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quinta-feira, 13 de março de 2014

Um Cego Clarividente: A Revolução na Igreja

Um Cego Clarividente – Mons. de Ségur


Em 1862, Mons. de Ségur[1] publicou um opúsculo intitulado “A Revolução”[2], que vendeu 20.000 exemplares em um ano. Quatro anos antes, a pedido de Pio IX, J. Crétineau-Joly tinha publicado importantes documentos revelando a existência de uma verdadeira conjuração contra a Igreja[3]. A intenção de Mons. de Ségur era a de fazer conhecidos esses documentos, aproveitando para desvendar a verdadeira natureza da Revolução, e a impossibilidade de pactuar com ela.

A leitura deste pequeno tratado é muito esclarecedora. Ela nos mostra que a Revolução não mudou de natureza, e que, 150 anos depois da análise do cego clarividente, não devemos modificar nossa atitude, se quisermos que a Igreja e a sociedade saiam da terrível crise na qual elas se afundam cada dia mais.

Parece-nos que bastará uma breve análise desta obra para demonstrar isto.


A NATUREZA DA REVOLUÇÃO

A Revolução não é uma questão puramente política, explica-nos o prelado, é também uma questão religiosa, ele é mesmo a grande questão religiosa de nossa época. O objetivo final desta é “a destruição total da ordem divina sobre a terra, o reinado perfeito de Satã sobre o mundo”. “Combater a Revolução é, portanto, um ato de fé, um dever religioso de primeira ordem.”

Na Revolução há um mistério, um mistério de iniquidade que os revolucionários não podem compreender, porque só a fé pode dar a chave de compreensão, e eles não têm fé.

Para compreender a Revolução, é necessário recuar até ao pai de toda revolta, aquele que ousou primeiro dizer, e ousa repetir até o final dos séculos: non serviam, eu não obedecerei.

Satã é o pai da Revolução. A Revolução é sua obra, começada no céu e se perpetuando na Humanidade de idade em idade (...).

É o que constatava, na sua Encíclica “Nostis et nobiscum”, de 8 de dezembro de 1849, o soberano pontífice Pio IX: “A Revolução é inspirada pelo próprio Satã. Seu objetivo é o de destruir completamente o cristianismo e a reconstrução, sobre suas ruínas, da ordem social do paganismo.”



A Revolução teve, portanto, seus começos na origem da humanidade. Entretanto “ela recebeu, nos princípios inspiradores da revolução francesa, uma espécie de consagração, uma constituição que ela não tinha tido até então, e foi o que fez que se dissesse, com justiça, que a Revolução nasceu na França em 1789”.

Pela primeira vez, desde seis mil anos, ela ousou assumir diante do céu e da terra seu nome verdadeiro e satânico: a Revolução, ou seja: a grande revolta. (...)

A história do mundo é a história da luta gigantesca de dois chefes de armada: de um lado, Cristo com a sua santa Igreja; de outro, Satã, com todos os homens que ele perverteu e que ele conduz debaixo de sua maldita bandeira da revolta. O combate sempre foi terrível; e nós estamos no meio de uma de suas fases mais perigosas, a da sedução das inteligências e da organização social daquilo que, diante de Deus, não passa de desordem e mentira.


A IMPOSSIBILIDADE DE FICAR NEUTRO NESTE COMBATE

Frente a um tal antagonismo, compreende-se que é necessário tomar partido. Não se pode ficar neutro, ou buscar qualquer tipo de acordo com a Revolução, como sonham os liberais.

Nesta guerra ímpia, se você não tomou partido por Deus e contra a Revolução, se você capitula, as atenuações com as quais você tentará conter ou moderar a Revolução só servirão para aumentar a ambição sacrílega desta, e a exaltar suas esperanças selvagens. Fortificada com a sua fraqueza, contando com vocês como cúmplices, melhor, como seus escravos, ela lhes dará ordem de seguir até o final de seus abomináveis empreendimentos. Depois de lhes ter arrancado concessões que consternaram o mundo, ela fará exigências que vão amedrontar suas consciências.

Não é esta a história dos últimos 150 anos, predita por Mons. de Ségur em poucas linhas? Entre a Igreja e a Revolução, explica-nos, a conciliação é impossível “como é impossível a conciliação entre o bem e o mal, entre a vida e a morte, entre a luz e as trevas, entre o céu e o inferno”.

Para provar, ele cita algumas declarações de revolucionários, onde se mostra o ódio que eles têm de Jesus Cristo e de sua Igreja, depois conclui:

O antagonismo é completo: é a submissão e a revolta, é a fé e a incredulidade. Nenhuma aproximação é possível, nenhuma transação, nenhuma aliança. Retenham bem isto: tudo o que a Revolução não fez, ela odeia; tudo o que ela odeia, ela destrói. Dê-lhe hoje o poder absoluto; e então, apesar de seus protestos, ela será amanhã o que ela foi ontem, e o que ela sempre será: a guerra radical contra a Religião, contra a sociedade e a família. Nós não a caluniamos: aí estão suas palavras e também seus atos. Lembrem-se do que ela fez em 1791 e em 1793, quando ela foi a dona da situação!


AS ARMAS DA REVOLUÇÃO

Suas armas são bem descritas pelo prelado cego, e vemos que elas quase não variaram, ainda que tenham se aperfeiçoado com o desenvolvimento dos meios de comunicação:

Com o objetivo de perverter os cristãos, arrancando-lhes o senso católico, ela se serve da boa-educação, a qual é por ela falseada; também se serve do ensino, envenenando-o; serve-se da história, que ela falsifica; da imprensa, a qual é usada por ela de uma maneira que é conhecida por todos; serve-se da lei, tomando dela o manto; a Revolução se serve também da política, que ela inspira; e mesmo da religião, da qual ela toma as aparências exteriores para seduzir as almas[4]. Serve-se também das ciências[5], que ela considera um meio para insurgir-se contra o Deus das ciências; serve-se das artes, que se tornam, sob a sua influência mortal, a degeneração da moral pública e a deificação da voluptuosidade.

É bem isto. Sua primeira arma é o ensino, que ela quer controlar completamente, e depois a imprensa[6], as leis iníquas, e mesmo a religião: sobre este último ponto, Mons. de Ségur não podia imaginar até que ponto a religião poderia servir para a difusão da Revolução, ainda que ele citasse, com uma sensação de horror, os planos da Alta Venda: 

“Devemos realizar a educação imoral da Igreja, e chegar assim, por pequenos meios mal definidos, ainda que bem graduados, ao triunfo da ideia revolucionária através de um papa. Este projeto me pareceu sempre ser de um nível sobre-humano[7].” Realmente sobre-humano, comenta Mons. de Ségur, porque ele vem diretamente de Satã. O personagem que se esconde sob o pseudônimo de Nubius descreve, em seguida, o papa revolucionário que ele ousa esperar: um papa frágil e crédulo, sem penetração, honesto e respeitado, imbuído de princípios democráticos.

O trabalho será longo:

Não se trata de uma conspiração ordinária, uma revolução como tantas outras; é a Revolução, ou seja, a desorganização fundamental, que só pode se realizar gradualmente e depois de longos e constantes esforços. “O trabalho que vamos realizar não é obra de um dia, nem de um mês, nem de um ano: pode durar muitos anos, talvez um século; mas, nas nossas fileiras, o soldado morre e o combate continua[8].”

No final, a Revolução espera poder chegar “a pôr, um dia, a Igreja no túmulo”


A ALMA DA REVOLUÇÃO

Analisando os “princípios de 1789”, Mons. de Ségur nota que eles são em si mesmos dominados por um princípio que lhes dá o seu verdadeiro espírito:

[Os “princípios de 1789” são dominados pelo] princípio revolucionário de independência absoluta da sociedade, que declara doravante rejeitar qualquer direção cristã, e só depender de si próprio, só ter por lei sua própria vontade, não se preocupando com o que Deus ensina e prescreve pela sua Igreja. A vontade do povo soberano substitui a vontade do Deus soberano, a lei humana calca aos pés a verdade revelada, o direito puramente natural abstrai do direito católico; numa palavra, os pretensos direitos do homem tomam o lugar dos direitos eternos de Jesus Cristo: tal é, fundamentalmente, a declaração de 1789.

Para Mons. de Ségur, a alma da Revolução consiste nessa independência do Estado em relação à Igreja. Esta independência – que o Vaticano II ensinou na sua declaração sobre a liberdade religiosa e que os papas recentes, incluso o atual pontífice, proclamam Urbi et Orbi – se opõe à doutrina da Igreja, que Mons. de Ségur considera “clara como o dia”:

Como o grau de elevação dos diferentes poderes deriva de sua finalidade última, e como a salvação eterna é uma finalidade evidentemente superior à prosperidade temporal, é claro como o dia que a Igreja é um poder mais elevado que o Estado, e que o Estado é, por conseguinte, estritamente obrigado, de direito divino, a se sujeitar ao poder da Igreja. Ora, o que é de direito divino é imutável, nenhum poder pode destruir isto. (...)

Para cumprir a vontade de Deus e os seus deveres de soberanos, [os príncipes cristãos] não devem somente se contentar de buscar a felicidade material de seus súditos: isto seria materialismo; não devem também se contentar de não atrapalhar a ação da Igreja: isto seria indiferença para com o bem, indiferença culpável e que não é permitida; mas eles devem prestar à Igreja o auxílio mais eficaz possível; eles devem, sob a sua direção e como servidores fiéis, impedir o mais possível todos os escândalos que possam alterar a fé ou a moralidade dos seus povos; devem assistir a Igreja com suas palavras, com sua influência, com seu dinheiro e, se preciso, com a sua espada e seus exércitos.

Assim, tudo fica em ordem; e Nosso Senhor Jesus Cristo, a quem Deus constituiu o soberano Mestre, não somente do céu mas da terra, plenamente reina pela sua santa Igreja, sobre todos os homens, sobre todos os Estados, sobre todas as famílias. Esta é a doutrina católica; este é o ensinamento oficial e tradicional da Igreja, resumido nestes últimos tempos pela encíclica de 8 de dezembro de 1864 (Quanta Cura). A doutrina oposta, condenada com o nome de naturalismo pela Sé apostólica, é a alma da Revolução e dos princípios de 1789.

Mons. de Ségur insiste: os que querem separar a Igreja do Estado e o Estado da Igreja, mesmo se estiverem de boa fé, “violam diretamente a ordem estabelecida por Deus e o ensino formal da Igreja sobre esta grave matéria”.

Além disso, ignoram que eles de fato se aferram às opiniões perversas dos revolucionários. Isolar a Igreja; expulsá-la pouco a pouco da sociedade; enfraquecer sua ação sobre o mundo; conduzi-la novamente ao estado de potência invisível, como nos tempos das Catacumbas; constituir o poder temporal mestre absoluto da terra pela propriedade, da inteligência pela doutrina, e da vontade pela lei; aniquilar o grande fato social do cristianismo, a divisão hierárquica dos poderes: para aquele que sabe ler, tal é a ideia dominante que a Revolução procura cada vez mais realizar há mais de sessenta anos. Trata-se, em outras palavras, de substituir o reinado de Deus e de seu Cristo pelo reinado absoluto do homem.

“A separação da Igreja e do Estado, a apostasia das sociedades enquanto sociedades”, constituem para o prelado cego “a própria essência da Revolução”. É também a discessio, a apostasia universal anunciada por São Paulo, na sua segunda epístola aos Tessalonicenses. Esta apostasia já tinha avançado bastante em 1862[9]: e pode-se dizer que ela foi consumada graças ao concílio Vaticano II.


A ALMA DA REVOLUÇÃO PENETROU NA IGREJA

Por ocasião do concílio Vaticano II, a atitude de oposição que a Igreja tinha tomado diante da Revolução, atitude constante de Roma entre 1789 e 1958 e que foi resumida no Syllabus de Pio IX (8 de dezembro de 1864), foi radicalmente invertida. Trata-se de uma constatação feita, tanto da parte dos tradicionalistas – ver, por exemplo, o Manifesto Episcopal de Mons. Lefebvre e Mons. de Castro Mayer – como pelas próprias autoridades romanas:

O problema dos anos sessenta era adquirir os melhores valores expressos em dois séculos de cultura “liberal”. São valores, que, mesmo que tenham nascidos fora da Igreja, podem encontrar seu lugar – depurados e corrigidos – dentro de sua visão de mundo. E isto é o que foi feito[10].

Gaudium et Spes é (junto com os textos sobre a liberdade religiosa e sobre as religiões do mundo), uma revisão do Syllabus de Pio IX, uma espécie de contra-Syllabus (...) Este texto exerce o papel de um contra-Syllabus na medida onde ele representa uma tentativa para uma reconciliação oficial da Igreja com o mundo tal como ele se tornou desde 1789[11].

É forçoso constatar que a alma da Revolução penetrou na Igreja desde meio-século.

Esta alma, como nos explicou Mons. de Ségur, consiste na independência do Estado em relação à Igreja: pela proclamação do direito à liberdade religiosa, o Concílio ratificou esta independência. Doravante o Estado não deve – e não pode – se submeter à Igreja, pois isto seria um ultraje às outras religiões[12].

Esta nova atitude das autoridades da Igreja Católica continua inalterada faz 50 anos, e o atual pontífice reafirma frequentemente sua vontade de continuar a obra do Concílio, principalmente promovendo a liberdade religiosa e os outros “valores” da Revolução.

Citemos alguns exemplos recentes.

No seu discurso de 22 de dezembro de 2005, o papa declara querer defender o direito à liberdade religiosa, precisando que se trata de um direito que é reclamado pelos estados modernos (revolucionários):

O Concílio Vaticano II, reconhecendo e fazendo seu, através do decreto sobre a liberdade religiosa, um princípio essencial do Estado moderno, reassumiu assim o patrimônio mais profundo da Igreja[13].

O papa é fiel a este programa. Limitando-nos a algumas citações, nós nos contentaremos com declarações do próprio papa, e somente no ano de 2008.

Dirigindo-se à Universidade Sapienza, em janeiro de 2008, o papa explica porque o ensino deve ser independente da Igreja :

Certamente, a Sapienza era outrora a universidade do papa, mas hoje é uma universidade laica com autonomia que, em função do próprio conceito de sua fundação, sempre fez parte da natureza da universidade, a qual deve exclusivamente ser ligada à autoridade da verdade. É nesta liberdade frente a toda autoridade política e eclesiástica que a universidade encontra sua função particular, mesmo para a sociedade moderna, que tem necessidade de uma instituição deste gênero[14].

No dia 18 de abril 2008, o papa pronunciou um importante discurso diante da Assembleia Geral das Nações Unidas. Ali, reforçou sua adesão à liberdade religiosa e aos direitos do homem. Propôs até a ajuda da Igreja “especialista em humanidade”.

Os direitos do homem devem evidentemente incluir o direito à liberdade religiosa, compreendida como a expressão de uma dimensão ao mesmo tempo individual e comunitária (...). Não se pode imaginar que pessoas que creem devam se privar de uma parte de si mesmos – da sua fé – a fim de se tornarem cidadãos ativos. Jamais deveria ser necessário negar Deus para fruir de seus direitos. (...) A plena garantia da liberdade religiosa não pode ser limitada ao livre exercício do culto, mas deve também levar em consideração a dimensão pública da religião e, portanto, a possibilidade dos crentes de participar da construção da ordem social. (...) As Nações Unidas continuam a ser um lugar privilegiado onde a Igreja se esforça em compartilhar sua experiência “em humanidade”, a qual foi amadurecida no correr dos séculos entre povos de diferentes raças e culturas, pondo-a à disposição de todos os membros da comunidade internacional. Esta experiência e atividade, que buscam obter a liberdade para todo crente, procura também assegurar uma maior proteção aos direitos da pessoa. Estes direitos encontram seu fundamento e sua forma na natureza transcendente da pessoa, que permite aos homens e às mulheres avançar no caminho da fé e da procura de Deus neste mundo[15].

Na sua viagem aos Estados Unidos, o papa louvou a laicidade aberta[16] dos Estados Unidos:

Neste país de liberdade religiosa, os católicos encontram a liberdade não somente de praticar a sua fé, mas também de participar plenamente da vida civil, trazendo para ela as suas convicções morais mais profundas à praça pública, e cooperando com os seus vizinhos no sentido da formação de uma sociedade viva e democrática. A celebração de hoje é mais do que uma ocasião de expressar gratidão pelas graças recebidas. É também um apelo para avançar com resolução na sábia utilização das bênçãos de liberdade, de modo a construir um futuro de esperança para as gerações do porvir[17].

Por ocasião das JMJ (Jornadas Mundiais da Juventude), o papa viajou para a Austrália. Ao final de um encontro ecumênico, o papa recebeu os representantes das outras religiões. Depois das saudações aos representantes judeu e muçulmano, Bento XVI sublinhou de novo quanto a Austrália preza a liberdade religiosa:

A Austrália é renomada por causa da afabilidade de seus habitantes para com o próximo e para com os turistas. É uma nação que tem em grande consideração a liberdade de religião. Vosso país reconhece que o respeito deste direito fundamental permite aos homens e às mulheres adorar Deus segundo sua consciência, educar o seu espírito e agir segundo as convicções éticas que derivam de sua crença. A relação harmoniosa entre as religiões e a vida pública torna-se mais importante numa época em que alguns chegam a considerar a religião mais como uma causa de divisão do que como uma força de unidade. Num mundo ameaçado por formas inquietantes e indiscriminadas de violência, a unidade de pensamento de todos aqueles que têm uma crença religiosa estimula as nações e as comunidades a resolver os conflitos por meio de instrumentos pacíficos, respeitando plenamente a dignidade humana[18].

No dia 12 de setembro de 2008, a bordo do avião pontifício que o conduzia para a França, Bento XVI declarou de novo sua adesão à laicidade:

Parece-me evidente que, atualmente, a laicidade não está em contradição com a fé (...) Para os cristãos, sempre foi claro que a religião e a fé não são políticas, mas uma outra esfera da vida humana[19].

No palácio Eliseu, algumas horas mais tarde, declarava ao presidente Nicolas Sarkozy sua adesão à trilogia que resume o ideal da revolução francesa:

Asseguro-vos a minha fervorosa oração pela vossa bela nação, afim de que Deus lhe conceda paz, e prosperidade, liberdade e unidade, igualdade e fraternidade[20].

Por fim, no dia 13 de dezembro de 2008, o papa Bento XVI visitava a embaixada da Itália junto à Santa Sé. Nesta ocasião, declarou:

Esta breve visita me dá ocasião de reafirmar a maneira como a Igreja está inteiramente consciente de que “a distinção entre o que é de César e o que é de Deus (ver Mt 22,21), ou seja, a distinção entre Estado e Igreja (...) pertence à estrutura fundamental do cristianismo[21]”. Não somente a Igreja reconhece e respeita esta distinção e esta autonomia, mas ela se regozija com isto, como um grande progresso da humanidade e uma condição fundamental para a própria liberdade e até para que cumpra sua missão universal de salvação entre todos os povos[22].

Resumindo, o papa está ligado à liberdade religiosa, que conduz a uma independência do Estado em relação à Igreja. Ele procura corrigir o mal pedindo uma laicidade aberta, ou seja uma atitude favorável do Estado para com todas as religiões (em lugar de um regime de perseguição, como no caso de uma laicidade sectária). Mas é claro que esta “correção” não corrige o mal fundamental , e que o papa, sejam quais forem suas boas intenções, propaga a alma da Revolução, tal como Mons. de Ségur a definia de acordo com o ensinamento dos pontífices romanos de 1789 a 1958.

Sem dúvida, há muitas variações entre os propagadores da Revolução: desde os “homens execráveis, que de sangue frio conspiram contra Deus e os homens” até “um número considerável de cristãos honestos, às vezes até praticantes, mas pouco instruídos, que se deixam fascinar pelo prestígio do liberalismo, e que querem conciliar o bem com o mal”, Mons. de Ségur distingue cinco espécies de revolucionários. No entanto, afirma:

Quem quer que viole, na sua inteligência ou nos seus atos, na sua conduta privada ou pública, por palavras, atos ou exemplos, seja como for, a ordem social católica, estabelecida por Deus para a salvação do mundo, é revolucionário; pode ser grande ou pequeno, eclesiástico ou leigo [papa ou simples cristão], pouco importa.


OBJEÇÕES E RESPOSTAS

Alguns dirão que nós exageramos: não estamos mais na Idade Média, é preciso viver com o seu tempo, o papa faz o que ele pode dentro das circunstâncias presentes. Vocês pedem demais, conseguirão pouco.

Não pedimos demais; pedimos o que Deus quer, o que os homens lhe devem, o que é justo e, além disso, é isto somente o que pode nos salvar. Preste atenção; trata-se de uma questão de vida ou morte, como outrora entre o paganismo e o cristianismo; são dois princípios que se excluem, a Igreja e da Revolução, Cristo e o demônio; não há termo médio.

Mas é preciso ter caridade!

Certamente, a caridade e a doçura podem converter os culpados; é preciso ter caridade e doçura; mas as questões de princípios são questões de verdade e não de caridade; não há lugar para concessões. A Igreja é, primeiramente, a sociedade da verdade, depois é que ela é a sociedade da caridade. A caridade e a verdade não devem jamais se excluir; uma caridade que sacrificasse a verdade não seria mais caridade, seria fraqueza e traição.

Mas, pelo menos, é preciso ser prudente!

Sem dúvida nenhuma; mas não se deve jamais trair a verdade, nem a Igreja, nem a Jesus Cristo, sob pretexto de ganhar mais facilmente as simpatias dos homens. Jamais a Igreja teve esta conduta; jamais os apóstolos, os papas e os santos usaram desta falsa prudência. Os cristãos que queiram agir de outra maneira estão no erro; e se não são desculpados pela retidão de suas intenções, certamente têm culpa diante de Deus.

Mas haverá então reclamações contra a Igreja!

Haverá reclamações, mas depois elas cessarão. Por acaso não se reclama atualmente? que fazem o jornalismo, ou a política em toda a Europa, não é uma reclamação permanente contra os tradicionalistas, sob pretexto de integrismo, utilizando-se mesmo epítetos mais infamantes[23]? Falemos alto e firme no meio destes clamores; lembremo-nos que não nos é permitido calar. Vae mihi, quia tacui![24]

Mas você pede o impossível!

Diz-se que a palavra impossível não é francesa; é verdade? Não sei. O que eu sei, é que esta palavra não é cristã. “O que é impossível para os homens, é possível para Deus”. O mundo pagão encontrava-se no estado que sabemos. Não era impossível que ele fosse convertido à loucura de cruz por doze pescadores judeus? não era impossível que São Pedro substituísse Nero no Vaticano?. A história da Igreja é a história das impossibilidades vencidas; é realização permanente do oráculo do Senhor: “Et nihil impossibile erit vobis: nada vos será impossível” (Mt. 17,19). Se não me engano, é menos difícil purificar o mundo atual, do que o foi para nossos pais purificar o mundo pagão. Tomemos os mesmos meios, as mesmas armas; a fé triunfará agora como antes.

Leve ao menos em conta as circunstâncias! As ideias modernas e democráticas estão espalhadas e enraizadas em toda parte, a impossibilidade da parte da Igreja de exercer seus direitos sobre as sociedades parece um fato consumado.

Em tempos de transição como os nossos, os homens têm necessidade da verdade, e da verdade inteira. As verdades foram enfraquecidas e abandonadas pelas paixões humanas, diminutae sunt veritates a filiis hominum (Ps 11, 2); nós, que somos os depositários de todos estes princípios sagrados de vida religiosa, social, política e doméstica, devemos transmitir estes princípios ao mundo, que morre porque não os conhece. Abaixo a prudência humana, pois ela faria perder tudo. Prudentia carnis mors est (Rom. 8, 6). Sejamos prudentes, sim; mas prudentes em Cristo.

Poderíamos multiplicar as citações de Mons. de Ségur. Seu texto, em 150 anos, não tem sequer uma ruga. Pois a situação continua a mesma: a Igreja se encontra confrontada à grande revolta, à Revolução.

Todavia, há uma diferença. Em 1862, o papa era Pio IX. Ele estava para publicar o Syllabus (8 de dezembro), no qual ele expõe a antinomia entre a Revolução e a Revelação. a última proposição do Syllabus, que resume o espírito desse documento, condena a seguinte asserção: “O pontífice romano pode e deve se reconciliar e transigir com o progresso, com o liberalismo e com a civilização moderna.”

No tempo de Mons. de Ségur, o chefe da luta contra o liberalismo era o papa: “O antirrevolucionário por excelência é Nosso Senhor Jesus Cristo no céu e, na terra, o papa, seu vigário.”

Ora, o pontífice atualmente reinante aceitou o contra-Syllabus promulgado pelo concílio Vaticano II. Em consequência, procura “se reconciliar e transigir com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna”.

Mons. de Ségur conhecia a instrução secreta permanente da Suprema Venda de 1829, que afirmava sua vontade de obter a ajuda do papa na propagação da Revolução: “se vocês não se precipitarem, prometemos a vocês uma pesca miraculosa(...) tereis pregado uma revolução em tiara e pluvial” E assim comentava: “como eles percebem que tudo repousa sobre o papa!”

Infelizmente, é forçoso constatar que chegamos à realização do plano da Contra-Igreja: “o triunfo da ideia revolucionária por meio de um papa[25]”. Devemos então abandonar a luta e se alinhar com o papa, “crendo sempre marchar sob a bandeira das chaves apostólicas[26]”, mas em realidade nós marchando “sob o estandarte” da Revolução? A resposta é fácil:

A história do mundo é a história da luta gigantesca de dois chefes de armada: de um lado, Cristo com a sua santa Igreja; de outro, Satã, com todos os homens que ele perverteu e que ele conduz debaixo de sua maldita bandeira de revolta. O combate sempre foi terrível; e nós estamos no meio de uma de suas fases mais perigosas (...).

Nesta guerra ímpia, se você não tomou partido por Deus e contra a Revolução, se você capitula, as atenuações com as quais você tentará conter ou moderar a Revolução só servirão para aumentar a ambição sacrílega desta, e a exaltar suas esperanças selvagens(...).

Nenhuma aproximação é possível, nenhuma transação, nenhuma aliança. Retenham bem isto: tudo o que a Revolução não fez, ela odeia; tudo o que ela odeia, ela destrói.



Bento XVI e Ban Ki-Moon, Secretário-Geral da ONU.


Extraído da revista Le Sel de La Terre (Couvent de la Haye-aux-Bonshommes, Avrillé – 49240), nº 68.

Notas:
1 - Mons. Louis-Gaston de Ségur, 1820-1881, filho da condessa de Ségur, Sophie Rostopchine, foi um padre com fama de santidade. Tornou-se cego com 34 anos, alguns anos depois de sua primeira missa, durante a qual tinha pedido a Nossa Senhora “como uma graça especial e benção de seu sacerdócio, a enfermidade que o crucificasse mais, contanto que ela não fosse obstáculo à fecundidade de seu ministério” (Marquis de Ségur, Mgr. de Ségur- Souvenirs et récits d’un frère, Paris, Bray et Retaux, 1882, pág. 65). Esta enfermidade o santificou muito, sem pôr obstáculos ao seu zelo.
2 - Mons. de Ségur, Oeuvres, t. 2, Paris, Tolra et Haton, 1867, págs.241-371. Temos duas pequenas reservas a fazer sobre este texto: - Primeiro, Mons. de Ségur sustenta a posição de Suárez sobre a origem do poder (entregue por Deus á nação), pensando que esta é a posição de São Tomás de Aquino. – Em seguida, o prelado utiliza muito o argumento de autoridade: “o papa disse isto”. Era o tempo de Pio IX. hoje em dia, é preciso levar em consideração o fato de que o próprio papa compartilha as ideias do liberalismo, o que priva seu magistério da autoridade que ele deveria ter (ver os artigos do pe. Calderón sobre a autoridade do magistério em Sel de la Terre nº 47, 55 e 60).
3 - J. Crétineau-Joly, l’Église romaine en face de la Révolution, réed. cercle de la Renaissance Française, Paris, 1976 (2 t.)
4 - Pensemos no modernismo e no progressismo.
5 - Pensemos no evolucionismo.
6 - Mons. de Ségur insiste sobre a imprensa, “a grande alavanca da Revolução”, “uma grande máquina para bombardear as mentes dos homens” (Ver a este respeito a Lettre des dominicains d’Avrillé nº 34, juin de 2005, pág. 3): que não diria ele hoje!
7 - Trecho de uma carta de Nubius a Volpe, de 3 de abril de 1824. Os textos da Alta Venda dos Carbonários estão disponíveis no trabalho já citado de Crétineau-Joly , e também em Mons. Henri Delassus, La Conjuration Antichrétienne, DDB, 1910, t. 3, pág. 1035-1092. Eles são muito citado por Mons. Lefebvre no seu trabalho Ils l’ont découronné (Do Liberalismo à Apostasia).
8 - Instrução secreta e geral da Suprema Venda.
9 - Mons. de Ségur não imagina a que ponto se chegaria, pois ele acreditava que a apostasia estivesse já consumada, ou quase: “Esta apostasia das nações está consumada, ou quase. Qual é hoje sobre a terra o Estado que reconhece oficialmente e como uma instituição divina todos os direitos da igreja e que se submete, antes de qualquer lei, à lei de Jesus Cristo, promulgada, explicada e aplicada soberanamente pelo papa, chefe da Igreja?”
10 - Cardeal Ratzinger, Revista mensal Jesus, novembro de 1984, pág. 72
11 - Cardeal Ratzinger, Les Principes de la théologie catholique, Téqui, 1985, pág. 426-427. Este livro foi reeditado por Téqui sem mudanças em 2005, depois da eleição do autor ao soberano pontificado, com um prefácio do cardeal Poupard.
12 - Teoricamente, o Estado pode ainda se dizer cristão, mas como ele deve ao mesmo tempo respeitar o direito das outras religiões, num tal Estado “cristão”, Nosso Senhor reina de maneira nominal, mas ele não governa.
13 - Discurso do papa Bento XVI à cúria romana, na quinta-feira, dia 22 de dezembro de 2005, DC 15, janvier 2006 (nº 2350), págs. 61-62.
14 - ORLF 22 de Janeiro de 2008 (n. 3) . Depois dos protestos de alguns estudantes e professores, Bento XVI renunciou à visita a este universidade romana, para onde ele tinha sido convidado pelo reitor, por ocasião da abertura do ano acadêmico. Mas ele comunicou a mensagem que tinha sido preparada. – Neste texto o papa exprime que a universidade está “ligada à verdade”, mas que ela deve ser “livre em relação à Igreja”. Ora, precisamente, a Igreja sendo Mestra da verdade, chega-se à verdade submetendo-se ao seu magistério. A pretensão de poder atingir a verdade sem a Igreja é típica do naturalismo do liberalismo.
15 - Discurso do papa diante da Assembleia Geral da ONU, no dia 18 de abril de 2008, DC 1º de junho de 2008 (nº 2403), pág. 533.
16 - A laicidade aberta é – sumariamente – a que tolera as religiões, desde que elas aceitem o jogo democrático. ver Le Sel de la Terre 52 (2º editorial), pág. 10.
17 - Homilia do papa Bento XVI no Yankee Stadium, Bronx, New York, no dia 20 de abril de 2008, DC 1º de junho de 2008 (nº 2408), pág. 554.
18 - Discurso do papa Bento XVI no encontro inter-religioso de 18 de julho de 2008 DC 7 de setembro de 2008 (nº 2408), pág. 782. Ver também DICI nº 179.
19 - Discurso de Bento XVI aos jornalistas, DC 5 de outubro de 2008(nº 2409), pág. 873. – Mons. de Ségur, em seu estudo trata da objeção: “Mas o Estado é um poder laico” respondendo: “É precisamente porque o Estado é laico que ele deve se submeter fielmente á direção religiosa dos pastores da Igreja, que são encarregados por Deus de dirigir as consciências” Estamos longe da laicidade, mesmo aberta!
20 - Discurso de Bento XVI no Palácio Eliseu, na sexta-feira, dia 12 de setembro de 2008, DC 5 de outubro de 2008 (nº2409), pág. 825.
21 - Citação da encíclica de Bento XVI, Deus Caritas est, n. 28. Eis o trecho: “A distinção entre o que é de César e o que é de Deus (Mt. 22, 21), ou seja, a distinção entre o Estado e a Igreja ou, como diz o Concílio Vaticano II, a autonomia das realidades terrestres (ver Gaudium et Spes, n. 36), pertence à estrutura fundamental do cristianismo. O Estado não pode impor a religião, mas deve antes garantir a liberdade desta, bem como a paz dos fiéis das diferentes religiões”. Na doutrina tradicional, o Estado não deve “impor a religião”, como parece dizer o papa, mas ele deve procurar limitar a atividade das falsas religiões, para evitar o escândalo, ou seja, para evitar todas as desordens trazidas consigo pelas falsas religiões (como, por exemplo, a poligamia permitida pelo Islã).
22 - ORLF, 23 a 30 de dezembro de 2008, pág. 8.
23 - Adaptamos o texto de Mons.de Ségur que diz: “Contra a Igreja, sob o pretexto de partido clerical, de
intrometimentos ultramontanos, de fanatismo”.
24 - Ai de mim, porque me calei! (Is. 6, 5).
25 - Trecho de uma carta de Nubius a Volpe, de 3 de abril de 1824.
26 - Instrução secreta permanente da Suprema Venda, de 1820.

Esta é a versão em html do arquivo http://fbmv.files.wordpress.com/2011/09/um_cego_clarividente.pdf. Do site da FBMV


Biografia de Mons. de Ségurhttp://farfalline.blogspot.com.br/2012/02/biografias-mons-louis-gaston-de-segur.html

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