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sábado, 1 de dezembro de 2012

Esse DEUS tão inconveniente!

Para reflexão. 


SENSO INCOMUM

Como assim, a "inconstitucionalidade" de Deus?

Por Lenio Luiz Streck

O exagero do título, mas...


Imagine o leitor a seguinte notícia: “Judiciário declara a inconstitucionalidade do feriado de Nossa Senhora da Aparecida.” Ou “Natal é declarado fora da lei pelo Poder Judiciário”. “O Estado do Espírito do Santo tem de mudar o nome por ordem judicial.” Ou, quiçá: “Páscoa passará em branco — a crucificação de Cristo foi considerada hedionda e, por chocar os não cristãos, declarada inconstitucional.” Um adendo na manchete: “Onde está escrito ‘passará em branco’, não há qualquer relação com o conceito antípoda da palavra”... (só para ser politicamente correto afinal, isso está no contexto, pois não?). 
Acha bizarro? Pois ações judiciais nessa trilha não faltam, como a recentemente ACP intentada em São Paulo pelo Ministério Público Federal para a retirada do enunciado “Deus seja louvado” das cédulas da nossa moeda, o real. Qual seria o sentido disso? 
Explico: Claro que há um exagero no título da Coluna de hoje. Mas todos já sabem do que quero falar. Particularmente, nunca havia me dado conta de que nas notas do real havia a frase “Deus seja louvado”. Aliás, nunca vi ou ouvi alguém falar sobre isso...

A ação judicial


Vejamos o que diz a petição do MPF: “A manutenção da expressão ‘Deus seja louvado’ na cédula monetária brasileira não se coaduna com mencionada condição de coexistência entre convicções religiosas, característica da laicidade estatal, uma vez que configura uma predileção pelas religiões adoradoras de Deus como divindade suprema, fato que, sem dúvida, impede a coexistência em condições igualitárias de todas as religiões cultuadas em solo brasileiro. A manutenção da situação em discussão constrange a liberdade de religião de todos os cidadãos que não cultuam Deus, tais quais os ateus e os que professam a religião budista, muçulmana, hindu e as diversas religiões de origem africana.” 
Justifica, ainda, o MPF que “Para se compreender fielmente o constrangimento e tratamento desigual dispendidos em face dos cidadãos não tementes a Deus, basta empreender um raciocínio de substituição. Imaginemos a cédula de Real com as seguintes expressões: ‘Alá seja louvado’, ‘Buda seja louvado’, ‘Salve Oxossi’, ‘Salve Lord Ganesha’, ‘Deus não existe’. Com certeza cristalina haveria agitação na sociedade brasileira em razão do constrangimento sofrido pelos cidadãos crentes em Deus”.
Interessante. Muito! Diria até engraçado. Gostei das comparações, mormente com a nota de real contendo a frase “Deus não existe”. Não havia tido essa epifania! Mas, sigamos. “Estado laico”. Claro. Sob o seu manto, vamos radicalizar. Será que Estado Laico quer dizer isso? Reescrever a história (institucional das relações humanas) faz parte do Estado Laico? Fico imaginando o Bundesverfassunsgericht (que é o Tribunal Constitucional Alemão) examinando a “laicidade” do “feriado natalino”...
Vamos aprofundar um pouco isso? Quais são os limites de uma decisão judicial? O que é direito? O que o Poder Judiciário pode fazer? O que o Ministério Público pode pleitear? A Defensoria Pública pode pleitear qualquer coisa (por exemplo, o direito de um cidadão se tornar “lagarto”?) No que se pode e no que se deve basear um pedido e uma decisão judicial? Vou trazer um exemplo, que trato no livro Hermenêutica, Garantismo e Neoconstitucionalismo, um debate com Luigi Ferrajoli (Livraria do Advogado) sobre o que é prognose e o que não é prognose, análise empírica e a falta de análise empírica.
Vamos lá. Na Espanha houve o “caso do touro Osborne”,[1] julgado pelo Tribunal Supremo (que não é o Tribunal Constitucional). Explico. Em 1988 foi aprovada na Espanha a Ley General de Carreteras, que, em um dos seus dispositivos (art. 24) proibiu a colocação de publicidade nas zonas vizinhas e visíveis da estrada. A pena era uma pesada multa. A empresa Osborne, antes da entrada em vigor da lei, retirou a palavra “veterano” dos imensos touros negros à beira da estrada (eram imensos outdoors, contendo ao centro a marca do conhaque “veterano”). Entrando em vigor a lei, a empresa fabricante do conhaque foi multada. A querela chegou ao TS. A discussão: o que é publicidade. O “imenso touro negro” é publicidade, mesmo sem a palavra “veterano”? O Tribunal deu ganho de causa ao fabricante do conhaque, utilizando argumentos como “o touro já não transmite qualquer mensagem aos espectadores, na medida em que a palavra ‘veterano’ fora apagada”; “para a generalidade dos cidadãos, o touro se transformou em algo decorativo, que já faz parte da paisagem”; “a presença da expressão ‘veterano’ não faz com que aumentassem o consumo do conhaque”; “o touro é esteticamente bonito”; “o touro é como uma escultura e não como um outdoor”.
Percebe-se, nitidamente, o modo com a decisão foi exarada, ou seja, sob o crivo da discricionariedade e do arbítrio. O Tribunal decidiu sem qualquer respeito à integridade e a coerência do Direito, além de não ser uma decisão de princípio. Por exemplo, como saber o modo como as pessoas veem os grandes touros negros à beira das autopistas? Está-se diante de um enunciado empírico, em que o “sim” e o “não” são absolutamente arbitrários. Do mesmo modo, o argumento acerca do (não) aumento do consumo é irrelevante. Mais ainda, qual é a importância de se afirmar que o touro é esteticamente belo? Como aferir o gosto? E qual a relevância jurídica desse argumento? Por fim, fosse relevante o argumento acerca da “finalidade decorativa” do touro, estar-se-ia liberando a colocação de qualquer escultura à beira das autopistas espanholas (p.ex, Gisele Bünchen expondo biquíni, apagando-se o letreiro da marca).
Observe-se: o único argumento plausível, mas não convincente, foi o da perquirição acerca da finalidade da regra. O fim seria duplo: a) evitar a distração dos motoristas; b) evitar a contaminação paisagística. Disse o Tribunal: a presença do touro não vai contra essas duas finalidades da lei. Logo, o touro pode ficar. Ora, mesmo que se aceite o argumentos de que o fim da lei é evitar a distração dos motoristas (o que é plausível), fica a pergunta que diz respeito às especificidades do caso concreto (à faticidade): como pode o Tribunal afirmar que o touro não atrapalha, se não havia qualquer pesquisa a respeito? Portanto, a afirmação do tribunal é fruto de uma indevida discricionariedade (arbitrariedade). O mesmo se aplica ao segundo argumento: o touro não contamina a paisagem. Sob qualquer argumento empírico (e estético) pode o Tribunal fazer tal afirmação? Veja-se, desse modo, os problemas que envolvem os limites do Poder Judiciário. Ele não pode fazer qualquer afirmação...

A falta total de prognose
 

Ora, o Ministério Público também não pode fazer qualquer tipo de ação ou qualquer tipo de afirmação. Como no caso do Touro de Osborne, qual é a prognose? Quais os dados empíricos? Quantas pessoas estão infelizes (sic) com a frase “Deus seja Louvado” que consta nas notas de real? Qual é o dano que isso está causando nas pessoas “não cristãs” ou congêneres? O que quer dizer “as pessoas se sentem constrangidas”? E esse constrangimento ofenderia um direito fundamental? Heim?
Aliás, o que é um “não cristão”? É um ateu? Um agnóstico? Para trazer “felicidade” para esse conjunto indefinido de pessoas (insisto: não se tem qualquer dado empírico), quais as condições que a lei e a Constituição oferecem para que transfiramos recursos (simbólicos ou não reais) das outras pessoas para a felicidade daquelas? Entre a liberdade e a igualdade, devemos ficar com a liberdade? De quantos? Quer dizer que se um aluno de uma faculdade alegar objeção de consciência em não querer dissecar sapos (com o devido respeito aos meus amigos defensores dos direitos dos animais) na Faculdade de Medicina, a universidade terá que disponibilizar para ele uma disciplina sem a dissecação? Transferindo recursos da malta? Para a sua felicidade individual? Pergunto: há(veria) um direito fundamental a cursar medicina? Do mesmo modo, um aluno traumatizado com Direito Penal pode exigir da Faculdade de Direito um curso sem o Direito Penal? Há um direito fundamental a cursar direito? Como fica a igualdade diante desse “dar felicidade”?
Portanto, antes de fazer uma ação desse quilate buscar a retirada da expressão “Deus seja louvado” das cédulas do real o MPF deveria responder a uma série de perguntas. Uma delas é: há um direito fundamental a que se tenha uma moeda sem a expressão “Deus seja louvado”? Colocar expressões nas moedas não é atribuição do Poder Executivo, que é eleito por 50% mais um? Se o Executivo quiser, ele revoga (e terá os ônus e bônus de tal atitude em uma democracia). Mas não parece ser tarefa do Judiciário e nem atribuição do MPF entrar com ação desse quilate.

O que é que incomoda?
 

Dizer que a expressão incomoda é o mesmo que dizer que “a expressão não incomoda”. Lembrando-me das aulas de neopositivismo lógico e de semiótica (que não é “meia ótica”, desculpem-me a ironia, mas a maior parte da malta nem imagina o que seja isso), há o famoso teste para saber se um enunciado é empiricamente verificável... Neste caso, coloca-se a palavra “não”. Pois é. Dizer que a expressão (não) incomoda é o mesmo que dizer “os duendes (não) se apaixonam” (exemplo que Warat gostava de usar). Semanticamente não verificável! Tanto faz colocar um “não”. Duendes são impossíveis de verificar empiricamente. Da mesma forma que se a expressão “Deus seja louvado” “incomoda” ou não as pessoas. Portanto, no plano do neopositivismo lógico, seria “não científico”. Não passaria no teste da semântica...!
Volto. A sério (não que a discussão do revival do neopositivismo não possa ser séria). Não há qualquer dado empírico. Não há prognose. E dizer que a Constituição institui o Estado Laico e que a expressão vai contra esse Estado laico não tem o menor sentido, na medida em que a própria Constituição estabelece no preâmbulo “sob a proteção de Deus”... Seria a Constituição inconstitucional?
O que quero dizer e bato nisso de há muito é que o ativismo judicial (ou ministerial) é uma vulgata da judicialização. Esta, a judicialização, é contingencial; ela acontece. Mas o ativismo é comportamental (behaviorístico). Há uma série de pesquisas importantes sobre isso, produzidas pelo grupo de Vanice do Valle e de José Ribas Viera, na Uerj e na Unesa. Os juristas deveriam ler os resultados dessas pesquisas dos professores do Rio de Janeiro.
A distinção entre ativismo e judicialização é fundamental, porquanto aquela figura é caudatária de uma excessiva intervenção judicial na vida da polis, em detrimento das expectativas dos cidadãos em torno da observância das regras e princípios da democracia substancial.
Não se sustenta a tese da ofensa ou do constrangimento à liberdade de crença, tal como afirma o MPF, porquanto os direitos fundamentais, na perspectiva traçada por Dworkin e Ferrajoli, sustentam-se reciprocamente. Dito de outro modo, não há conflito entre o princípio democrático e o princípio da liberdade religiosa, haja vista que a proteção dos direitos fundamentais, em todas as suas dimensões, é nota característica da adjetivação “democrático” do Estado de Direito brasileiro. Ou seja, a concepção de laicidade não pode ser vista como uma “contrarreligião”; antes disso, a laicidade é condição de possibilidade para o pluralismo!
Invoco, nesse contexto, Tocqueville, em seu A Democracia na América, para quem a ideia dos direitos outra coisa não é senão a ideia da virtude introduzida no mundo político. É com a ideia dos direitos que os homens definiram o que era a licença e a tirania. Esclarecido por ela, pode cada um mostrar-se independente sem arrogância e submisso sem servilismo. O homem que obedece à violência curva-se e se faz servil; quando, porém se submete ao direito de mandar que reconhece a seu semelhante, eleva-se, de certa forma, acima daquele mesmo que o comanda. Não existem grandes homens sem virtude; sem respeito aos direitos, não existem grandes povos; quase poderia dizer-se que não há sociedade; pois, que vem a ser uma reunião de seres racionais e inteligentes, cujo único laço é a força?
Não se pode compreender a laicidade do Estado em uma perspectiva isolada e (des)contextualizada do exercício dos direitos fundamentais, haja vista que a democracia parte do pressuposto de uma parceria dos cidadãos partnership conception of democracy, como menciona Dworkin, em Justice for Hedgehogs , isto é, em torno da convivência recíproca em um ambiente plural e fraterno. Mesmo sem prognose, pode-se dizer que a maioria da população não se importa com a expressão “Deus seja louvado”. Mas, por que, então, a minoria que pretensamente “se incomoda” ganharia a “felicidade” em detrimento da conspurcação da igualdade em relação aos demais?
Ainda, é relevante lembrar que, conforme Fernando Catroga, em seu Entre Deuses e Césares (Almedina, 2010), mesmo nas regiões mais secularizadas da Europa Ocidental, parece assistir-se ao “regresso” do sagrado, surto que invalidará as previsões acerca da “morte de Deus” às mãos da autossuficiente razão humana e dos irreversíveis imperativos da história (nesse sentido, deve-se ler Steve Bruce, em seu God is Dead. Secularization in the West; apostando no contrário, ver Sabino Samele Acquaviva, The Decline of the sacred in industrial socity eThomas Luckmann, The invisible religion — the problem of modern religion in modern society ). Veja-se: Não digo que isso seja bom ou ruim. Mas algumas apostas deram com os burros n’água.
O que quero dizer ainda amparado em Catroga é que devemos ter muito cuidado. Não podemos, sob pretextos comunitaristas, etnologicizar em excesso o coletivo, olvidando que este somente terá sentido se, em última análise, estiver a serviço da realização, em alteridade, da pessoa humana. Por conseguinte a verdade de uma parte da população não pode se impor a outras escalas mais extensas de pertença e nas quais a própria cidadania nacional, sempre em reconstrução, deve ser vivida como janela aberta para o universal. A laicidade e, sobretudo o laicismo instalou uma ruptura excessivamente “burguesa” entre o espaço público e o privado, esquecendo-se que, se o homem é logos, também é homo ludens, homo loquens, homo simbolicus e homo religiosus, dimensões que ficarão diminuídas se ao sagrado não for reconhecida expressão coletiva, pública e aberta. Caso contrário, a “fé laica” acaba por ser outra religião, uma contrarreligião, sucedânea do princípio une foi, une loi, un roi.

O custo de um argumento
 

Quando nos aventuramos em um argumento, temos que ir até o final. Isoladamente, até poderia ser possível dizer que a expressão “Deus seja louvado” não é compatível com o “Estado Laico”. Afinal, nem todo mundo acredita em Deus. Mas a questão da laicidade não é esta. Há que se ter cuidado com uma visão apressada, sem levar em conta os efeitos colaterais da afirmação.
Mas, uma vez admitido isso, temos que ir mais longe. Qual é a diferença entre a utilização dessa expressão e o feriado católico da padroeira do Brasil? Pergunto: O que “incomoda” (ou constrange, para usar a linguagem da ACP) mais os não católicos (ou não cristãos em geral)? É a expressão constante nas notas de real ou o feriado? Ou nenhum dos dois?
E o que dizer do Estado do Espírito Santo? Vamos mudar-lhe o nome? E assim por diante. O Cristo Redentor, construído por meio de contribuição pública e mantido com verba de todos, incomoda os que não têm nada a ver com a crença que representa o Cristo Redentor? Vamos continuar com os testes argumentativos ou paramos por aqui?
Claro que minha análise é hermenêutica. Não importa o que eu penso sobre o assunto. Tais escolhas são de índole da razão prática solipsista. E estas não importam. O que falo, aqui, é do âmbito do Direito. E Direito não é filosofia, não é politica, não é sociologia, não é religião, como venho deixando claro. E o que discuto são os espaços da judicialização. Ou o imperialismo da judicialização sobre esses espaços culturais que devem ser discutidos no plano de outra esfera, que não a do Judiciário! É assim que este texto deve ser lido!
Não podemos esquecer que os Tribunais estão em um espaço produzido por uma comunidade histórica. Deve haver uma reconstrução da história institucional, revolvendo o chão linguístico em se sustenta a tradição (para o bem e para o mal). E, daí, ver qual é o espaço para a judicialização dos espaços da laicidade.
Deus seja louvado” não é constitucional e nem inconstitucional. Se o Poder Executivo resolver retirar a expressão das notas do real, tal circunstância não acarretará o direito a que se recoloque a expressão judicialmente. Ou seja, se o Poder Executivo resolver retirar a expressão, não cabe ação dos descontentes...
Mas, atenção. Também é por isso que não cabe ação judicial para a retirada da frase. Já chega termos judicializado o amor no Brasil, a partir de uma bolha especulativa de princípios (que denuncio, de há muito, como pamprincipiologismo).
Ou seja, hermenêutica é, exatamente, uma antítese às posturas que pretendem transformar o direito a um conjunto de respostas antes das perguntas. Com isso, tais posturas sequestram o tempo e a facticidade. A dogmática jurídica tradicional se enquadra nisso. É cronofóbica e factumfóbica. Quando confrontada com o tempo e os fatos, vira um queijo suíço. Como a ação do MPF.
Numa palavra: Mesmo que o Judiciário decida pela retirada da frase “Deus seja louvado”, isso não a transforma em uma decisão jurídica, no sentido da democracia (apenas no sentido kelseniano é que seria “jurídica”). Portanto, juízes e tribunais decidem por princípios. E não por políticas. Ou por argumentos (não) religiosos. Direito é algo bem mais completo que isso que a tal ação pretende. Mas, o que é direito? Bem, sobre isso já escrevi muito. Basta ver as colunas anteriores.

Um toque final
 

Pelo andar da carruagem, depois de censurar Monteiro Lobato (o próximo será Aristóteles), vamos instituir multas para quem usar frases que possam “incomodar” (ou constranger) os outros. A cidade de (Santa) Maria (e congêneres) deve mudar de nome e todas as cidades que tenham nome de santos. Eventualmente um cidadão que tenha Santo ou São no nome, deverá imediatamente alterá-lo. Sim, porque pode “incomodar” o próximo. Jogadores de futebol não deverão fazer o sinal da cruz, porque a televisão, concessão pública, estará transmitindo e isso poderá “incomodar” parte da malta.
Ora, ora e ora (não de orar, é claro, porque isso já dária multa!). A cidade de (São) Paulo (ups!) está em face de uma espécie de “neoterrorismo”, o ministro da Justiça diz que, se fosse preso, matar-se-ia (não com essa mesóclise, é claro) e o MPF quer judicializar a “deidade” da choldra pátria (na verdade, faz isso para “protegê-la”; faz “em seu nome”). Em breve, se o sujeito disser “graças a Deus” ou “se Deus quiser”, será multado. Perderá pontos na carteira quem tiver o crucifixo perdurado de forma ostensiva no seu carro. E se escrever, no vidro traseiro do velho Chevette “a inveja é uma merda” e “só Jesus Cristo Salva” ou, ainda, “Dirigido por mim, guiado por Deus”, o carro será apreendido pela guarda municipal. Estou pensando seriamente em estocar alimentos. O caos é iminente.
A judicialização do nosso cotidiano ainda vai acabar com a gente. Por isso, estamos criando cidadãos de segunda categoria. Já ninguém reivindica. Terceirizamos. Hoje não conseguimos reunir mais do que 30 pessoas para um protesto. Prá quê? Ingressemos em juízo, pois. Tudo se judicializa. Claro. É mais fácil. Mais rápido. Além disso, temos que arrumar “serviço” para toda a comunidade jurídica... (e, com isso, fomentamos a indústria dos cursinhos e dos concursos públicos). Com tantas carreiras jurídicas, com tudo isso, temos que nos ocupar, não é verdade? E, assim, tudo fica no seu lugar, graças a Deus (ups, fui multado!).




[1] Agradeço a Antonio Garcia Amado os comentários e discussões acerca desse exemplo do Direito espanhol.

Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.

Consultor Jurídico