde-Marie Champion de Cicé 

O Ano era 1790. Na França, no auge da Revolução Francesa e entre todo o tumulto e conflitos, uma jovem nobre francesa, Adélaïde-Marie de Cicé, ousou sonhar com uma nova maneira de viver a vida religiosa. Tendo sentido o chamado para servir a Deus desde sua juventude, Adélaïde imaginou a possibilidade de uma vida religiosa ativa unida a uma vida de oração, enquanto trabalhava no mundo sem o benefício do hábito ou do claustro. A Providência Divina a fez encontrar o Padre Pierre-Joseph Picot de Clorivière, SJ, o qual também procurava novas maneiras de servir a Igreja na tempestade da Revolução. Aqui contamos a história dela.


Adélaïde nasceu no dia 05 de novembro de 1749, em Rennes, na França. Era a décima-segunda filha de uma família nobre originária de Bruz, na Bretanha. Sua vocação, desde a juventude, era dedicar sua vida a Deus por votos religiosos, mas fora do claustro, para aliviar a miséria moral e material que ela observava a seu redor e para ser "épouse du Christ, mère des pauvres, ange de douceur dans ce monde et dans l'autre"[1]. Aos vinte e quatro anos de idade, morre seu pai espiritual, e ela escreve: "le Saint qui m'a parlé de votre part m'a dit, quinze jours avant sa mort, que mon Dieu me voulait toute à Lui… que j'étais destinée à être une mère des Pauvres et une épouse de Jésus-Christ"[2]. Em abril de 1777, acompanhada por sua mãe, procura o Noviciado da Visitação, em Rennes. Contudo, seu irmão a manda voltar para a casa paterna, e ela obedece e se coloca de novo, e humildemente, a serviço de sua mãe, de quem cuidou até seu falecimento em 1784.

 
Em Agosto de 1783, durante um retiro, escreve: "Je fais résolution de retrancher toutes les dépenses inutiles pour moi et de me borner à cet égard au simple nécessaire dans ma position. Je regarderai ce que je possède comme appartenant aux pauvres beaucoup plus qu'à moi"[3]. Adélaïde descreveu, assim, o seu ideal de pobreza: uma pobreza vivida no mundo onde ela deve viver. Ela também descreveu a sua concreta visão de obediência, vivida com discernimento: "Je veux obéir à ma mère dans les plus petites choses, à moins qu'il n'y ait de bonnes raisons de ne pas faire les choses"[4].

Depois da morte de sua mãe, em 1784, Adélaïde, livre e desimpedida, fez várias experiências em comunidades religiosas para tentar viver suas intuições de vida religiosa entre e para os pobres: o Carmelo de Rennes, as Demoiselles Des Incurables[5], as Dames De La Retraite[6]. Lá, em 1785, ela escreve seu projeto, o "Plano de uma Sociedade Pia": um grupo de mulheres faria vida em comum, pronunciando os votos religiosos, mas sem usar um hábito particular; em sua jornada haveria a oração em comum e as obras de caridade. Elas poderão, assim, se dedicar à assistência aos doentes, seja em casa que fora (e seria até desejável acomodar-se de maneira que seja possível sempre ter alguns pobres perto de si), ou a outras boas obras: "Elles seront toutes livrées à la prière et aux bonnes oevres qui se présenteront, s'offrant à Dieu par le moyen de l'obéissance…"[7]. Ela enfatiza seu desejo de ir ao encontro daqueles com os quais ninguém se importa, vivendo em comunidade e levando uma vida de oração. 

Após a morte de sua mãe, ela, então, se dedica completamente aos pobres. Dando-se sem reservas, acaba adoecendo de tuberculose e vai se tratar em Dinan, onde encontra, em 04 de Agosto de 1787, na casa das Ursulinas, das quais é o confessor, o Padre Pierre-Joseph Picot de Clorivière. Fala-lhe de seu projeto. Ele a envia às Filhas da Cruz, religiosas de Saint-Servan-sur-Mer, para que faça mais uma experiência de vida consagrada.

O projeto parece ser ameaçado pela proibição de fazer votos religiosos que fora decretada pela Revolução Francesa. Mas a virada em sua vida acontece justamente em pleno clima revolucionário, quando o Padre de Clorivière confirma seu projeto por uma inspiração divina recebida "comme en un clin d'œil"[8]. Em 19 de julho de 1790, o bom Padre teve a primeira das duas inspirações: ele viu, em grandes detalhes, uma maneira de preservar a vida religiosa da Igreja na França daquele período funesto de terror e perseguição religiosa: uma sociedade de sacerdotes que reforçaria a sua vida espiritual e os ajudaria a servir a Igreja naqueles tempos difíceis. Em 18 de agosto de 1790, recebe a segunda inspiração, algo semelhante à inspiração de Adélaïde: uma sociedade de vida consagrada (com os três votos religiosos de pobreza, castidade e obediência), cujos membros não tenham nem hábito uniforme, nem claustro e que se dediquem à oração e a toda boa obra que as circunstâncias indiquem como necessárias. Essa forma de vida religiosa conservaria para o mundo o bem inestimável da vida consagrada mesmo em tempos difíceis, mesmo "sem o conhecimento das gentes e apesar delas". Também lhes garantiria o anonimato do que precisavam naqueles tempos sombrios de perseguição religiosa e de comoção social.

Assim, em 02 de Fevereiro de 1791, Padre de Clorivière com outros oito sacerdotes e um leigo, em Montmartre, e uma dezena de mulheres espalhadas entre Paris e a Bretanha pronunciam o mesmo ato de oferecimento. Nascem as duas Sociedades: os Sacerdotes do Coração de Jesus e as Filhas do Coração de Maria. Adélaïde é a primeira pedra do projeto: "j'ai mis en tête le nom d'Adélaïde comme la première pierre de cette société", diz o Padre de Clorivière. E ela será a primeira superiora.

Em 30 de Abril de 1791, o Padre a chama a Paris, e Adélaïde se junta a ele. Escondendo-se, mudando muitas vezes de casa e, durante o Regime do Terror, em absoluta clandestinidade, ela e suas companheiras cuidam dos doentes, ajudam os pobres, assistem os sacerdotes que precisam se esconder para não ter que jurar fidelidade à constituição civil do clero, que os tornaria funcionários do Estado. Em 04 de Maio de 1791, o Padre lhe escreve: "Plus vous éprouvez votre faiblesse, plus il vous faut mettre votre confiance dans le Seigneur. Il suppléera abondamment à tout ce qui vous manque…"[9].

Em 19 de Janeiro de 1801, Adélaïde é presa sob a acusação de ter abrigado um tal Carbon, ao qual havia acolhido sem fazer perguntas e que era acusado de ter voltado à França sem autorização e de ter participado da conspiração da 'máquina infernal' contra Napoleão[10]. No dia 07 de abril seguinte, Adélaïde é processada (por oito longos dias), absolvida e liberada: os argumentos do advogado, Maitre Bellart, o testemunho de 200 pobres e o júbilo popular diante de sua absolvição revelariam a que ponto a sua caridade ativa havia chegado entre 1791 e 1801, em Paris. A opinião pública exigiu e obteve a sua absolvição e via nela uma santa.

Apesar da saúde debilitada por causa da detenção, Adélaïde continuou seu trabalho com os pobres, seu diálogo com as autoridades religiosas e a acolhida a novas filhas do Coração de Maria. De 1804 a 1809 acompanha as duas Sociedades, fazendo-se de ponte para o Padre de Clorivière que estava encarcerado. Nos anos sucessivos, dedica-se à sua tarefa de Superiora da Sociedade das Filhas do Coração de Maria.

Morre em Paris, no dia 26 de Abril de 1818, enquanto estava em adoração diante do Santíssimo Sacramento.

Ela havia plenamente respondido à sua vocação, levando uma vida de sacrifício por Jesus e Maria, vivendo na simplicidade e discrição, conciliando uma autêntica vida de oração com disponibilidade efetiva ao serviço ao próximo. 

Giulia d'Amore di Ugento
autora

Fontes de pesquisa:
- ANDRÉ RAYEZ, Revue d'histoire de l'Église de France, 1968, Vol. 54, n. 153, pp. 253/279, Clorivière et ses fondations (1790-1792).
- MARIELLE DE CHAIGNON: Adélaïde de Cicé, Editions Nouvelles cités – 1990 – 157 p. – Vie d'Adélaïde de Cicé 1749 – 1818.
- CHANTAL REYNIER: Adélaïde de Cicé Hors série n° 1 de la revue Traces – 1999 – 45 pages Adélaïde de Cicé dans le contexte historique de la Révolution Française.
- COLLECTIF: Dans la tourmente révolutionnaire, les Filles du Cœur de Marie Bande dessinée – 1989 – 48 p.




Notas da autora
[1] "esposa de Cristo, mãe dos pobres, anjo de doçura neste mundo e no outro".
[2] "O Santo que me falou por Vós me disse, quinze dias antes de sua morte, que meu Deus me queria toda dEle... que eu era destinada ser uma mãe dos Pobres e uma esposa de Jesus Cristo".
[3] "Eu faço a resolução de subtrair todas as despesas inúteis para mim e de me limitar, a este respeito, ao mínimo necessário em minha posição. Eu olharei para o que possuo como pertencente aos pobres mais do que a mim".
[4] "Eu obedecerei a minha mãe nas menores coisas, a menos que haja uma boa razão para não fazer as coisas".
[5] Senhoritas dos incuráveis
[6] Senhoras Do Retiro é uma instituição fundada pela generosa Sra. Catherine De Francheville, em 1674, em sua casa, à rue de la Vieille Psallette, em Vannes, como uma casa de repouso exclusivamente para mulheres à imitação da casa masculina do Sr. Louis Eudo de Kerlivio, na mesma cidade. Para ela não havia "melhor maneira de obter a conversão das almas e seu progresso na virtude, como" através de "casas de repouso estável". A finalidade era justamente abrigar mulheres para fugir do peso de sua vida cotidiana, contemplar seu relacionamento com Deus e voltar às suas funções animadas pela intercessão do Espírito Santo. O uso de retiros sempre existiu na Igreja, de uma forma ou de outra, mas o estabelecimento de uma casa exclusivamente para aposentados ou reformados, é uma instituição que se originou na cidade de Vannes. A ordem desde o início tem uma devoção particular pelo Sagrado Coração de Jesus. Em 1791, a Revolução Francesa fechou as casas e quis obrigar as irmãs ao voto de lealdade ao Regime, mas em 1794, uma das irmãs de La Retraite, sor Victoire de St-Luc, foi martirizada (guilhotina) por sua devoção ao Sagrado Coração pela revolução que tentava acabar com qualquer interesse por esta devoção. Sua gloriosa morte causou o florescimento da ordem e da consagração de seus membros ao Sagrado Coração. Em 1805, as casas foram reabertas. As autoridades civis e religiosas francesas obrigaram, contudo, a ordem a acrescentar à instituição a educação da juventude para o trabalho. O instituto e suas constituições foram aprovados definitivamente pela Santa Sé em 1910.
[7] "Elas serão totalmente entregues à oração e às boas obras que se apresentarem, oferecendo-se a Deus pela obediência...".
[8] "como num piscar de olhos".
[9] "Mais vós provai vossa fraqueza, mais vós deveis colocar vossa confiança no Senhor. Ele suprirá abundantemente a tudo o que vos faltar...".
[10] Atentado contra Napoleão ocorrido à Rue Saint-Nicaise, Paris, em 21 de Dezembro de 1800, quando ele se dirigia para ouvir uma ópera de Haydin. Levado a cabo no âmbito da Conspiração de Cadoudal, ficou conhecida como a explosão da máquina infernal, um invento de um tal Chevalier que se tratava de um tonel carregado de pólvora com estilhaços e colocado em uma carroça. O irmão do rei Luís XVI, que fora decapitado pela Revolução, o Conde de Artois, que vivia em Londres, seria mentor de tudo e contava com o financiamento inglês para restaurar o trono da família Bourbon. Por segundos não conseguiu o intento. A explosão ocorreu quando a carruagem do Primeiro Cônsul já havia passado em frente ao Café Apollon, onde estava estacionada a carroça. Oito ou nove pessoas morreram e umas quarenta outras restaram feridas. Ainda que sua enteada Hortênsia Beauharnais tivesse ficado ligeiramente ferida, Napoleão escapou incólume e foi o primeiro estadista na história moderna a ser alvo de um carro-bomba. Cadoudal conseguiu fugir para Londres, mas voltou três anos depois, para um segundo complô, "un coup essentiel", que também foi financiado pela Inglaterra, com uma verba de um milhão de esterlinas, liberada pelo primeiro-ministro Pitt, e com o apoio mais uma vez do Conde de Artois. Desta feita contaria com a participação de dois generais, rivais de Napoleão: Pichegru e Moreau. O objetivo era sequestrar e matar Napoleão. Cadoudal, que desembarcara em Biville, na costa da Normandia, trazido clandestinamente por um barco inglês, se fazia acompanhar de uns cinquenta sicários que emboscariam Napoleão no caminho de Malmaison, o pequeno palácio de Josefina, a primeira-dama do Consulado. A polícia secreta (leia-se Fouche), precavida, antecipou-se e prendeu, entre 15 e 26 de Fevereiro de 1804, o agente inglês Courson e, em seguida, Bouvet de Lozier, valete de Cadoudal e um dos conspiradores da autodesignada Companhia dos Tiranicidas. Napoleão foi imediatamente informado da extensão da conspiração. Cadoudal, reconhecido, foi detido andando de cabriolé por Paris no dia 9 de Março seguinte, não sem uma reação que incluiu uma batalha a tiros e socos com os gendarmes, em frente ao Odéon. Foi guilhotinado em 25 de Junho de 1804. O general Pichegru, por seu lado, colocado sob custódia, suicidou-se.

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